Presidiários mentais

História de quem vive para os parentes presos

O Guaxinim
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6 min readJun 28, 2017

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Por Brenda Aurelio

Em Porto Alegre, o Presídio Central conta com aproximadamente 5 mil presos. Porém, o número de pessoas envolvidas com a prisão, mas em liberdade, é desconhecido. Se um homem preso deixou uma mulher e dois filhos, são três pessoas comprometidas na rotina do edifício cinzento. São duas visitas por semana, 12 meses por ano, um total de 104 dias que as famílias deixam suas rotinas para ir ao maior presídio do Rio Grande do Sul. Todas com algo em comum: um familiar preso.

Um cigarro por frase e 12 xícaras de café foram necessários para que Viviane (nome fictício), de 24 anos, falasse sobre sua vida de presidiária externa. O marido está preso e ela, como disse, também está presa, já que vive no presídio. Juntos, tem duas filhas gêmeas de quatro anos, que saem pouco de casa, desde a época que o pai foi preso. Moradora da vila Paraíso (nome fictício) e sem familiares próximos, Viviane passa o dia em casa, brincando com as crianças. “A gente não sai nem pra ir ao mercado, eu chamo uma amiga e ela vai pra mim”, comentou.

Ilustração: Alana Gazola

Seus olhos claros chamam atenção pela profundidade. Cada palavra tem um peso e um sentimento, quando Viviane fala, ela expressa nos olhares o que está sentindo. Sua casa não pertence àquele bairro. Sem rebocos, sem madeiras, sem barros. De tom único, é a mais bela da rua. Internamente, é aconchegante assim como a casa dos avós, que moram no mesmo pátio, em outra casa mais ao fundo.

Sem planos de procurar emprego e sem estudo, conta que vive com auxílio do governo, através de Bolsa Família. “Eu parei na oitava série, não tenho vontade de voltar a estudar. A gente tem uma vida boa”, contou Viviane. Enquanto as filhas brincavam no quarto, Viviane mostrou as roupas caras, a maquiagem bem feita, a casa bem estruturada, o iPhone que recebia ligação de 10 em 10 minutos, e ainda comentou:

“Ele tinha carro, leva a gente pra todo lado. Comia xis todo dia, ele ganha muito dinheiro com isso”.

O áudio foi mixado para impedir a identificação da fonte. Autoria: Brenda Aurélio

A vida como visitante

Todas as quartas-feiras e domingos são dias de visita no presídio. “Eu normalmente vou cedo, levo comida”, falou Viviane. São horas preparando refeições que alimentam não só o esposo, mas os colegas de cela em troca de favores pessoais. Além disso, o preso passa o dia inteiro ligando, mandando mensagens, através de um celular que comprou dentro do presídio. “Eu sempre levo cigarro também, ele vende ou troca, porque lá dentro é tudo muito caro”, comentou Viviane, que leva ainda uma sacola com alimentos, permitidos pela lei.

A prisão de Rafael

“Pegaram ele carregando droga, cocaína, maconha e muito dinheiro”, contou Viviane. Numa tarde de terça-feira, durante um transporte diário, Rafael (nome fictício), foi preso enquanto saia de um posto de gasolina. Ligado a uma facção, não identificada por motivo de segurança, está no Presídio Central de Porto Alegre há um ano. Preso por tráfico de drogas, perdeu o aniversário das crianças, da esposa e todas datas comemorativas do ano.

E as filhas?

Em conversa acompanhada pela mãe, as gêmeas falaram sobre a falta que sentem do pai. A mãe diz às meninas que o pai está trabalhando e logo voltará para casa com muitos presentes. “Elas falam com ele por telefone, mandam beijo, vídeo dançando, mas eu não vou levar elas lá, não é um lugar bom pra criança, é sujo”, falou a mãe Viviane.

Vida no crime

“Eu não quero ele preso, mas não vou deixar ele largar o que sustenta a nossa casa”, disse Viviane. Entre as justificativas da esposa, está a necessidade de trabalhar caso o marido largue o crime e o horário flexível em seu “trabalho”, fazendo com que ele passe mais tempo com a família.

Deixando inúmeras bitucas no cinzeiro para trás, Viviane me acompanha até a porta. Com um abraço apertado, um olhar de arrependimento, como se tivesse falado coisas a mais, agradece pela conversa e dela nenhuma palavra mais eu ouvi. Uma despedida estranha, já que conversamos por mais de uma hora, em meio a uma turbulência de emoções, entre choros, gritos e sorrisos. Talvez tenha sido mais fácil, uma despedida simples. Afinal, foi apenas uma fonte, contando sua história?!

