A garota mais legal do mundo

Uma história sobre como eu descobri que jamais namoraria meninas que são mais legais que eu [E não uma história sobre depressão]

Henrique S.
O fluxo [ ~]
16 min readFeb 27, 2016

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Um dia estava conversando com uma amiga minha, daquelas bem próximas, sobre quem é a pessoa que causa mais ciúmes na minha namorada. Esperava que ela respondesse “eu, é claro, porque você já gostou de mim e ainda fala comigo”, mas ela respondeu:

Com certeza a Garota Mais Legal Do Mundo é a pessoa que mais descabela sua namorada.

Já deixo bem claro que não entendo nada de mulheres, para mim é um mistério e graças a Deus sempre será.
Eu ri por um instante porque não acreditei que aquela resposta era séria. É inacreditável que alguém sinta ciúmes da Garota Mais Legal Do Mundo, e foi exatamente isso que respondi.

Você não sabe nada sobre mulheres. É a Garota Mais Legal Do Mundo que tira o sono da sua namorada.

“Tirar o sono” deve ter sido uma hipérbole. Espero que seja uma hipérbole.

Conheci a Garota Mais Legal Do Mundo (GMLDM) aos 18 anos, logo que minha vida descarrilhou numa depressão aparentemente irreversível. Naquele estado, ser tão legal não fez muita diferença. Talvez isso tenha chamado a atenção dela. Não sei realmente por que ela veio falar comigo, lembro de ter balbuciado algumas palavras nada agradáveis mas também não ofensivas. Ela respondeu apenas com:

Ótimo, fica bem, nos vemos por aí. Não esqueça meu nome. É Garota Mais Legal Do Mundo. Nós definitivamente nos veremos por aí.

Ela era gentil.

Maior parte das garotas são gentis perante alguém sentado numa calçada em posição fetal ocasionalmente murmurando. Percebi isso em minhas crises. Já me passou muitas vezes na cabeça como é fácil usar isso para conquistá-las, mas é meio mau-caratismo, nunca tive coragem de aplicar. Nem mesmo de tentar. Se você já fez isso, me desculpa, não queria ofender. E se casou assim, definitivamente, não queria ofender. Se Deus uniu, eu é que não vou questionar.
Parece que existe uma força nas meninas que faz elas notarem alguém num estado como o meu e apitarem internamente “ajuda ele, ajuda ele”. Já me ofereceram até um… é melhor deixar quieto, prossigamos. Com a GMLDM não foi diferente. Ela veio, naquelas roupas bizarras que só ela usa, fazendo uns gestos bizarros que só ela faz, conversar comigo. “Ei, o que aconteceu? A vida é bonita, sabia? O céu é azul, tem um monte de estrelas. E a melhor sensação que existe é a de passar cotonete no ouvido”. Já tinha ficado claro que não estava ouvindo uma pessoa normal, mas confesso, um grau de demência daquele (ainda) era inédito pra mim.

Alguns meses depois, lá estava eu no mesmo lugar fazendo a mesma coisa. Minha vida como um semi-rapaz depressivo não tinha muitas variações, os dias eram todos meio parecidos em sua casca. Então ela apareceu novamente, do mesmo jeito. Esperava até que fosse usar as mesmas palavras, entretanto já sabia que era alguém de quem não poderia prever um comportamento, as chances da GMLDM ser uma caixinha de surpresas eram altíssimas.

Não estava errado.

Ela sentou ao meu lado e colocou um fone daqueles grandões (headphone) nos meus ouvidos. Do nada. Tirou não sei de onde. Daria tudo pra estar atento naquela hora porque essa lacuna na minha memória exige ser preenchida.

Trouxe música pra você ouvir! Música faz muito bem, sabia? Quando você começa a prestar atenção, volta a respirar no tempo do cosmos.

Eu tinha certeza absoluta de que estava falando com uma retardada mental. No entanto, ela não era infeliz e eu era. Quando se é infeliz, pensa-se “ignorância é felicidade” com certa freqüência; mas no andar abaixo da infelicidade, o andar da busca pela morte, essa idéia também não tem valor nenhum. Só pude ficar feliz por ela.

