Rodeio sobre descrição
Não importa de quantas maneiras as pessoas passem a descrever o mundo em que vivem, ele sempre será o mesmo, o que varia é o ponto de vista. Imaginem, por exemplo, um grupo de pessoas reunidas ao redor de uma árvore; cada uma delas pode dizer o que quiser sobre o que está vendo, pois para si é a verdade, mas a verdade é diferente de acordo com cada perspectiva. O mais interessante é que não se pode vê-la sozinho sobre todas as perspectiva sozinho, e este é o assunto do Rodeio de hoje.
Ninguém escolhe a forma com que enxerga o mundo. A visão que temos dele se limita à silhueta, ao vulto que os princípios culturais em que somos submetidos nos permite ver, princípios como a forma em que somos criados, educados, o círculo social em que vivemos, a função que exercemos na sociedade e a função que a sociedade exerce sobre nós. Por exemplo, um geólogo não terá a mesma opinião sobre uma paisagem do que uma revendedora da avon, assim como uma empregada doméstica paulistana, que outrora viveu em Pernambuco e veio para a metrópole na condição de mãe solteira com duas filhas para criar não terá a mesma opinião sobre uma mulher que, com uma filha recém-nascida no colo, mendiga alguns trocados para ter o que comer, do que apenas mais um empresário que passa por ela sem dar bola, apressado para chegar ao seu escritório.
Nosso julgamento se molda de acordo com que a vida nos acostuma a fazer — naturalmente, disserto sobre isso mais à frente. O que importa é que, é como se nós vivêssemos sob uma lente de contato com o formato da nossa cultura (e os respectivos princípios anteriormente citados), que pode tanto nos ajudar a focar em um elemento, ampliando-o, ou pode nos fazer não olhar para algumas questões, camuflando-as sobre nódoas; pode ser melhor para enxergar sob uma perspectiva de futuro, como as lentes de alcance, em pessoas acostumadas a acreditar em utopias, ou como aquelas que tem o dom de olhar a situação de uma maneira telescópica, num todo; pode ser ótima para ver detalhes, as coisas mais pequenas que passam despercebidas pelos olhos, que por mais que não pareçam exercem total influência e às vezes, influências decisivas sobre o todo, como pequenas células cancerígenas se multiplicando se espalhando por um corpo, como uma cultura de bactérias habitando todos os lugares em que nossos olhos podem ver num vagão do metro; etc., etc.
A nossa visão sobre o mundo é tudo o que temos, pode nos levar a querer salvar ou destruir a humanidade, dita a nossa postura perante problemas, escolhas, grandes ou pequenas decisões. Por exemplo: se toda a sua vida te disserem que o objeto que a maioria entre nós conhece como caneca, se chamasse caneta, para você, uma caneca seria uma caneta, e estariam errados todos que dissessem o contrário. E é basicamente assim que as doutrinas faziam para controlar grandes massas, para que ou por que? Tanto faz, a vida segue de qualquer jeito.
Porém, é interessante ressaltar que a nossa visão de mundo quase nunca é permanente, ou melhor, a nossa “lente” não é à prova de mudanças, de grau ou opinião, que podem variar das mais insignificantes às drásticas; desde o deixar de mexer com garotas na rua, pois agora você sabe que isso é machismo e muitas mulheres se dão mal por causa dele, como uma desilusão religiosa, pois sua mãe, que sempre foi uma católica fervorosa, fazia caridade, ia à eventos beneficentes, dava esmolas, subitamente morre atropelada por um playboy bêbado, e então você resolve culpar a deus ou qualquer um entre os santos que possa parecer culpado.
Da mesma forma que nem sempre podemos descrever todas as coisas como elas são, desde a sua própria natureza, até como às sentimos dentro de nós. Acontece que, se você pretende descrever o mundo à sua volta, não se trata apenas de ter visão, mas também de ter conhecimento da linguagem. E saber que, no fundo, o entendimento que as pessoas têm daquilo que você consegue transmitir nem sempre é o que você espera, seja por uma uma tangência entre a crítica dos outros e aquilo que você idealizou ou de fato produziu — há de se notar que existe um abismo entre a ideia e a obra, entre o pensar e o agir.
Mas, “do que servem todos estes exemplos?” vocês podem me perguntar. Não sei se ficou claro, mas estou falando sobre literatos aqui, e é provável que pessoas com habito de leitura frequente devem perceber melhor a ideia. Basicamente, eu sempre me pego pensando como é que uma porção de palavras podem despertar sentimentos tão profundos dentro de nós, desenhar os quadros mais bonitos na nossa imaginação? Ou melhor, a pergunta que eu nunca consegui satisfazer com uma resposta decente: como é que eles enxergam todas essas coisas?
Digo, estes dias, viajando com a família pelo interior de São Paulo, olhei pela janela do carro enquanto meus pais discutiam algum assunto irrelevante, meu irmão gritava sem parar do meu lado, notei o quão bela era a paisagem que nos circulava e pensei em algumas palavras bonitas para tentar descrevê-la. Depois, mostrei para uma amiga que disse que se sentiu como quem estivesse lá, vendo com os seus próprios olhos o que eu descrevia. Isso me fez pensar: como eu posso tornar familiar algo para os outros que até então era uma imagem na minha cabeça, produto somente do meu julgamento. Era basicamente assim, se me recordo bem:
“Agora sei porque a cidade de Cunha atrai tantos artistas, em especial os escultores, que aos montes constroem seus ateliês e lojas por aqui. Toda a redondeza parece ter sido esculpida com um especial cuidado. Como se o tempo tivesse visto aqui algo que valesse apena o empenho na formação de montanhas tão gentis. Os vales possuem contornos tão hospitaleiros, tão simplórios, que convidam os olhos cansados dos viajantes que por aqui passam a se deleitar por mais um minuto nesta paisagem, que pela delicadeza mais parece uma imensa colcha verde despejada pela terra, com retalhos bejes, formados pela vegetação queimada pelo frio do outono, anunciando seu fim. E, ao fim da tarde, no por do sol, uma fina camada de névoa cobre as montanhas, com a mesma velocidade em que abro um sorriso ao perceber o quão belo é algo tão simples e natural quanto o por do sol.”
Digo, de quantas formas diferentes alguém pode descrever a mesma paisagem? E por que uma delas faz mais sentido que as outras? O que é que torna belo uma descrição dessas? Eu realmente não sei — percebam que agora apenas compartilho minha dúvida, ou, na verdade, é só isso que fiz enquanto escrevia todo esse Rodeio. E o que é que fez todas essas comparações surgirem na minha cabeça? Seria talvez por que eu estava entendiado demais com o que se passava dentro do carro, e por isso me projetei e me esforcei por criar algo mais interessante? Será que acho o mundo inteiro um tédio e por isso tento agregar um pouco mais de valor a ele? Será que, justamente por achar que falta beleza nele eu tento descrevê-lo para as outras pessoas de uma maneira mais bela? Bom, ao menos para essas últimas perguntas eu tenho resposta: só posso dizer que nada do que se passa na minha cabeça, a forma como vejo as coisas, nada disso é alheio ao próprio mundo, que, como disse no começo do Rodeio, é um só, e está lá, aqui e aí, muito antes de eu ou você nascermos, e vai continuar existindo por muito tempo depois de nós. Agora, curioso é pensar que o mesmo mundo que forma a maneira com que o vejo muda quem ele é, através de meus olhos.