Bad Hair: Um aplique de Matar.

Marcel Silva Gervásio
The Halo
Published in
9 min readDec 14, 2020

Bad Hair, a nova comédia de terror de Justin Simien, explora a pressão que mulheres negras sofrem em relação aos seus cabelos, uma face do racismo que por muito tempo passou despercebida para nós, mas que nos últimos anos se tornou pauta importante nas discussões relativas à identidade negra. Com o casting repleto de grandes nomes como Kelly Rowland, Usher, e Vanessa Williams (Ugly Betty), o filme do diretor de Dear White People tem dividido opiniões desde a sua estreia no dia 23 de outubro no Hulu.

Nos últimos dois anos tenho tentado me concentrar em estudar cinema até ter condições de finalmente me mudar para Meca dos Gays e Comunicadores, também conhecida como São Paulo. Eu ainda não consigo captar todas as nuances e referências de um filme e quando qualquer produção sai um pouco do feijão com a arroz ou joga neon nas cenas eu já fico fascinado pela produção e não foi diferente com esse filme. Pelo menos no começo.

Ana (Elle Lorraine — Insecure) trabalha numa emissora nos moldes da MTV voltada para cultura negra norte-americana, quando a empresa sofre uma reestruturação, uma mudança de visual parece ser o caminho certo para uma guinada na carreira e a conquista do próprio programa que ela sempre quis, no entanto, as coisas se complicam quando ela percebe que seu novo cabelo parece ter vida própria.

A parte estética me atraiu logo de cara na primeira vez que assisti o filme. A composição do fim da década de 1980 através da imagem mais granulada, os figurinos e as tomadas que remetiam a produções da época onde o filme se passa ajuda muito na imersão da experiência, além é claro do humor que o filme traz no momento que o vilão entra em ação.

Todos esses elementos e vários outros tornam Bad Hair um bom representante dessa nova forma de fazer terror que é chamado de Terror Social que tem crescido nos últimos anos e tem como um dos seus maiores representantes o cineasta Jordan Peele. No entanto, com uma segunda olhada na construção do tema principal, no desenvolvimento da sua mitologia e até mesmo em decisões técnicas é possível enxergar alguns pequenos deslizes, onde moram as maiores críticas da produção.

Alerta de Spoilers!

Weave

Logo na primeira tomada somos apresentados a grande questão do filme, a pequena Ana sofre um acidente queimando o couro cabeludo ao tentar alisar o cabelo. O incidente é quase como um aviso a personagem, a forma como Ana usa o cabelo é consequência direta disso e a todo instante no primeiro ato a protagonista é lembrada que o seu cabelo não é muito aceito pelas pessoas que a cercam.

Como homem negro posso dizer que consigo entender um pouco dessa relação, mas somente até certo ponto. E segundo algumas críticas e de mulheres negras essa reflexão pode ter faltado ao diretor.

De um lado, Bad Hair trabalha bem como tais padrões de beleza são um sintoma do projeto de supremacia branca que procura oprimir as mulheres num processo de whitewhashing. Isso é bem representado por Kelly Rowland que interpreta Sandra, uma cantora que precisou se “adaptar” para conseguir furar a bolha e ser uma artista pop, ao mesmo tempo que fez uma bela homenagem a Janet Jackson.

Ou até mesmo quando Ana tenta convencer Sista(Yaani King) a mudar de visual para se adequar ao público mais (branco)diversificado dizendo que se manter ali era mais importante que a forma que ela se apresenta é um desses exemplos. Ela chega até a dizer que o aplique é como uma fantasia e não quem ela realmente é.

Esse momento é complementado com outro dialogo mais a frente quando sua ex-chefe diz não a culpava por fazer o que fosse preciso para conquistar o lugar que os brancos insistiam em tirar dos negros e que num mundo ideal uma mulher negra poderia ter o cabelo que bem entendesse.

O filme peca em não tornar esses discursos mais fortes durante o filme deixando predominar a mensagem que mulheres negras que optam pelo cabelo liso estão perdendo sua identidade e isso é literalmente retratado no filme sempre que o cabelo toma conta de Ana e vemos uma imagem onírica do musgo tomando conta da sala de jantar onde sua família está sentada com trajes típicos da cultura afro. E é aí que mora a maior parte das reclamações de mulheres negras em relação ao filme.