Chegando em casa, encontro o próximo protagonista, Ricardo (nome fictício). Apenas um garoto, tão jovem, mas com tantos problemas. O pai preso, a mãe que vive a vida do marido, as irmãs mais novas que já se envolvem com drogas e problemas na escola. A idade é de estudante, mas na verdade, largou a escola para trabalhar. Este é o resumo da próxima história de presidiário externo.

Com o pai preso há dois anos, Ricardo vive um impasse com sua mãe. “Ela visita meu pai e eu não queria isso”. A relação com o pai não foi boa durante a infância e a adolescência. As memórias remetem a um pai drogado ou vendendo drogas. Nesse tempo de cadeia, não visitou o pai em momento algum. Na verdade, sua história é de presidiário externo por tabela: a mãe que vai até o preso, transformando a rotina dos três filhos.

“Ele foi preso com arma, droga e dinheiro, mas já fez outras coisas”, disse o filho Ricardo (nome fictício), de 18 anos, que estudou até a oitava série. Morador do bairro Mario Quintana, vive com a mãe e as duas irmãs. O rapaz largou a escola para trabalhar, afetado pela rotina da mãe. Conseguiu um emprego de vendedor no Centro de Porto Alegre, acorda às 7h e retorna 20h da noite. Com o salário de R$1000 consegue pagar a luz, a comida e o transporte. Quando sobra, aproveita para comprar algumas roupas.

“Eu trabalho porque não quero viver com dinheiro da droga”, comentou Ricardo.

Por que a rotina da sua mãe te incomoda?

“Ela não tem vida, vive pra ele. Queria que ela se ligasse. Ela tinha que entender que ele só é bom pra ela por que precisa dela. Ele batia nela quando morava lá em casa.”

Sua mãe já pensou em denunciar as agressões?

“Nunca, ela não faria isso com ele. Eu me lembro de uma vez que ele bateu nela, os vizinhos se meteram. Ela disse que ia se separar dele, mas foi tudo mentira, no dia depois tava fazendo café pra ele.”

Como é a rotina dela?

“Ela vive pra ele. Vivem se falando por telefone, ele manda ela fazer alguns trabalhos aqui fora, trocas, acordos. Ela passa horas fazendo comida, pra levar pra ele no dia seguinte. Sem falar do dinheiro, ele diz pra ela aonde ir e buscar, ela vai, sem perguntar.”

Tu já fez alguma coisa por ele aqui fora?

“Eu não, teve um dia que ela me pediu pra ir no mercado comprar carne, eu não fui sabia que era tudo pra levar na cadeia.”

As tuas irmãs já visitaram ele?

“Uma delas nem é filha dele. A outra visita quando quer. Minha mãe sempre nos chama pra ir com ela, mas na real ela só quer é ajuda pra carregar as coisas. A irmã mais nova (filha do pai preso), já rodou umas duas vezes na escola, vive fumando maconha com os amigos dela na praça perto de casa. É sem futuro.”

Vocês já sentiram medo de sair de casa?

“Uma vez só, que minha mãe chegou gritando, que tinha uns cara procurando ele. Eu fiquei com medo, achei que nós íamos morrer. Eu falo pra ela largar dele, viver a vida dela. Eu quero que ela seja feliz, mas sei que com ele nunca vai ser.”

Porque tu influencia ela a deixar ele?

“Ele nunca vai largar as drogas, o tráfico. Só vai continuar trazendo desgraça pra nós. Agora, a filha dele ta seguindo os passos. Eu nunca quis essa vida e nunca vou querer. A minha mãe não, se ele mandar ela matar alguém, ela vai fazer.”

Mesmo com tanto ressentimento, Ricardo admite: “Eu não quero que ele morra, só queria que ele saísse dessa vida, fosse uma pessoa melhor”, murmurou enquanto limpava as lágrimas que escorriam sem parar.

Nesse momento a entrevista acabou. Paguei nosso café, entramos no mesmo ônibus, paguei sua passagem de volta para casa e agradeci pela história. Não pude pensar em nenhuma palavra de conforto, apenas vi aquele sorriso se apagando, sentando num banco de ônibus, se misturando a multidão. Era só mais um jovem com fones de ouvido, sentando na janela do ônibus.

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Contador de histórias e admirador do jornalismo