Gabriel Oro
10 min readNov 24, 2015

O sol fugia do outono no horizonte de Buenos Aires.

Em uma casinha de madeira, um jovem fazendeiro contava as laranjas para a feira da manhã seguinte.

“Treinta y uno, treinta y dos…”.

Em uma igreja quase vazia, o padre se perdia em orações por seu futuro pois a ganância não poupava os homens santos.

“Santificado sea tu Nombre; Venga a nosotros tu reino…”.

Em um campinho de futebol, um menino de sonhos grandes e pernas curtas corria sozinho por um gramado esburacado. Narrava as próprias ações e cantava o próprio nome, mas em sua cabeça era um famoso locutor de rádio quem dizia:

“Arranca Diego con la pelota para marcar el gol… Genio, genio, genio, gol, gooool”

Em Quinta de Olivos, um viúvo fechado em seu escritório respirava com dificuldades, conversando com o retrato da falecida esposa, loira como um anjo e sorridente como anjo algum poderia ser.

“Un poquito más. Vamos a estar juntos Vita. Un poquito más”.

Mas havia um lugar na cidade onde ninguém estava falando espanhol.

No porão de um restaurante do bairro de Almagro, um pequeno grupo de pessoas conversava sob a luz fraca de uma única lâmpada. Eram velhos, grisalhos e quase todos tinham olhos claros. Quando se viam na rua fingiam não reconhecer uns aos outros, mas novamente encontravam-se ali. Conheciam-se muito bem. Sabiam muito bem quem eram e, especialmente, o que haviam feito.

Ali, sozinhos, falavam alemão.

I

Almagro, 1974

As Últimas Palavras do Coronel

Arthur Schumann tinha medo de lugares fechados. Quando criança, caiu em uma vala aberta ao brincar perto da floresta com seus amigos, e descobriu esse medo da pior maneira possível. Conseguia sentir a terra se mexendo ao seu redor, apertando, fechando-se contra seu corpo. Era apenas uma questão de tempo até que fosse esmagado, mas seu pé estava preso e não conseguia sair. O tempo passava, as paredes nunca terminavam de se fechar mas a sensação continuava, até que uma das crianças voltou com seu pai. O sr. Schumann tirou seu filho dali e levou-o ao hospital com a certeza de que o menino tinha batido a cabeça para estar delirando daquele jeito.

Quase cinquenta anos tinham se passado e Arthur se perguntava por que eles sempre tinham que se encontrar justamente naquele maldito porão. Bem mais agradável que um buraco na terra, claro, mas ainda desconfortável o suficiente para deixá-lo com os pés batendo debaixo da cadeira, permanentemente ansioso. Mesmo tendo passado por ali várias vezes nos últimos trinta anos, para encontrar sempre o mesmo grupo de amigos, o desconforto continuava.

“Amigos”. Talvez essa palavra seja um pouco generosa demais.

Três meses desde o último encontro e aquelas pessoas pareciam ter envelhecido mais cinco anos. Será que ele também estava velho daquele jeito? Olhou para Martha, que havia achado tão linda na primeira vez que a viu. Hoje parecia impossível acreditar que um homem tinha literalmente morrido por ela todos aqueles anos atrás. Kahlo era o nome dele, um bom homem. Arthur se perguntava se ela de fato o havia amado em algum momento. Não, não aquela mulher. Martha Landau não conhecia o amor. O Coronel costumava dizer que ela teria subido nos postos militares mais rápido que um coelho subia no outro, caso tivesse tido o bom senso de nascer homem. “Você daria um ótimo homem, Martha Landau” dizia ele, e ria sozinho. Houve um tempo em que Arthur concordaria, mas nos últimos anos nada que o Coronel dizia lhe soava são.

Gunther também estava ali, era o mais jovem de todos, não tinha nem chego aos 50 anos ainda, apesar de aparentar mais. Todos ali aparentavam mais. Arthur via naquele rosto a mesma expressão distraída do dia em que o conheceu, quando o jovem Gunther Himmler se meteu em problemas com uns soldados veteranos no primeiro dia de serviço e Arthur, sabe Deus por que, o ajudou. Ele estava sorrindo, Gunther estava sempre sorrindo, desde o dia em que se conheceram. Às vezes Arthur se perguntava se ele tinha esquecido.

Não, Gunther não. Ainda tinha algo nos olhos dele, algo que os jovens não tem, algo que quem não passou pela guerra não tem. Gunther era como Arthur. Ele lembrava.

Ele sorria, mas lembrava.

Haviam mais quatro lugares na sala mas, para ser sincero, Arthur não tinha um grande apreço por seus ocupantes. A viúva Fabel e o Dr. Sebastian conversavam entr si, e aquele gorila semialfabetizado chamado Walter Low havia ido atrás do motivo pelo qual se encontraram, havia ido procurar Karl Wilhelm: o Coronel. Com exceção de Walter, cuja inteligência mal o permitia discernir entre batatas e maçãs, todos ali detestavam intensamente o coronel Wilhelm, detestavam seus encontros e detestavam não ter escolha além de comparecer. O dia no qual conheceu o Coronel chegava à memória sem convite, quando a porta abriu com uma batida forte.

