O Fenômeno Bolsonaro nas Igrejas Brasileiras

Em meus breves 20 anos de vida, este é o ano eleitoral mais conturbado que jamais vi. E o que mais me chama a atenção é o forte posicionamento institucional da Igreja Cristã Brasileira. [1] Proponho-me, pois, a abordar alguns aspectos teológicos conflitantes entre o candidato Jair Messias Bolsonaro[2], a liderança carismática que cativou avassaladoramente os cristãos do país em sua maioria, e o Evangelho de Cristo. De forma alguma tenho por interesse influenciar o posicionamento político dos irmãos, tanto é assim que preestabeleci a publicação deste artigo após o movimento eleitoral, todavia, é necessário ainda abrir espaço na comunidade cristã para um debate político baseado nas Escrituras como são e não como queríamos que fossem.

Antes do mais, imagino ser importante declarar que não vejo, necessariamente, um problema insolúvel que o cristão autêntico tenha votado em Bolsonaro — o teólogo Yago Martins explana em um de seus vídeos[3] uma bela razão a ser levada em consideração para determinar o voto cristão e, assim, pendê-lo a votar em Bolsonaro. Todavia, o que mais presencio nas mais diferentes congregações que visito e observo, nos mais diferentes líderes cristãos Brasil a fora pela internet é, nos dizeres do reverendo Antônio C. Costa, apoio político “acrítico, efusivo, público, incondicional” ao candidato do PSL à presidência. É isto que me incomoda, é isto que faz-me perder por um breve momento a esperança do crescimento da Igreja brasileira do conhecimento de Cristo.

A cada nova eleição a bancada cristã aumenta, a cada novo momento o cristão é mais representado nas esferas políticas e crê que, dessa forma simplesmente, está cumprindo o mandamento de Deus Pai ainda no Éden de zelar pela criação e protegê-la (Gênesis 2:15). Utilizamos como exemplos da necessidade dessa representação os exemplos bíblicos de José, filho de Jacó, levado cativo ao Egito e, após diversas intempéries, elevado fora a governador de todo o país (Gênesis 41:39–44); e Daniel, nobre jovem judeu, levado cativo a Babilônia e que, também, alcançou status de governador (Daniel 2:48). Desta forma, através deste discurso, que não é em essência equivocado[4], não temos lançado mão da política no Brasil para exercer o governo de bem-estar comum; não temos lançado mão da política para estabelecer um modelo alternativo de sociedade baseada nos preceitos cristãos; nós lançamos mão da política para fazê-la de azorrague, chicote, com o qual flagelamos o lombo daqueles que levam a vida de maneira diversa a nossa. E aqui entramos no cerne deste texto.

José e Daniel são exemplos de que bons governantes religiosos não propõem que os governados se comportem irrefletidamente da mesma maneira que eles o fazem em razão de sua fé. Se analisarmos principalmente a narrativa que acompanha a história de José, ela nos faz perceber que quem se adapta a cultura dominante é o próprio José que, ao longo do relato, adquire um novo nome egípcio (Gênesis 41:45) e assume o vestuário e aparência egípcia a ponto de não ser reconhecido pelos seus próprios irmãos (Gênesis 42:8). A política instituída por José, enquanto governador geral do Egito, fora apenas saciar a fome da população diante da seca e cumprindo esta tarefa, cumpriu o propósito de YHWH para sua vida (Gênesis 45:7). Nada mais.

Quando me volto para os motivos apresentados pela imensa maioria dos cristãos para votarem em Jair Messias Bolsonaro o que emerge são questões comportamentais baseadas na fé cristã e isto é um imbróglio teológico. O grande imbróglio, o grande problema é: em momento algum a Bíblia pressupõe ou incentiva que não-cristãos ajam como cristãos. Muito pelo contrário, Paulo em sua carta aos cristãos reunidos em Corinto indaga de maneira a não fazê-lo: “Porque, que tenho eu em julgar também os que estão de fora?” (1 Co. 5:12) e dedica a YHWH o papel que lhe é devido “Mas Deus julga os que estão de fora” (1 Co 5:13).

