Croniquetas de Cuba
Entre 15 e 28 de fevereiro, estive em Cuba com meu marido e aqui estão minhas impressões, causos de viagem e algumas dicas práticas para quem quer conhecer a ilha — que tem bem mais do que charuto e rum para oferecer
- A que horas sirven el desayuno?
- Ustedes me digan! Están de vacaciones.
Assim fomos recebidos por Leticia, a dona da casa particular onde ficamos em Havana. Dois amigos haviam recomendado o lugar e, assim como eles, voltamos encantados por Leticia e seu esposo, Giraldo.
Havana choca. Pela antiguidade das construções; pela quantidade de turistas — e de cubanos abordando turistas; pelas ruas escuras à noite; pela segurança; pela sujeira; pelas conversas.
Leticia e amigos brasileiros que já haviam visitado a ilha nos alertaram bastante sobre essas abordagens. Em geral, são cubanos que querem "fazer o seu" ganhando uns trocados dos gringos — 1 CUC, moeda de turista, vale 1 dólar ou 0,25 centavos do peso cubano, moeda usada pelos locais. Tem gente que vive com 10 dólares por mês em Cuba. Calculem a alegria de um cubano que consegue 1 CUC. Ouvimos que, em breve, as moedas devem ser unificadas, por isso, a maioria dos pontos comerciais estava aceitando ambas.
Ao flagrar um turista — tarefa nada difícil quando é possível andar com segurança com uma câmera pendurada no pescoço, além da evidência estampada na cor da maioria dos turistas, brancos — , o cubano-malandro chega perguntando de onde tu és. "Italia? España? France?". Nunca dizem que somos brasileiros, o que não digo com orgulho, pelo contrário. A partir da resposta, começa a demonstrar seu conhecimento sobre o país e a falar no idioma natal do turista. Eles aprendem diferentes línguas na escola mesmo, conhecem a história e atualidade de diversos países, e é fácil se encantar pela conversa quando se está num país novo e sedento para ouvir histórias, como a gente estava. Mas estávamos vacinados em relação às tais abordagens que, em geral, querem te levar ao bar X ou Y, ou ao "último dia do Festival do Charuto" (todo dia é o último dia do Festival do Charuto ou o show derradeiro de algum músico do Buena Vista Social Club) onde o cubano-malandro ganha comissão por cada gringo que chega ou, no mínimo, um almoço pago pelo turista que anda com CUC.
Ficávamos divididos porque, afinal, queríamos conversar com as pessoas. Mas, no primeiro dia de caminhada, despachávamos todo mundo que nos abordava. Chegamos em casa no fim do dia meio frustrados e comentamos com Leticia que era porque gostaríamos de trocar uma ideia com os cubanos. Ela disse que não havia problema nisso, desde que a abordagem partisse da gente. "Vocês estão de férias. Mas os cubanos estão trabalhando. Quem tá na rua abordando turista é porque vai achacá-los", dizia. E mais: "Eles vão dizer que precisam de dinheiro, que falta leite para a filha etc. Mentira. Não falta leite coisa nenhuma."
Era clara a posição de Leticia e Giraldo em relação ao governo cubano, que autoriza algumas famílias, como a deles, a receberem turistas em suas casas.
Enquanto caminhávamos em direção a Habana Vieja, o centro histórico da capital, era difícil distinguir se naquelas casas de aparência tão inóspita vivia alguém ou mesmo se alguém vendia algo — não há quase nenhuma publicidade e fachadas indicando negócios comerciais.
O "golpe"
Caminhando próximo ao Capitólio, no segundo dia em Havana, uma mulher se aproxima, puxa conversa mas não parece que vai nos achacar. Faz umas perguntas rápidas, como se não estivesse muito interessada, e segue caminhando, apressada, dizendo que está indo para o trabalho e "que desfrutemos a cidade". Fiquei toda emocionada, "enfim alguém que só queria nos dar as boas-vindas!".