Ofegando e com grandes manchas vermelhas no rosto, surgiu um homem cujo grande tamanho teria impressionado a todos na sala, caso já não estivessem acostumados com o mesmo. A cerca de dois metros do chão, uma barba branca emoldurava aquela cabeça vazia tanto de cabelo quanto de ideias. Arthur nunca havia visto Walter Low daquele jeito, suando frio e com os olhos vermelhos, tremendo de corpo inteiro. Ele ficou ali de pé por alguns segundos, incapaz de encontrar as palavras certas, até que finalmente abriu a boca e pronunciou lentamente.

— O Coronel. O Coronel está… está morto.

Todos os olhos fixaram a expressão derrotada de Walter Low, esmagados sob o peso daquela verdade impossível. Morto. Morto? Lentamente, a ideia se assentou em suas cabeças enquanto aquele gigante se jogou em uma cadeira e se desfez em lágrimas na frente de todos. O Coronel está morto. Não parecia possível. O sorriso de Gunther, que havia se desfeito por um momento, começou a voltar a seu lugar de sempre. O Coronel estava morto. Sem dizer palavra, eles se levantaram um a um, primeiro Gunther, depois Martha e então o próprio Arthur, seguido pelos outros, caminharam para a saída. Ante a visão de seus colegas simplesmente indo embora, Walter encheu o peito e começou a gritar contra seus companheiros:

— É só isso? Não têm nada a dizer? — Ele socou a parede e se colocou em posição de ataque, pronto para saltar sobre as cabeças baixas, quietas, que iam embora sem dar atenção a seus protestos — Um herói! Um herói da Alemanha e vocês não tem nada a dizer? Porcos, vocês são como os outros desse país de merda, voltem aqui!

Mas quando Arthur chegava perto da saída, Walter o segurou pelo braço. Ele se virou protegendo a cabeça, mas quando olhou para cima viu que o que os olhos de Walter Low diziam não era raiva, mas medo:

— Arthur, por favor, tem… tem mais uma… — Havia uma nota de terror muito clara em sua voz que Arthur jamais tinha ouvido antes, algo que o obrigava a se controlar. Arthur Scumann encarou fixamente aqueles olhos azuis, que somados à densa barba branca, enchiam seu rosto com uma falsa impressão de bondade. Agora, o azul dos olhos de Walter era a cor do medo. — Eu falei com a sra. Alberta, do apartamento ao lado do Coronel. Ela… ela ouviu uma música Arthur, um pouco antes de eu chegar ela ouviu uma música vinda lá de dentro, ele nunca ouvia músicas, mas ela… ela cantou a música para mim. — Walter aproximou seu rosto ao de Arthur e falou baixinho — Era a música dos ingleses Arthur, a música daquela mulher inglesa.

Sua voz fraquejou ao dizer essas últimas palavras e Arthur Schumann ficou ainda mais confuso quando Walter continuou:

— A música daquela vadia inglesa, Arthur. O Coronel disse que havia alguma coisa atrás dele Arthur, ele falava em um demônio, ele dizia que estava sonhando com a guerra Arthur, todas as noites, vendo coisas, ouvindo coisas, ele… estava com medo Arthur, o Coronel, imagine! O Coronel nunca ouviria aquela música, nunca, você sabe disso Arthur.

Mas o que Arthur tinha ouvido era suficiente.

— A senhora Alberta tem idade pra ser nossa mãe, Walter, e isso não é pouca coisa — falou, desprendendo o braço do apertão que recebia — Além do mais, se existisse um demônio, ele estaria do nosso lado. Eu vou pra casa, e você faria bem em seguir o exemplo.

Sob os protestos de Walter Low, ele foi embora. Não queria saber dos demônios do Coronel, já tinha os próprios para com que se preocupar.

E um deles havia morrido hoje.

— Um velhaco de mais de 80 anos morre de qualquer coisa no sofá, veja bem, não consigo pensar em algo mais comum para um velhaco de 80 anos fazer, e eles acordam dois detetives do Homicídios só porque esse filho da puta tinha uma arma pendurada na parede? Que merda é essa? Se isso significa que tem uma arma na cena da morte, vamos começar a visitar todo idiota que morre do coração e tem facas na cozinha! Pelo amor de…

O detetive Romildo Pernáu não conseguiu esconder uma risada ao ouvir os protestos de seu parceiro. Realmente, aquela “cena do crime” não era um homicídio nem crime nenhum, apenas um velho que morreu sozinho em seu sofá, não havia necessidade de dois representantes da polícia de Buenos Aires estarem ali. O velho tinha um apartamento pequeno e bastante organizado, à exceção do cadáver sendo empacotado no sofá. Romildo mexeu em uma vitrola, estava ligada com o disco ainda girando e a agulha raspando o final. O velho tinha morrido ouvindo música. Bem, supunha que era melhor que morrer em silêncio, se há alguma diferença. Colocou a agulha no início do disco enquanto olhava o apartamento.