The Cult(ure)

Bruxas colonizando cabeças de mulheres negras através dos apliques é uma boa ideia para usar contra um meme que eu particularmente acho um porre, o famoso “somos netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar” que normalmente é tido pela Érica de 16 anos neta da Dona Dirce, evangélica fervorosa e racista.

A mitologia construída no filme a partir do livro fictício de fábulas e a partir dele vemos como o homem branco não se contenta em reduzir os conhecimentos e crenças dos povos racializados em superstições bobas, mas também nos convence disso, ao ponto de abrirmos mão da nossa identidade e da nossa cultura que eles prontamente assimilam e vendem como algo que é chic, desde que sejam em corpos brancos.

Ana pontua isso numa das cenas mais inusitadas do filme, mas o que não fica claro com o final que mostra o personagem do por trás da mística fazenda de cabelo é o que ele ganha com isso.

As atitudes dele não mostram isso e muito menos o voice over do final.

A forma como o cabelo é apresentado aos poucos como uma entidade viva que mais tarde descobrimos se tratar de um repositório de mentes de bruxas é bem interessante. No entanto, ao longo da trama algumas perguntas surgiram na minha cabeça e o que acontece na tela não foi o suficiente para saná-las.

Não entendi porque a Ana não confrontou a Virgie quando percebeu que o aplique estava vivo, ou porque ela só olhou os ingredientes do creme de óleos essenciais no fim do filme, se meu cabelo matasse meu senhorio e eu desconfiasse de quem colocou ele na minha cabeça, essas seriam as primeiras atitudes que eu tomaria.

Uma boa sacada do filme é como ele usa a água, o “terror” das pessoas que tem cabelos quimicamente tratados ou que fazem uso de como dispositivo de roteiro dando a esse “medo” da água um motivo mais místico dentro do filme.

Regras que a própria trama cria parecem não contar dependendo do contexto do filme. Logo após Ana colocar o seu aplique Sandra entra no salão reclamando que não deveria ter molhado o cabelo e quando a câmera foca no rosto da personagem os olhos amarelos deixam claro que a bruxa que possuiu seu corpo continua ali, já no fim do filme essa é a arma usada para Ana se livrar do próprio cabelo demoníaco.

A relação da protagonista com seu novo cabelo levanta algumas perguntas no geral quando comparado com as outras personagens que passam pelo mesmo processo. Enquanto tem uma luta ainda que sutil para tentar se manter no controle do próprio corpo mesmo depois de matar cinco pessoas, outras personagens como a Sista Soul são possuídas com muita mais rapidez que ela.

O que deixa a forma como esse controle acontece é muito mais relativo do que a trama tenta transmitir.

Ainda falando desse embate da Ana contra o cabelo, o filme poderia gastar mais tempo mostrando isso, as cenas onde ela discute com o reflexo maligno poderiam ser maiores na minha opinião. Dando uma outra camada na discussão de perda de identidade.

O corte de Sundance

Como eu disse mais cedo, sou uma pessoa que ainda está no processo de ser tornar um cinéfilo chato que reclama de todo e qualquer filme (alguns dos meus amigos podem desmentir isso alegando que eu já sou essa pessoa, eu recomendo que vocês ignorem todo e qualquer comentário vindo delas.) então eu fiquei surpreso quando Justin Simien soltou que estava preparando um novo corte com um final diferente, mesmo desgostando um pouco do final da versão do Hulu.

A versão atual não enrola para desenvolver da trama, sendo um filme com mais acertos que erros, mesmo com os pequenos problemas que eu já mencionei acima e algumas escolhas inusitadas que eu irei tratar mais adiante.

Ainda nos primeiros minutos do filme, a escolha de mostrar a conversa das funcionárias da emissora após o anúncio da saída de Sara é bem criativa. A estrutura no ambiente de trabalho havia acabado de mudar. As mulheres em cena se sentiam sem orientação do que aconteceria a seguir e faz sentido a forma como a cena se apresenta.