Cinco passos adiante, outra mulher se aproxima e diz "vocês não são os brasileiros que estão no bairro tal? Acho que os vi ali perto de casa blablablá" e todas as informações que tínhamos passado para a sua comparsa. Que malandragem! Assim que me dei conta — o que não demorou muito, afinal, como disse um amigo, sou brasileira, eu inventei o golpe! — , e parei de responder as perguntas e ela logo se foi.
Segurança
Por mais que a primeira impressão seja chocante e alguns lugares por onde andamos nos remetesse a locais perigosos em Porto Alegre — como viadutos e ruas escuras e desertas — , nunca me senti tão segura em nossas andanças pela América Latina. Caminhávamos a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, com a câmera pendurada no pescoço.
Mesmo assim, as portas e janelas são todas gradeadas. Questionamos Leticia sobre isso, afinal, se era tão seguro, pra que tanta grade? Ela atribui a duas razões: uma delas é que, "bueno, uno hay que prevenir". Além disso, a arquitetura colonial, disse ela, é caracterizada, entre outras coisas, por grades. E então eu percebi que, mesmo nas janelas que dão para o pátio interno da Casa de Leticia, havia grades.
Transporte
Experimentamos todo tipo de transporte rodoviário em Cuba: táxi particular estatal, táxi particular provavelmente não autorizado, táxi coletivo autorizado, bici-táxi, coco-táxi, ônibus fretado e ônibus de linha. Este último é muito barato, algo equivalente a US$ 0,10. Em geral, circulavam bastante cheios, independentemente da hora do dia.
- O táxi particular — chamado assim para se contrapor ao coletivo, imagino, porque na verdade ele é estatal — nos custou 25 CUC (US$ 25) do aeroporto até Vedado, bairro em que nos hospedamos em Havana.
- O coco-táxi foi 8 CUC de Havana Velha até Vedado, o que descobrimos depois ser uma fortuna.
- Para fazer o mesmo trajeto, só que inverso, o táxi coletivo nos custou 1 CUC por nós quatro — eu, meu marido e nossos dois novos amigos cubanos, graças a quem conseguimos pagar o preço cobrado de locais. Quando embarcamos, já havia uma menina no banco de trás. Lázaro e Roland pararam uns três táxis coletivos até que um aceitasse levar dois turistas pelo preço de locais. Quando contamos que havíamos pago 8 CUC por um coco-táxi no dia anterior, Lázaro disse: "por esse valor, eu carrego vocês dois nos ombros!"
- Mesmo trajeto de novo, agora com táxi particular: ele queria cobrar 5 CUC, fechamos por 4 CUC. Mas quase desistimos quando ele insistiu nos 5 CUC "porque não tinha troco". Depois que entramos, ele ficou tirando com a nossa cara: "Então se nenhum taxista tem troco, vocês fazem o quê, voltam pra casa?". Explicamos que resistimos porque outros taxistas já tinham vindo com esse papo de que não tem troco só para cobrar mais, inclusive como acontece no Brasil. Ele não baixou a guarda: "Pois é, isso tem em todo lugar, é o jeito que as pessoas têm de 'fazer o seu'. Tenho certeza de que vocês, nas suas profissões, de um jeito ou de outro, fazem o mesmo". (pausa para autorreflexão)
O cara era gente boa, no fim. Conversamos bastante sobre Cuba e Brasil.
- Para viagens intermunicipais, há duas companhias em Cuba, a Astro, exclusiva para cubanos segundo Leticia, e a Viazul, que já havia sido recomendada por amigos pela pontualidade e qualidade dos ônibus. Nossa experiência provou que sempre é possível ter azar. Pegamos um ônibus da companhia de Trinidad a Santa Clara que não era tão novo assim, mas tinha ar-condicionado pelo menos; depois, quando sairíamos de Santa Clara para Santiago de Cuba, o ônibus atrasou. Na hora em que ele deveria partir, nos avisaram que ele recém havia saído de Havana e que levaria ainda umas 4 horas para chegar. Como já estávamos meio arrependidos de fazer a viagem a Santiago (seriam 12 horas de estrada na ida e 16 de volta a Havana para ficar 48h lá), trocamos a passagem e voltamos pra Havana mais cedo do que prevíamos.