— Ah agora sim, a madame não quer dançar também? Pare de brincadeira e vamos embora daqui, Pernáu. — Disse seu parceiro, Fulgêncio Verarde, ao ouvir a melodia que saía daquela vitrola velha.

Romildo reconhecia a música. Vera Lynn, seu pai gostava muito. No meio da sala havia um grande armário, cuja madeira de tom mais escuro chamava atenção naquela moradia simples e despida de outros luxos. Romildo se aproximou um pouco distraído e, vendo que a chave estava na fechadura do armário, não viu problema em abrí-lo. Não sabia muito bem por que fez aquilo e, tempos depois, percebeu o quanto sua vida teria sido diferente se jamais tivesse se interessado naquele armário. As portas abriram juntas com um fino rangido e o detetive deu um passo pra trás quando olhou lá dentro.

— Fulgêncio, dê uma olhada nisso.

O homem no sofá de repente não parecia mais só um velhaco. Em seu armário, exposto no meio da sala, uma pilha de medalhas e um uniforme mostravam tratar-se de um militar. Medalhas cuidadosamente organizadas em torno de uma grande bandeira vermelha, com um círculo branco e um símbolo preto no centro. O símbolo era uma suástica. Uma bandeira nazista.

— Filho da puta. Um refugiado? Trinta anos, e esses caras continuam aparecendo. Bom, vá a merda. Esse aí fugiu e não há nada a ser feito, vamos embora daqui Romildo, está frio e na delegacia vai estar pior.

Romildo Pernáu fechou seu casaco com os olhos fixos naquela bandeira. O dia no qual aprendeu, na escola, o que havia acontecido naquela guerra poucos anos antes de seu nascimento ainda surgia em sua mente de vez em quando. Ir para casa depois da aula com uma dor em seu peito, uma impotência entalada na garganta, um desejo de discutir, de brigar. Hoje, mais de quinze anos depois, olhava para aquilo e sentia apenas uma tristeza nua pelo que havia acontecido com aqueles povos. Seu povo. Romildo passou os dedos pela fina corrente que usava no pescoço, escondida sob o casaco, presente de sua mãe. Sentia a foto dela, que pendia da corrente como um escapulário, e do lado contrário a textura de uma estrela de Davi que o lembrava da fé que sua mãe teve até o fim, uma das poucas características que ela não conseguiu lhe passar. Deu as costas para aquela bandeira e já estava a caminho da saída quando algo o fez voltar novamente os olhos para o armário, dessa vez para uma foto junto das medalhas, na qual três homens encaravam a câmera em posição de sentido. Aproximou-se, encarando aqueles rostos sérios e sem cores, que batiam continência em algum lugar do mundo.

— Algum problema? — perguntou Fulgêncio.

— Não… não, tudo bem.

Romildo Pernáu, o jovem detetive de homicídios da polícia de Buenos Aires, agora escutava aquela música inglesa com muito menos prazer do que a um minuto atrás.

O que o Sr. Arthur Schumann fazia em uma foto com aquele homem?

Em sua casa no bairro de Almagro, as palavras de Walter Low ainda se batiam na cabeça de Arthur. O Coronel tinha demônios? Não conseguia dormir, estava sendo perseguido pela culpa? Será que até mesmo o pior deles era capaz de algum remorso? Arthur deitou em sua cama e lembrou de algo que o Coronel costumava falar sobre o dia em que morresse. Dizia que sua única certeza é que suas últimas palavras “seriam para o Reich, para a Alemanha”. Perguntava-se se o velho teria sido capaz de manter essa promessa quando a hora chegou.

— Não, nem ele. Nem o Coronel. — Arthur fechou os olhos e perdeu a visão, esperando que os sonhos o encontrassem.

Ele queria acreditar que aquela história terminava ali, que nunca mais falaria sobre o assunto. Não sabia o quanto sua vida havia acabado de mudar, nem que seria visitado no dia seguinte por um velho amigo. Não sabia que seus encontros indesejados em locais fechados ainda não tinham chego ao fim.

Mas mais do que tudo, ele não sabia que as últimas palavras do Coronel haviam de fato sido em alemão.

“Erbarme dich”.

“Tenha piedade”.

Que foram ditas encarando o próprio reflexo.

Nos olhos de um demônio.

Este foi o primeiro de onze capítulos da série “O Fantasma de Varsóvia”, publicada inteiramente aqui no Medium. Se você gostou do que leu até agora, clique no botão abaixo e recomende para que outros conheçam a história. Você também pode marcar onde parou com o botão “bookmark” abaixo. Se quer mandar uma opinião diretamente ao autor, envie um email para gabriel.f.oro@gmail.com ou deixe um comentário por aqui. Obrigado pelo interesse.