Filosofias de boteco a parte, a música era muito boa. Algo que nunca tinha ouvido antes, inclusive em gênero. Enquanto me espantava com a maneira que a música escavava um espaço no meu coração, ela olhava para mim, fixamente. Não sabia se estava com mais expectativa em me tornar uma pessoa melhor (menos triste) ou em ouvir o que eu tinha a dizer a respeito daquele som. Minutos depois descobri, e a conversa em seqüência vai te fazer descobrir também, mas você está errado.

Assim que acabou, e ela sabia que tinha acabado como se estivesse cantando pra mim, ela pediu minha opinião. Elogiei com bastante firmeza, ela ficou satisfeita. “Eu que fiz essa música!” disse, com um sorriso enorme no rosto. Só pude soltar um “oh”. “E você está respirando como eu disse! Iupiiiii! Deu certo” continuou, numa alegria descomunal, como se tivesse realizado o primeiro truque esotérico de sua vida toda.

Ela tinha 18, também. Provavelmente era o primeiro truque esotérico da sua vida toda, se o fosse de fato. Aos 18 eu, todavia, não sabia o que essa expressão significava. Nem me faz diferença saber.

Não voltei pra casa naquela noite. Passamos ali sentados, conversando, olhando para o céu. Ela me mostrando várias formas e explicando simbolismos que até hoje não entendi, eu contando da minha vida e eventualmente compartilhando que era um doente mental de múltiplas personalidades sendo que uma delas tramava matá-la naquele exato momento (e ela rindo muito como se isso me tornasse a pessoa mais divertida do mundo; “é sério!” eu dizia, desesperado, mas isso só a deixava mais feliz). Ela me mostrou mais algumas músicas e me explicou como elas se formavam em sua cabeça, com muita eloqüência, riqueza de detalhes, eu conseguia entender perfeitamente como cada símbolo de sua mente se materializava em uma seqüência de acordes maluca e até comecei a identificar alguns significados maiores de suas canções.

Naquela noite, ela me apresentou a palavra “cosmovisão”. Eu, pobre menina, tudo o que pude oferecer foi a palavra “dissonância”.

Nós combinamos de nos encontrar naquele lugar por algum tempo. Raramente cumpríamos. Se disser que nos encontrávamos uma vez por semana já estou exagerando. E quando o encontro acontecia, ríamos, “você veio aqui algum dia da semana? Porque eu não”, “nem eu!”, e aí ela colocava aquelas conversas de alinhamento das estrelas e tudo mais e de não poder ter sido em vão que coincidimos de estar no lugar só no dia em que ambos decidiram ir. E continuava o assunto.
Ela realmente acreditava naquilo.
Depois de um tempo entendi que não era bem questão de “acreditar”, mas quem é que entende? Quem é que quer entender? Na realidade, entender isso é um estorvo, te torna vítima de se solidarizar com pessoas que acreditam na Revista Capricho; não, nem ela nem eu acreditamos na Revista Capricho, mas sentimos compaixão de quem cai em truques que possuem seu pinguinho de verdade, porém ninguém acredita; então, essa era a garota, esse era o universo que ela me apresentava, e ou eu me dedicava a entender como funcionava seu raciocínio simbólico ou passaria noites vagando numa mente alienígena pensando na minha própria miséria espiritual. Por um tempo, eu fui um astrólogo da alma da Garota Mais Legal Do Mundo. Ela tinha a Astrologia Mais Legal Do Mundo, e as Músicas Mais Legais Do Mundo.

Numa noite qualquer ela tentou me beijar. Ela estava meio bêbada. Eu, obviamente, recusei.

Isso me deixou muito mal. Ela não pôde perceber na hora, mas não levou muito até ela me perguntar “eu fiz algo que não devia quando estava bêbada, né?”. É claro que não, não havia nada de errado em tentar me beijar tanto quanto não havia nada de errado em eu aceitar ou recusar. Mas as pessoas não tomam cuidado com a imaginação do depressivo. Elas não sabem que alguém tentar te beijar bêbada significa, na mente auto-depreciativa, “as pessoas precisam beber pra querer algo comigo”.

Explicar isso a obrigou a me contar um segredo destruidor sobre ela mesma:

Eu sou tímida. É sério. Não ria. Por favor.