- De Havana para Trinidad, optamos por um ônibus de agência de turismo pela comodidade: ele saía do hotel Habana Libre, pertinho da casa onde estávamos. Assim evitaríamos perda de tempo e dinheiro tendo que pegar um táxi para comprar a passagem antecipada no terminal da Via Azul e outro táxi para finalmente pegar o ônibus rumo a Trinidad. Resultado: o ônibus demorou quase 8 horas para chegar a Trinidad, porque passou em vários hotéis antes de sair de Havana e, na estrada, fez duas paradas para refeições e comprinhas de suvenires. Os ônibus da Via Azul fazem o trecho entre 5h e 7h, segundo o site (não entendi a diferença). Honestamente não sei o que vale mais a pena… O ônibus fretado custa 2 CUC mais que o da Via Azul. Vantagem da Via Azul: pagar com cartão de crédito pela internet.
Internet
Não faz um ano que os cubanos têm acesso à internet sem fio nas ruas de diversas cidades. Em geral, são pontos próximos a hoteis e praças. O cartão que dá direito a uma hora de acesso custa 2 CUC (US$ 2) nas lojas da ETECSA (Empresa de Telecomunicaciones de Cuba S.A.) e 3 CUC (US$ 3) nas mãos de ambulantes nas ruas (não fui atrás pra saber se eles têm autorização para vender).
Além de cara, a conexão é lenta. Mas é melhor do que antes, quando eles contavam apenas com as lan houses da ETECSA para falar com familiares que vivem fora e acessar redes sociais, atividades mais realizadas pelas pessoas com quem conversamos nas ruas. Internet em casa é ainda muito mais cara e paga de acordo com a quantidade de dados trafegados — por isso eles costumam apagar as trocas de e-mails anteriores ao responder alguém e são bastante sucintos nas mensagens. E, pelo que pude entender, só algumas pessoas têm autorização pra ter internet em casa, como jornalistas e médicos.
A possibilidade de andar na rua com segurança nos fazia refletir muito sobre o que é ser livre, afinal. Em Porto Alegre, especialmente no último ano, as pessoas têm andado com muito medo nas ruas. A polícia recomenda que não se atenda o celular na rua, que não se espere a carona dentro do carro etc, como se a responsabilidade de ser assaltado fosse da vítima.
Andar tranquilamente pelas ruas de uma cidade é qualidade de vida. É sentir-se livre. Apenas um senhor aposentado com quem conversamos sobre diversos assuntos na rua nos recomendou que evitássemos ruas desertas e "não contássemos dinheiro na rua". Mas reforçou que sim, era seguro. E quando mais uma vez demonstramos como isso era bom e que na nossa cidade, no Brasil, era diferente, ele disse: "É, mas ninguém quer vir de lá pra cá, não é mesmo?"
Controle
Em cada quadra de cada cidade cubana, há o presidente do CDR (Comitê de Defensa da Revolução), algo que me deixava curiosa e um pouco tensa. Não porque temia que algo poderia acontecer conosco, mas que troço bizarro é ter uma espécie de olho do governo na tua rua. Perguntei para um garoto de 20 e poucos anos se ele não se sentia vigiado o tempo todo. Ele disse que não, que não era pra isso que os CDR existiam, que serviam para garantir uma certa ordem na região. Por exemplo: se tem algum problema no bairro, a polícia vai direto no CDR saber o que está acontecendo. O papo não foi muito adiante.
Mas outras conversas nos mostravam os olhos dos Castros no cotidiano cubano. Em Trinidad, um senhor que recebe turistas nos explicou que cada casa particular tem um livro que todo hóspede assina — assinamos em todas as casas e vimos que se tratava de um documento padrão. Da mesma forma, se um ou uma turista quer levar algum cubano ou cubana para seu quarto, é preciso que este cubano assine o livro. E é assim que o governo controla o que este senhor chamou de jineteras, assim, no feminino mesmo. Quando perguntei se não havia jineteros, ele confirmou, mas, né, machismo não é exclusividade do Brasil.