O primeiro e o segundo ato apresentam quase nenhum problema, o primeiro é mais focado no racismo ao redor de Ana, em como as pessoas a enxergar e a sua autoestima é abalada por isso.

Na parte técnica, o filme cria as cenas de terror mais quando trata do racismo do que nas formas como o cabelo age, devo ressaltar que mesmo com o uso do CGI o filme escolhe priorizar os efeitos práticos o que deixa a atmosfera trash oitentista ainda mais deliciosa de se assistir. Prestar atenção em figurinos não é a maior das minhas habilidades, no entanto em algumas críticas de especialistas que eu li parece um pouco frustrados com supostos erros de cronologia com algumas roupas que pareciam ser dos anos 1970 e outras pareciam mais contemporâneas, para mim não prejudicou a experiência, mas nada chamou muito minha atenção.

Mesmo levando a sério o tema, Justin é consciente da história que apresenta e não se leva a sério a criar os momentos de terror com uma certa pitada de humor. Meu único problema é quando Brook-Lynne entra em cena, ali é um momento claro de alívio cômico que para mim não funciona muito bem quando a personagem sai de uma situação viva simplesmente para morrer no instante seguinte sem propósito nenhum apenas para nos chocar e acaba não funcionado muito bem.

E já que estamos falando dos erros, Bad Hair às vezes se perde numa tentativa de criar momentos evidenciam a real natureza do cabelo.

Na cena por exemplo onde os fios caem, mas voltam para a cabeça, ou os closes mostrando o cabelo se alimentando de sangue é até legal, mas na cena onde Ana está conversando com Zora, eu acabei não entendendo muito o porquê o diretor escolheu mostrar a cena daquela forma.

Na primeira vez que eu assisti confesso que gostei muito, mas depois quando vi o filme na segunda vez fiquei me perguntando se aquilo de fato era necessário e quando você olha pela segunda vez percebe que ela serve apenas para mostrar o cabelo se movendo pelas costas da ex-modelo.

O que eu acho que não seria um problema, se acontecesse em outro momento. Ali Ana estava vulnerável, antes mesmo de entrar naquela cena fica evidente o medo que ela sentia de ser demitida, sua nova chefe já tinha uma assistente e ela estava ciente que não era muito valorizada no seu ambiente de trabalho, coisa que é pontuada momentos antes com uma das produtoras dizendo que ela não precisaria se preocupar com uma demissão já que ela quase não custava nada para seus empregadores.

Então ali com ela mostrando que era mais que qualificada para aquele trabalho talvez fosse melhor uma escolha diferente de jogo de câmeras. Mas esse é um dos poucos momentos onde o filme erra, no geral a direção acerta.

Menos no final, eu não gosto do final e estou ansioso para ver essa nova versão por conta desse novo final um pouco mais trágico, não que o final dessa versão seja muito feliz.

Mesmo achando que estaria tudo bem se o filme tivesse acabando logo depois de Ana deixar o prédio da emissora para já sem o aplique, o final onde fica claro que mesmo com ela se livrando do cabelo, outras mulheres negras continuam correndo risco é até aceitável se não tivesse o bendito voice over mostrando que o chefe dela estava por trás da fazenda de cabelos amaldiçoados.

Isso deveria criar um plot (acho), mas não chega acrescentar nada porque ele já é apresentado como o homem branco babaca que lucra às custas de pessoas negras.

Acho que pontuei bem as falhas e acertos que eu vi no filme em cada uma das suas partes. O filme diverte e entretém ao apresentar uma problemática no universo das mulheres negras em relação a padrões de beleza, ainda que ele escorregue em algumas questões e acabe sendo raso na discussão ele pontua bem a mensagem geral de que mulheres negras não deveriam ter suas cabeças colonizadas por mulheres brancas e sim usarem o que bem entender.

Mesmo sem lançamento oficial no Brasil, o filme é uma boa escolha de diversão se você o encontrar por aí nas esquinas da internet.

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Marcel Silva Gervásio
The Halo

A Brazilian guy trying to be a good writer (Escritor em formação).