Tentei achar ridículo, mas era impossível. A feição dela não podia mentir, mesmo que ela parecesse uma ótima atriz. Ela dizer isso três dias antes de noite de Lua Nova significava muito, eu sei que significava. Ela me falou que significava.
“Todas as suas personalidades são tímidas?” perguntou-me, meio receosa, como nunca a tinha visto antes. “Não, mas nenhuma delas se dá bem com pessoas” respondi. Naquela noite a abracei e disse que ficaria tudo bem, e na noite seguinte ela foi me encontrar no mesmo lugar, mas eu não estava lá porque tinha ouvido vozes que me diziam que era um ótimo dia para tentar suicídio.
Não disse para quem ficaria tudo bem.

A minha depressão se agravou muito e se tornou insustentável prestar atenção nas conversas com ela. Chegou uma hora que simplesmente parei de freqüentar o lugar.
Ela devia saber que isso aconteceria porque sou de Aquário, depois de não muito tempo tudo na minha vida se torna errado e preciso abordar tudo no sentido contrário. Isso é uma relação natural entre astros e corpos de todos os pobres apartados no mês de Janeiro, não é? Não tinha a potência espiritual necessária para resistir a isso.
Pra falar a verdade, a resiliência espiritual de um depressivo é como a resistência daquele tampinha chato que, na queda de braço, não consegue nem se mexer, mas trava no último centímetro e de repente a outra pessoa não consegue ganhar.

Voltamos a ser amigos depois de um tempo, onde eu já estava um tanto acostumado com os efeitos da depressão. Encontrei-a no ônibus, voltando do trabalho um dia desses, quando ainda trabalhava em Londrina. É fácil identificá-la, um dia mostro o tipo de roupa que ela veste e você confirma se não é algo que só a Garota Mais Legal Do Mundo usaria.

Eu sorri pra ela.
Ela sorriu de volta.

Então eu disse “oi”. Ela disse “oi” também, evitando olhar nos meus olhos. Ela, num impulso, me abraçou. Segurei mais forte no apoio do ônibus para que não caíssemos. “Achei que tinha perdido você, já perdi amigos antes para a morte, é horrível”. Eu sabia exatamente do que ela estava falando; “Pronto, passou. Eu estou bem”, respondi. Mais uma vez, estava mentindo.
“Você não está bem, está voltando cansado pra casa, e odeia o mês de Julho”. Ela sabia demais, não tinha como correr. “Lembro tudo sobre você, exceto o que as estrelas sabem, porque aí pergunto pra elas. O que aconteceu? Eu tenho músicas novas, quem sabe elas podem te ajudar”. Não consegui recusar a oferta.

Confesso, entre os dezoito e os dezenove anos amadureci muito. Vivi a transformação de um suicida compulsivo a um silencioso depressivo, aprendi a ouvir o que as pessoas querem dizer mais do que o que desejo ouvir, e talvez isso tenha me levado a perceber algumas aflições da GMLDM dentro de suas próprias músicas. Dentro do seu próprio domínio cósmico. “Vamos tomar um sorvete?” sugeri.
(Sim, só faço amizade com quem gosta de sorvete, exceto se a pessoa em questão criar galinhas porque, não sei, eu não saberia dizer “é, tá, você cria galinhas, mas e daí? Não gosta de sorvete, não pode ser meu amigo”. Soa injusto. Faz diferença sim criar galinhas.)

Confesso: na sorveteria, quando a vi chegando, olhei para os lados evitando contato ocular direto para não desenvolver uma paixão desnecessária. Ela estava linda. Não sei descrever o quão linda ela estava. E estava andando engraçado, mas não era o salto porque ela sabia andar de salto.
Ela estava bêbada.
Poucas vezes me senti tão desconfortável na minha vida. Por um instante, senti que não conseguiria pará-la caso resolvesse aproveitar a bebida para fazer o que não faria normalmente. Aos dezenove, não se sabe muito sobre si mesmo, o domínio é intuitivo. Corpo, espírito e alma são uma caixinha de surpresas caso estejam desordenados.

“Estou triste” disse-me, com um sorriso no rosto.
Muito se passou pela minha mente, mas meu corpo não me obedeceu e eu respondi “Sei que está. Você me contou isso na faixa seis”. Ela, desarmada, encostou na mesa e começou a chorar. Tive a impressão de que tinha feito algo de errado. “Hoje eu sou tão triste quanto você, não é?” ela me perguntou, e ri internamente pensando como ficaria abalado ouvindo isso um ano atrás, mas só pude sorrir de volta e responder “Não, você nunca vai ser tão triste quanto eu”.

Por que você é tão triste?