O que são jineteros? Encontrei essa definição genérica que se refere àqueles "golpistas" que comentei antes. No caso das histórias contadas por esse militar aposentado, ele dizia que era outro nome para prostituição e nos falou que "muitos cubanos se iludem que a vida fora da ilha é muito melhor e querem casar-se com estrangeiros para sair de Cuba".
A fiscalização é assim, segundo esse senhor: se o governo (que deve ter acesso a esses livros, pelo que eu entendi) percebe que uma pessoa frequenta muitas casas diferentes, provavelmente acompanhando turistas diferentes a cada vez, essa pessoa é chamada a dar explicações. Minha leitura foi: cubanos não podem dormir com quantos estrangeiros quiserem. Não estou negando a existência de jineteros, prostituição ou cubanos que querem sair da ilha — nem julgando essas pessoas, aliás — , mas o que um governo deveria ter a ver com isso mesmo?
#iphonephotography
Enfim, praia
Trinidad é uma cidadezinha de 500 anos com ruas de pedra. Bastante turística; lembra San Pedro de Atacama, no Chile: um hub para atrações em cidades próximas.
De lá, fomos a Playa Ancon (foto acima) e ao Parque Guanayara (foto ao lado). Para ir à primeira, há um ônibus baratinho (2 CUC ida e volta) saindo a cada hora cheia — o último sai às 18h da praia. É possível pegar táxis coletivos, que saem em conta também.
Em uma das vezes que fomos à praia, fizemos um passeio de lancha para fazer snorkel (10 CUC por pessoa). Moreno dedicou-se boa parte do passeio a fazer fotos subaquáticas com minha capinha à prova d'água para iPhone enquanto eu tentava reaprender a respirar com aquele troço na boca. Perdi um bocado de tempo com a cabeça fora d'água; Moreno perdeu as fotos porque o app não salvava automaticamente. Ainda assim valeu a pena ver alguns peixinhos coloridos e curtir o silêncio com a cabeça enfiada no Mar do Caribe.
A praia é muito tranquila, apesar de bastante turística. Diferentemente de Varadero (leia mais abaixo), não há ambulantes te abordando.
O melhor bar da cidade, sem dúvida, é o La Botija. Tapas maravilhosas, drinks bem feitos, cerveja com preço bom, atendimento ótimo e música ao vivo muito boa — à exceção do último dia, quando a banda recém tinha montado o palco e acabou recolhendo tudo e indo embora. Perguntei ao garçom se não haveria música naquela noite e ele: "no porque se murió un vecino". Na saída, passamos pelo velório em um das casas na mesma quadra. No dia seguinte, soubemos que três jovens haviam morrido em um acidente de carro. Provavelmente bêbados, segundo o senhor que nos contou.
Ainda em Trinidad, fomos a uma balada em uma caverna! O ambiente é muito massa, vale a pena a experiência. Dia de semana tem basicamente só turistas; no fim de semana, é o local onde os cubanos provam que são bailarinos muito mais habilidosos que os gringos, sem que esses se intimidem, já que estão todos borrachos mesmo e a pista vira uma grande salada movida a reggaeton.
Ah, passei mal do estômago em Trinidad e conheci, enfim, uma médica cubana. Atendimento nota 10, não tenho do que reclamar. Todos foram muito atenciosos. A médica tirou minha febre com um supertermômetro que sequer encostou em mim: 38 graus Celsius. Tratamento: soro, antitérmico (dipirona+paracetamol no mesmo remédio) e uns "bichinhos em pó" para repor a flora intestinal.
Provavelmente foi resultado do projeto "Todo dia um mojito" em paralelo com "Um daiquiri por dia" — a culpa, que fique claro, é do gelo nos drinks, geralmente feitos de água da torneira, algo não recomendável pela médica. Os camarões, as lagostas e todos os frutos do mar que havíamos comido desde o primeiro dia não tinham nada a ver com isso. Nem o calorão do inverno cubano.