A partir do momento em que elegemos um alguém que nos promete exercer a defesa daquilo que não é papel do Estado defender ou intervir de forma alguma, como a moral e a família, damos a ele o poder que não lhe é devido. É necessário salientar, todavia, que cabe ao Estado, sim, velar pela chamada família tradicional (mononuclear e heterossexual) para sua própria preservação e desenvolvimento; o que não lhe é devido e aqui apontado é regular de forma exclusiva outros tipos de formação familiar. As leis são, sim, baseadas na moral, em nosso país majoritariamente baseiam-se na moral judaico-cristã, o casamento monogâmico é um bom exemplo disso. O que não cabe ao Estado é exercer juízo moral condenatório daquilo que a fé condena. O direito civil e religioso são matérias que devem afastar-se em momentos específicos para a manutenção da liberdade individual. Nesse sentido, eu creio, de fato, que o Estado Laico tem por intuito possibilitar a representação de grupos religiosos diversos, assim sendo, creio ser lícito e bom a democracia que haja grupos que representem a fé cristã, grupos que representem religiões de matrizes africanas, e tantas outras, desde que eleitos democraticamente. Políticos são eleitos para representarem demandas populares de grupos específicos da sociedade e dar voz aos seus anseios e emplacar leis e regulações que lhes pareçam justas. Todavia, a nossa representação cristã não deve ser em nosso favor somente, não devemos governar para beneficiar somente nosso secto religioso, mas para que, em razão de nossa cosmovisão possamos nos posicionar sobre os diversos assuntos concernentes ao bem-estar comum da nação (Economia, biossustentabilidade, segurança pública, etc), e não apenas, reafirmo, a questões comportamentais, mas uma visão mais macro da sociedade civil brasileira. Se abrirmos a brecha para que o Estado se intrometa e regule nossas vidas privadas e livre manifestação pública não será fácil voltar atrás. John Locke não poderia estar mais certo em separar o público e o privado em aspectos religiosos, afinal, se o governante estiver equivocado nas suas colações fará pecar toda uma nação que o segue acriticamente[5].

As Escrituras nunca sugeriram que não-cristãos se comportassem como nós. “Já por carta vos tenho escrito, que não vos associeis com os que se prostituem; isto não quer dizer absolutamente com os devassos deste mundo, ou com os avarentos, ou com os roubadores, ou com os idólatras; porque então vos seria necessário sair do mundo. Mas agora vos escrevi que não vos associeis com aquele que DIZENDO-SE IRMÃO, for devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão ou roubador; com o tal NEM AINDA COMAIS” (1 Co. 5:9–11). Paulo é condescendente com o homem que não conhece a Cristo e pratica toda espécie de pecado, todavia é duro com aqueles que dizendo-se conhecedores da Verdade Revelada, o Logos de Deus, o Filho Primogênito do Pai, permanecem em pecado.

Minha conclusão diante desta ignorância de assuntos teológicos básicos é: o que os cristãos brasileiros desejam não é uma nação cujo Deus é YHWH, mas uma nação que se comporte publicamente como se YHWH fosse Deus sobre. Do que adianta uma sociedade moralmente cristianizada, coisa que já temos em um alto grau, se a salvação não vem do mérito mas da Graça e da Esperança? (Efésios 2:8–9; Romanos 8:24). Estamos pregando o cristianismo sem o Cristo crucificado, sem o Filho do Homem ressurreto. E se é só isto que temos, então somos os mais miseráveis dos homens (1 Co. 15:19).

Não somos cristãos que desejam que pecadores sejam redimidos, somos neste momento cristãos que desejam que os pecadores sejam condenados fora de nossa visão, não queremos ser responsáveis pela perdição eterna de nosso próximo, mas somos. Toda vez que depositamos nossa esperança de edificação cristã no plano político perdemos a batalha espiritual. Keith Green, músico prodígio e cristão fervoroso, profetizou há quase 40 anos a nossa realidade presente[6]: “Não vemos tamanho pecado. Jesus se levantou dos mortos; nós não conseguimos nos levantar da cama. Fechamos os olhos e fingimos que o trabalho está feito”. De fato, se o deputado Bolsonaro tiver sido eleito presidente quando este texto tiver sido publicado, talvez, em seu mandato os homossexuais não se beijem na frente dos seus filhos, talvez tenham medo de andar de mãos dadas nas ruas. Talvez haja ordem, talvez haja paz social e isto não é ruim. Porém, isto não é o Reino de Deus, não é a sociedade alternativa proposta pelo Evangelho. Não se engane, nem seja enganado.

Jair Messias Bolsonaro não é um candidato cristão por defender alguns poucos pontos semelhantes aos pontos defendidos pelo cristianismo. Até os pontos que ele defende, os defende sem ter por base a defesa bíblica, ele o faz sem o respaldo do Evangelho e não podemos compactuar acriticamente e efusivamente diante disso. Acerca dele profetizou Nicolau Maquiavel em seu famosíssimo livro[7]: “Certo príncipe dos dias de hoje, cujo nome não é bom citar, prega exclusivamente a paz e a fé, sendo inimicíssimo de ambas; mas, caso ele observasse uma e outra, perderia sucessivamente a reputação e o Estado”.

Nossa salvação vem de Cristo e Cristo somente, não espere a redenção da sociedade brasileira ou de qualquer outra a não ser a redenção vinda do Cordeiro de Deus que morreu por nós. Não acredite que nos elevaremos através da política, só a morte em Cristo tem esse poder e por isso esperamos. “Se esperamos em Cristo só nesta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens” (1 Co. 15:19). Tome para si o lema do presidenciável, quiçá hoje presidente, “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João 8:32). Jesus não disse isto para os que não acreditavam nEle, mas para os que acreditavam (João 8:31). Examine as Sagradas Escrituras, seja liberto, seja livre! Ame o próximo com o amor compassivo de Cristo, que te amou quando você ainda O odiava. Este é seu dever, este apenas. “Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (João 13:35).