Essa pergunta, então, atingiu-me em cheio. Não me abalou, mas nunca ninguém tinha a feito dessa maneira, tão direta, tão agressiva. Tão Legal. Era uma pergunta simples que nunca tinha me feito não-retoricamente, só naquelas crises, sabe? “Deeeeeeus pooooooor queeeeeeee euuuuuuu”.
O que não tinha percebido, mas se tornou nítido naquele momento, era que tinha acabado de perder um jogo. Tarde demais para querer reagir, já estava exatamente onde ela desejava que eu estivesse. E só podia pensar. E não conseguia parar de pensar.
Então, quando ela veio tentar me alcançar para o beijo, desliguei completamente minhas idéias e coloquei a colher de sorvete na boca dela. É claro que a física da realidade não permitiu que o sorvete entrasse, queria muito que isso tivesse acontecido, mas a colher só rasgou levemente seus lábios e a lambuzou de sorvete. Para explicar melhor ao leitor o que se passou na minha mente, e ainda se passa (veja bem, já disse, não entendo mulheres): não é que o jogo tinha intenção de roubar um beijo meu, é que o beijo era, na cabecinha perturbada da GMLDM, uma recompensa merecida por ela ter ganhado de mim em um jogo que Aquarianos gostam de jogar. A esse ponto, é importante revelar que ela também é de Aquário. Nascemos no mesmo dia.

Ela olhou para mim, meio paralisada, sem graça. Só pude rir. “Você venceu meu corpo, não a minha alma” disse, não que fizesse sentido pra mim, mas já tinha certeza absoluta que faria para ela. “Você tem outras personalidades, não é? Como eu faço pra vencer todas?” disse, com a mesma fragilidade de quando me revelou que era tímida da outra vez. “Por que você quer me vencer?” perguntei, muito honestamente. “Porque eu quero fazer uma música pra você” respondeu, também, com a mesma honestidade.

Aquilo, como todo o resto da conversa, não pareceu fazer muito sentido para mim. Senti, no entanto, no fundo do meu coração, que entendia tudo o que ela queria dizer. Foi estranho. Dormi aquela noite com a sensação de que tinha perdido o “jogo”, mas também com a certeza de que o mesmo ocorrera com ela.

Havia paz em mim.

Depois daquele dia, tivemos muitos momentos felizes juntos. Em especial porque ela desistiu de mim. Ela me mostrou mais de suas músicas, também mostrei algumas minhas a ela. Não que ela tivesse me ensinado a fazer músicas, nem que tivesse me ajudado a aprender a tocar teclado, já que o espírito de competitividade dela atrapalhava tudo.
Deixem-me contar a vocês a verdade: ela não tinha desistido de mim, só mentia para eu me sentir menos constrangido na presença dela, e eu era tão horrível que ficava satisfeito com a mentira mesmo sabendo dela. Ela também não tinha um espírito competitivo tóxico, eu tinha, eu me sentia frustrado de estar ao lado da Garota Mais Legal Do Mundo, ver ela fazendo as Coisas Mais Legais Do Mundo e perceber que era impossível pra mim. “Não é impossível, você vai conseguir!” ela me disse, uma vez.
“Você vai conseguir” era o trio verbal que desengatilhava uma cachoeira de vozes perturbadoras na minha mente, que tirava meu sono por dias. Quer um segredo pra me fazer vencer durante um estado depressivo? Não me elogie, não me faça notar que estou no caminho certo, só consigo se não olhar para baixo; quer outro segredo, dessa vez sobre mim? Não passo por um quadro depressivo há anos, por isso, se precisar, pode me elogiar e me deixar lidando com isso. Acredite, não estou pedindo elogios, só estou não-os-recusando; também posso viver sem eles.
Esse é um segredo que, pela sua natureza, a GMLDM não consegue entender. Como palavras positivas poderiam influenciar negativamente alguém? Pela maneira como ela vivia, era impossível conceber que positivo com negativo dá negativo. Mas ela era positiva demais. Ela me amava demais. Se eu a desse espaço suficiente em minha vida, transformaria-a num monstro. Essa responsabilidade me deu força, porque entendi que eu era capaz de resistir: por ela condicionei (com aquela ajudinha da Providência) espírito e alma a não fazer algo que era naturalmente inevitável, por ela venci meu Sol em Aquário; não porque queria, mas porque precisava.