Rapidinhas
- Fique em casas particulares. É mais barato, as famílias são geralmente muito atenciosas e gentis e é um jeito de se aproximar um pouco mais dos cubanos. Todas as casas em que ficamos tinham boa estrutura, inclusive com ar-condicionado nos quartos. Na alta temporada, a média de preço é 30 CUC por noite por quarto (casal ou solteiro). O café da manhã é à parte, 5 CUC. Além da Casa de Leticia em Havana, recomendamos a casa de Marilén e Hermes, em Trinidad (Hostal El Gallego).
- Leve euros, em cash. O dólar é taxado em 10% nas casas de câmbio e ninguém aceita cartão de crédito. Não troque dinheiro na rua, procure as CADECAS, casas de câmbio autorizadas.
- Em Havana, vá ao restaurante Biky (comida muito boa, preço honesto e ambiente super agradável). De dia, compre doces na confeitaria de mesmo nome, logo ao lado.
- Ainda na capital, vá ao La Zorra y El Cuervo, jazz bar onde vão muitos turistas mas também gente local. Sempre tem música ao vivo.
- Em Habana Vieja, vá a lojinha de design Clandestina — um lugar legal para comprar alguns suvenires que não sejam rum, charutos e maracas. Lá eles te dão um mapinha com outros pontos legais para se visitar, como o Dandy Café y Restaurant onde tomamos um bom café e comemos bruschettas bem gostosas.
- O melhor expresso da viagem, segundo o Moreno, foi no O'Reilly, também em Habana Vieja.
- Leve sempre consigo um rolo de papel higiênico. Os banheiros não costumam ter, inclusive em alguns restaurantes — aliás, não raro, não tem nem assento nos vasos sanitários. E moedas! Muitos banheiros são pagos.
Varadero por um dia
"Achei que viveríamos um dia de ricos", disse eu para o Moreno, decepcionada com nosso dia de all inclusive num hotel em Varadero.
"Os ricos estão em Cayo Coco, Cayo Guillermo, Cayo Largo…"
"Caio Blat!"
:D
O pacote que compramos era um bate-e-volta de Havana a Varadero, com transporte, refeições e bebidas inclusas num hotel à beira-mar. Tudo muito tentador. Saímos bem cedinho, antes do sol nascer, e chegamos lá para o café da manhã. Fomos recebidos por um salão enorme, cheio de ilhas com as mais variadas comidas — de frutas e pão torrado a peixe e carnes assadas — , sujeira pelas mesas e chão e crianças correndo por todos os lados.
Mas Varadero é linda demais e só queríamos saber de ir para a beira da praia. Só que não era nosso dia de sorte. Era um dia de vento, muito vento. Ficamos quase duas horas na praia de teimosos, enrolados em duas toalhas cada um. Deu pra molhar os pés e sentir aquela água morninha, mas não deu pra tomar banho.
Entramos na área do hotel outra vez para almoçar. Era recém meio-dia e meia e enfrentamos a terceira fila do dia, depois da fila do café e da fila para pegar a tolha do hotel. Depois ainda teríamos a fila para pegar mojito (que às 16h já tinha acabado!) e a fila para pedir uma pizza — que também já tinha acabado, nos obrigando a pedir uma hamburguesa tão ruim quanto a comida do almoço. Enfim, não foi legal.
Santa Clara
Feira do Livro
Zika
Museu da Revolução
Aqui no se rinde nadie, carajo
Quando li a frase na camiseta dessa cara dentro da Igreja São Francisco de Paula, não sabia do que se tratava, só achei curiosa e bem-humorada, especialmente por estarmos dentro de um lugar como aquele.
Uma semana depois, deitada sob o sol na Playa Ancón, enquanto lia o conto Reunião, de Julio Cortázar, publicado na coletânea que levei pra me acompanhar nessa viagem, descobri que se tratava de uma frase de Camilo Cienfuegos durante o combate entre revolucionários cubanos e o exército de Fulgencio Batista em 1956. Coincidência? Sim.