As maiores ondas de crescimento da Igreja Primitiva dava-se enquanto perseguida[8], desde as missões não-intencionais relatadas em Atos 8. Muito me surpreende que hoje sejamos nós os perseguidores. Nós, nós que fomos historicamente perseguidos. Negamos a última bem-aventurança: “Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo mal contra vós por minha causa. Exultai e alegrai-vos, porque é grande o vosso galardão nos céus; porque assim perseguiram os profetas que foram antes de vós” (Mateus 5:11–12). Negamos tomar parte nos sofrimentos de Cristo (1 Pedro 4:13; Filipenses 3:10–11). Tornamos cada vez mais a igreja institucional[9] empecilho para que conheçam o Pai.

Em tempos remotos, antes da manifestação do Messias esperado, YHWH exerceu juízo sobre nações em sua composição social como um todo. Neste sentido vemos nações inteiras castigas por Deus Pai diante de seus muitos pecados que atingem a medida da injustiça que os condena (Gênesis 15:16) e para este “castigo redentor” o Altíssimo lançou mão de governos temporais (Babilônia, Assíria, Roma são impérios utilizados por YHWH para conduzir seu povo ao arrependimento). Em tempos remotos YHWH falou a nós por meio de profecias e visões, no tempo presente Ele continua a se comunicar conosco, porém faz isso através do Filho. Devido uma Nova Aliança, faz-se mister um novo tipo de tratamento. Hoje YHWH não se utiliza necessariamente de nações contra nações. Toda ira do Eterno em razão do pecado e toda sua demanda por justiça transcendental foram apaziguadas e saciadas na cruz de Cristo. “As nações não são julgadas por ignorar as leis naturais, mas por ignorarem a salvação vinda de Cristo”[10].

O que nos importa saber é que, cabe a nós dar a César somente o que lhe é de direito, “não dê a César o que pertence a Deus… seus pensamentos, afeições, seu coração, sua vida”[11]. Assuma para si o ideal e consciência política daquele que você diz ser seu Senhor, a própria Palavra Encarnada. Creia que o poder temporal, de fato, é temporário, mas o Reino de Deus é eterno. “Respondeu Jesus: O meu reino não é deste mundo: se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos, para que eu não fosse entregue aos judeus: mas agora o meu reino não é daqui” (João 18:36).

Que Cristo seja formado em você através da renovação de seu entendimento. Permita-se refletir sobre. Cristo não se resume a sua vida espiritual, tudo é dEle, todos os aspectos da sua vida, até o político. Tenha consciência disso e aja através dEle em tudo. Orem pela autoridade que fora estabelecida, quem quer que tenha sido, para que possamos viver em paz e prosperidade pelos próximos anos e que o Evangelho seja propagado e a causa de Cristo seja a nossa maior preocupação e ocupação. Que a Graça e a Paz de Cristo sejam com todos que o esperam ansiosamente. E aos que acrescentam ou retiram uma só palavra do Evangelho para seu bel-prazer, anátema. Ora vem, Senhor Jesus!

NOTAS

[1] Conceituo aqui como Igreja Cristã as mais diversas vertentes cristãs no cenário nacional, de protestantes a católicos; faço isto por não ver divergências teológicas excludentes no âmbito político destes segmentos.

[2] Este texto fora redigido no dia 27 de Outubro de 2018, ou seja, antes da definição de quem seria o próximo a ocupar a cadeira presidencial.

[3] “Não votem no Hitler”, publicado em 5 de Setembro de 2018 no Youtube pelo canal Dois Dedos de Teologia.

[4] Abraham Kuyper, político e teólogo holandês, não mentiu quando disse: “Não há um único centímetro quadrado, em todos os domínios de nossa existência, sobre os quais Cristo, que é soberano sobre tudo, não clame: ‘É meu!’”. Nisto, é claro, está incluído o âmbito político.

[5] “Cartas Sobre a Tolerância”, John Locke.

[6] “Asleep in the light”, Keith Green.

[7] Capítulo XVIII de “O príncipe”, Nicolau Maquiavel.

[8] Um estudo sobre encontra-se em “As perseguições aos cristãos no império romano (séc. I-IV): Dois modelos de apreensão”, de Diogo Pereira da Silva.

[9] Falo aqui apenas sobre as igrejas físicas, denominacionais, humanas. Jamais teria a coragem, a falta de temor, a ousadia de criticar a Noiva Amada de Jesus, a Igreja universal, invisível e mística.

[10] Isabelle Pessanha.

[11] Dr. Tiago Arrais.

BIBLIOGRAFIA

Bíblia Sagrada (João Ferreira de Almeida Revista e Corrigida)

Bíblia Sagrada (Nova Versão Internacional)

DA SILVA, Diogo Pereira. “As perseguições aos cristãos no império romano (séc. I-IV): Dois modelos de apreensão”.

LOCKE, JOHN. “Cartas Sobre a Tolerância”.

MACHADO, LEANDRO E FRANCO, LUIZA. “Eleições 2018: os valores e ‘boatos’ que conduzem evangélicos a Bolsonaro”. BBC News Brasil.

MAQUIAVEL, Nicolau. “O príncipe”.

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