Mas então o leitor me pergunta, “Por que? Até agora não explicaste a razão de não ter namorado com ela. Li tudo isso e nada de entender. Vou embora”. Concordo, existem duas questões que necessitam de um fechamento:
1. Por que não namorar garotas mais legais que eu?
2. Por que, de todas as meninas, a minha namorada sente mais ciúmes da Garota Mais Legal Do Mundo?

Me dê mais tempo, só preciso contar mais uma história. Não seja apressado, não temos nem dez mil palavras e nem teremos.

É estatisticamente provável que eu fique doente uma vez por ano. Doente, mesmo. Gripado, febril, entre outros. É estatisticamente provável também que Londrina tenha uma única temporada de chuva em, sei lá, março. Acontece que em Londrina está chovendo sem parar desde dezembro, então, pela lógica, fiquei doente mais de uma vez — se riu da minha associação lógica, mas acredita em aquecimento global, tenho más notícias.[1]

Então, na segunda vez, estava conversando via Milagre da Tecnologia com minha querida amiga GMLDM até que de repente dormi no meio do assunto. Acordei morrendo de dores no corpo e pensei “ah não, de novo não”. Por estar estatisticamente despreparado para uma segunda doença em dois meses, fiquei muito triste. Precisava, porém, responder a garota logo, era um assunto muito importante, tinha a ver com algoritmos e átomos e eu ainda estava com tudo na cabeça. Ela entende isso. Ela é a Garota Mais Legal Do Mundo. Quando respondi, por algum motivo senti a necessidade de comentar que estava mal, e então comentei. A conversa ficou silenciosa por uns dez minutos. Logo em seguida ela comentou sobre uma vez que ficou doente também e várias coisas aconteceram, e a partir de algum momento parei de prestar atenção porque aquilo estava se tornando irritante. Ela sabia disso. Tentou novamente, mas era muito atrapalhada com as palavras, nada saía do jeito que ela desejava.
Aquilo acalentou um pouco minha alma. Ver, num momento onde eu estava fisicamente enfermo, ela desistindo do seu jogo para demonstrar sua insegurança, sua vontade sincera e surpreendentemente séria de me ver bem, me revelou que ela também sofre muito por Ser Legal. Não me entenda mal, não é um sentimento de vingança, nem minha competitividade falando alto. Tenho uma crença sincera de que o momento em que uma pessoa é capaz de expressar sua dor representa uma abertura nos céus do caminho para o alívio dessa dor. Pude ver quem ela é. Pude ver que ela, às vezes, gostaria de poder trocar o mestrado informal em astrologia medieval, em música e em física moderna pela capacidade de expressar ali, em palavras, como ela queria poder fazer um amigo se sentir melhor e não apenas mais irritado. Quando me dava músicas pra ouvir, sempre havia insegurança e inquietude, ela sempre quis me perguntar “Te alcancei? Você consegue entender que sou feliz, logo, é possível ser feliz? Promete que será feliz um dia?” mas nunca pôde. E sim, concluí tudo durante aquele silêncio; as informações todas fecharam em minha mente de uma vez numa reação em cadeia inacreditável, como se eu estivesse passeando dentro do coração dela.
Finalmente, quando visse aquilo ali doendo, sangrando, poderia dizer “É aí que está doendo, não é? Calma, vai ficar tudo bem”. Mas, na verdade, na verdade mesmo, é mais seguro encaminhar ela para a Igreja. Bem, finalmente tenho abertura para fazer isso também.

Foi como mágica.

Então, alguns instantes depois, minha namorada me mandou um “Bom dia. Como você está?”. Respondi “Não muito bem, acordei com infecção na garganta hoje”. Então ela me respondeu “É sério? Olha, tenho aqui uma Nimesulida e uma Azitromicina. Te levo assim que você sair do trabalho”[2]. “Que que é Nimesulida e Azitromicina? Não sou bom com isso de remédio, não sei tomar remédio”. “Ah, você é machista demais” e aí ela me mandou um áudio falando “porque homem que é homem não fica doente” imitando o He-Man, e continuou “mas então, um é anti-inflamatório e o outro é anti-biótico, a médica vai te passar um expectorante também que tem gosto de lixo. A gente fala mais de remédio quando se ver. Se começar a doer demais pensa em mim que melhora. Te amo, você vai melhorar rapidinho. Te cuida”.
Assim que terminei de ler, entendi uma coisa: ouvir minha namorada dizendo “Te cuida” era tudo o que eu precisava. Era tão simples. Tão… contrário a uma tentativa insegura de usar um jogo de palavras para me fazer melhor. Não que eu pare pra fazer análises das frases da minha namorada, elas perderiam a graça imediatamente, é só que (tá bom vai, estou analisando) há uma força muito grande em alguém dizer:

Se começar a doer demais pensa em mim que melhora.