Yasiel Elizagaray
Em Trinidad, no caminho da casa onde estávamos hospedados, passávamos todos os dias por essas janelas abertas. Por elas, víamos quadros diferentes daqueles das lojas de artesanato que emolduravam praias, carros rabo de peixe e dançarinos cubanos. Eram rostos perturbadores, mas havia algo de verdade ali que os tornava únicos e belos, e nos fascinava.
Até que, numa noite, paramos por mais tempo diante da porta e nos convidaram para entrar. Ali fica a casa-ateliê de Yasiel Elizagaray.
Yasiel pinta palhaços. Confesso que não tinha percebido o nariz redondo nas obras que víamos pela janela. Jornalistas que somos, enchemos o cara de perguntas. Ficamos horas conversando com ele, que tem 28 anos, mora há cinco anos em Trinidad, com a mulher e o filho. Me chamou a atenção quando ele disse que não era "nativo daquela casa". Depois de outras conversas e alguma pesquisa, entendi que é muito comum os cubanos envelhecerem e seguirem morando com os pais e, portanto, nascerem e morrerem na mesma casa. Só a partir de 2011, liberou-se a compra e venda e permuta de imóveis (com algumas restrições ainda, como limite de 1 imóvel por pessoa salvo exceções). O decreto beneficiou pessoas como os novos donos de casas particulares, que puderam investir em um imóvel maior ou um segundo imóvel da família para receber turistas. E gente como Yasiel, que queria morar em uma cidade com mais possibilidade para viver de sua arte.
E ele tem conseguido. Um representante canadense conheceu seu trabalho ao visitar Trinidad e hoje leva suas obras a apreciadores de diversos países. Enquanto seu trabalho viaja o mundo, Yasiel ainda não teve a chance de sair de Cuba, mas planeja fazê-lo em breve.
Yasiel define sua arte como contestatória e global. "Para mim, tudo é um jogo. Me interessa toda exploração do homem sobre o homem". Também diz que há um quê de surrealidade nos seus quadros, noção que pode tanto aparecer em uma "vaca-porco" sobre a mesa de jantar da família cubana (para quem comer carne bovina é um luxo) quanto entendida de uma forma particular: "O que me nutre é o que se passa no meu país. As pessoas, meus amigos… Alguns, por exemplo, são presidiários. Essa é a realidade deles, mas, para nós, pode ser algo surreal".
Falamos muito sobre o que é ser livre. Novamente nos pegamos exaltando a possibilidade de caminhar livremente pelas ruas de Cuba sem se preocupar com questões de segurança. Ele concordou, mas pontuou: "Nós temos a liberdade de ir e vir, mas não tenho a liberdade de dizer tudo o que eu penso. Se digo, na rua, coisas que estou dizendo aqui para vocês, vou ser chamado de contrarrevolucionário."
E o que é ser revolucionário se não mudar as coisas que vão mal? Aqui o conceito se inverteu: ser revolucionário é conservar tudo! — Yasiel
Saímos de lá com um palhacinho para enfeitar nossa casa. Custou 50 euros. O personagem estava com o nariz em branco quando o escolhemos, e Yasiel perguntou de que cor queríamos pintá-lo "porque assim faríamos uma obra coletiva".
Saí do ateliê — e de Cuba — com bem mais perguntas do que quando cheguei. Fiquei pensando que papel encarnamos nesse grande jogo global, pra usar as ideias de Yasiel, onde ninguém, afinal, é plenamente livre. Somos todos palhaços? Somos todos exploradores? Será que essa abertura gradual da ilha vai fazer mais bem ou mal aos cubanos? Vai melhorar a economia e o dia a dia da pessoas? Vai garantir direitos fundamentais inexistentes hoje? Não vai por em risco conquistas sociais como educação e saúde gratuitas e de qualidade? Não vai deturpar alguns valores presentes no cotidiano cubano, como a solidariedade?
A ver.