Seus fantasmas seguem você.

Marcel Silva Gervásio
The Halo
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4 min readNov 27, 2020

Quando uma amiga me indicou His House eu fiquei um pouco reticente em assistir, a sinopse deixava margens para interpretação que seria mais um filme com uma carga racial que eu não estava muito confortável para assistir e se você ainda não assistiu por ainda estar com Lovecraft Country em mente como eu, o filme pode ser uma grata surpresa.

Dirigido pelo estreante Remi Weekes, o filme estreou no Festival Sundance e teve os direitos comprados pela Netflix para exibição internacional, chegando por aqui no fim de outubro.

Estrelado por Wunmi Mosaku (Ruby, Lovecraft Country) e Sope Dirisu (Humans), a história acompanha um casal de refugiados sudaneses que tenta reconstruir a vida em Londres. O que poderia ser mais um filme de drama com nuances raciais se transforma num terror inquietante quando Rial percebe que eles não foram os únicos que se mudaram para aquela casa.

Antes mesmos dos elementos sobrenaturais tomarem conta da tela somos confrontados com a realidade do que é ser um refugiado no Reino Unido pós Brexit. Ainda na detenção o casal é advertido pelo homem que está ali a mais tempo que eles não deveriam ter esperança, que eles só sairiam dali para serem enviados de volta e sobre gritos vemos um homem imobilizado por três homens brancos pelo o que parece ser para a extradição.

A cena chama atenção e é bem forte, principalmente sendo um brasileiro negro que acompanha as notícias em 2020. As questões permeiam a vida dos protagonistas de forma intrínseca com o terror vivido dentro de casa.

Mesmo tendo permissão para ter uma casa ao entrarem no processo para se tornarem cidadãos, Bol e Rial são impedidos de trabalhar, ou criar qualquer rotina que traga uma normalidade para suas vidas, como por exemplo terem uma bola dentro de casa, e quando o personagem vivido pelo Matt Smith lista as exigências para a adaptação eu fiquei me perguntando se isso era proposital para eles desistirem do processo. É estranho perceber que os personagens não têm nenhum acompanhamento psicológico mesmo que conforme a trama avance fique explícito para os agentes governamentais que aquelas pessoas não estão bem, o primeiro impulso deles é tirá-los da casa e não ajudar de fato.

Um dos momentos que coroa muito bem esse sentimento é quando Rial decide sair de casa para se consultar numa clínica. Antes mesmo de chegar à clínica onde ela tem uma espécie de choque cultural com a médica vemos como a personagem se vê perdida naquela nova realidade e mesmo pessoas que num primeiro momento podem ser enxergadas como iguais na verdade são cruéis com ela.

Conforme o filme avança vemos como a culpa cresce entre os dois e como a dor é processada de forma diferente para cada um. É através da personagem de Wunmi Mosaku que conseguimos entender o que está acontecendo na casa e mais importante, é nela que temos a luta interna contra o aculturamento.

Enquanto o marido se mostra ávido para se adaptar, ainda que uma forma para tentar deixar o passado para trás e conseguir o status de cidadão, Rial parece mais resistente, não só por conta do ocorrido com Nyagak , mas também na tentativa de reafirmar sua identidade que é tudo o que restou para ela naquele ambiente hostil.

His House também se destaca por não abusar dos famosos e já batidos jumping scars, eles até aparecem durante o filme, mas são usados de forma pontual o que não estraga a experiência.

Como Bol é perseguido pela figura do Apeth ou bruxo da noite, que assombra os seus sonhos, a virada onírica do meio do segundo ato para frente é um dos pontos altos do filme para mim. A cena do jantar quando a câmera se afasta aos poucos e percebemos que na verdade Bol está sonhando é um dos momentos mais bonitos da produção.

Na virada do terceiro ato o filme leva o espectador para o horror da guerra que o casal fez de tudo para fugir, ao mesmo tempo que confronta Rial com uma verdade que ela não conseguia encarar.

Esse momento em que ela está cercada de mulheres é emocionante e a revelação machuca ao mesmo tempo que explica o porquê eles estarem sendo assombrados pelo bruxo da noite.

Uma das coisas que passa despercebido no filme é o fato de que Bol e Rial se refugiam no país que é responsável, mesmo que de forma indireta pelos conflitos que fervilham não só no Sudão, como tem todo continente africano através do imperialismo britânico e a divisão artificial do continente.

His House usa nossas expectativas e nos leva para uma história onde o verdadeiro horror está em ser sobrevivente de momento traumático e ser obrigado a conviver com suas escolhas do passado e com o peso de não ser capaz de salvar todos, como uma pessoa que já teve sua cota se episódios traumáticos, mesmo que nada nessa escala ainda consigo entender como é trabalhoso não ser consumido pela culpa.

A vida continua e nossos fantasmas nos seguem. Alguns de nós estão vivendo um momento atípico em 2020, o medo de que a qualquer momento a nossa vida pode se esvair por algo presente no ar, já outros convivem com essa sensação a muito tempo e isso é somente mais um nó apertando seu pescoço.

Vidas estão sendo perdidas por birra de pessoas incompetentes, pessoas que amamos podem não estar aqui amanhã quando abrirmos os olhos novamente. Mesmo com a culpa de continuar aqui, mesmo que seja difícil seguir, o sol voltará a brilhar para nós e nossa melhor homenagem será se levantar e continuar e viver, porque só assim eles podem continuar a existir.

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Marcel Silva Gervásio
The Halo

A Brazilian guy trying to be a good writer (Escritor em formação).