Eu ri quase alto quando li isso, “olha as idéias” pensei, “olha como se acha” pensei em seguida, “olha… é verdade” percebi assim que me peguei pensando nela.

Então, quando nos encontramos, ela me deu os dois remédios e também o expectorante. “Ah, vi que tinha em casa também”. A anta nem percebeu que a nota fiscal da compra estava na sacola; se fosse a GMLDM, já imaginaria que era um joguinho psicológico pra fazer charme.
Logo após ela me ensinar a tomar os remédios, fui deitar. Ela queria ficar um tempo comigo, então decidiu sentar-se numa cadeira bem ao meu lado, para… basicamente ficar ao meu lado até eu dormir. Me bateu uma curiosidade maior que o próprio Sol.

Quem é a pessoa que mais te causa ciúmes?

A resposta que eu não queria ouvir:

É claro que é a Garota Mais Legal Do Mundo. Essa menina já me tirou o sono.

Obviamente, perguntei a razão. Então ela me explicou como é terrível o sentimento de estar sempre perdendo. Não me contou chorando, nem triste, estava bem tranquila e eu podia sentir isso. Descreveu-me que, quando não se é Tão Legal, é difícil prender minha atenção, é impossível realmente competir com alguém que sabe exatamente do que estou falando (não houve um diazinho sequer onde minha namorada não me mandou um “Não entendi”), que gosta das mesmas coisas que eu, compreende meu ritmo, é linda (namorada nunca entende que Até Que Se Prove O Contrário, Ela É A Mulher Mais Linda Do Mundo), faz música (“você já deixou de sair COMIGO pra mexer nesses teus som de videogame!”), sabe andar de salto (ela não sabe, HAHAHA uma namorada que não sabe andar de salto). O que ela me contou, nas entrelinhas, é que não tinha medo de ser traída, já que “isso a gente resolve fácil, é só matar você e a sirigaita”, e que ciúme na cabeça dela não se tratava realmente disso. O que a deixava triste era não ter minha atenção total e criar ilusões de que, se ela fosse muito mais Legal, ela a teria.
Não podia nem argumentar. Tenho costume de odiar conversa com menina que gosta de “estudar”, versada em economia, política, física, essas coisas que vão endurecendo e apodrecendo corações comuns. Só que o conhecimento e o apreço da GMLDM pelas Coisas Legais era tão puro, tão bonito e tão incorporado ao caráter dela, que a tornava realmente interessante por esse motivo.
“Não precisa ficar pensando numa desculpa, sei que ela é mais interessante que eu.” não pude nem me defender. “Mas duvido que foi nela que você pensou pra ficar melhor hoje, então por mim tudo bem.” não pude nem pedir para me defender. “E também não acha que esqueci que você conversa com a outrazinha lá que você já gostou” desisti, mas já estava com muito sono então nem pensava em tentar. Ela, percebendo, me deu um beijo de despedida e aguardou pacientemente pelo fim do meu dia.

Aos poucos vou entendendo mais que é possível ser feliz.
E menos as mulheres. Outro dia descobri que a nota fiscal da compra do expectorante era charminho. Odeio minha namorada.

[1] É brincadeira! Pode continuar acreditando no aquecimento global, foi só uma piada. Hahaha, eu poderia ter sacaneado o horóscopo no lugar! Quer dizer, piorei a situação, não tô comparando aquecimento global a horóscopo. Longe de mim. É só uma piada, faz sentido, clima instável, gripe… Só não queira descobrir que uma das doenças foi intoxicação alimentar em São Paulo.
Se eu pudesse, teria omitido essa piada. Mas tinha que vingar a chacota com astrologia, mesmo a horoscópica. Se é pela Garota Mais Legal Do Mundo, vale a pena.

[2] Ministério da Saúde: favor, não prender minha namorada. Ou eu… eu… te chamo de fascista, sei lá.

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