A Futuro está de volta como se não tivesse parado

O Inimigo
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7 min readSep 23, 2020

Quarteto paulistano fura o hiato e lança o EP Os Segredos do Espaço e Tempo

Foto: Mateus Mondini

Por Hugo Morais

Com surpresa e satisfação recebi o email do Bandcamp anunciando novo disco do quarteto paulista Futuro. A banda havia anunciado uma parada. Será um disco de b-sides, uma coletânea? Negativo, o lançamento é um novo disco com seis músicas, como se a banda ainda estivesse em 2017 dando sequência ao EP A Torre da Derrota.

Já nos primeiros acordes de Os Segredos do Espaço e Tempo fica claro que a banda — Pedro Carvalho (guitarra e vocais), Flávio Bá (baixo) e Cauê Xopô (bateria), e Camila Leão (voz) — mantém a pegada do disco anterior, misturando influências e passeando do punk ao psicodélico com uma pegada original. As letras/interpretação trazem um misto de raiva e indignação onde a parte instrumental se soma as letras e entonação de Mila para dar o peso necessário a músicas onde os títulos já explicam muito, vide “Mandamentos” ou “The Third Eye”.

O teor são as mudanças que estamos vendo de alguns anos para cá, mudanças para pior. Principalmente no que diz respeito a vida dos menos favorecidos e minorias. A criação de uma realidade paralela, o espaço e tempo atuais são como se tivéssemos voltado para a época da ditadura, mesmo que hoje exista divulgação maciça de informações e que ter parte da população alienada e apoiando a destruição de uma democracia seja um contrassenso.

Resolvemos bater um papo com a banda sobre o disco e entender sua feitura.

O Inimigo — Vocês tinham anunciado uma parada. Tava procurando pra ver quando foi e não achei. Qual foi o período e por que decidiram retomar?

Pedro Carvalho — Não foi nem que decidimos retomar. O que rolou foi mais ou menos o seguinte: Em abril de 2017 nós fomos em turnê nos EUA, quando voltamos, começamos a compôr músicas novas e a ideia original era gravar tudo no início de 2018, porque a Mila estava de mudança para os EUA logo em seguida. Mas não deu tempo de terminar tudo, ela foi embora e nós três gravamos o instrumental em julho no Estúdio do nosso amigo Thiago Babalu.
A Mila então foi finalizando à distância o que faltava de letras e encaixes de voz e quando ela veio visitar em março de 2019 nós gravamos o vocal e fizemos um show. Depois disso fomos mixando as músicas em ritmo de tartaruga até que rolou um ultimato e resolvemos que íamos lançar agora em março de 2020 para coincidir com mais uma visita dela e alguns shows que íamos fazer. Ela veio e, adivinha, rolou a pandemia. Foi tudo desmarcado e continuamos embaçando para terminar a mix. Alguns meses depois tomamos vergonha na cara, finalizamos e lançamos agora em setembro. Então não foi nem que decidimos retomar, foi uma combinação de vagabundagem, pandemia e morarmos em países diferentes. (risos)

Então seguem distantes e shows só quando rolarem essas visitas. Lá ou aqui.

Pedro Carvalho — Exato! Continuamos com a banda e temos planos de fazer mais coisas, mas tudo depende dela estar aqui ou nós lá. Ou no caso de novas gravações pode ser a distância também, ainda que não seja o ideal.

Percebi isso da diferença de datas das gravações nas informações do Bandcamp e aí algo que achei, bateu: as letras, que apesar de não citar nomes, me pareceram bem condizente com cenários políticos e sociais que viemos vivendo. Procede?

Pedro Carvalho — Certamente. Acho que as letras desse disco são bastante informadas pelo recrudescimento do capitalismo que marcou esses últimos anos e as consequências ideológicas e práticas disso na vida das pessoas. Quando o capital precisa apertar o cabresto ele estimula ideologias que trazem o que há de pior no ser humano, guiadas pelo medo, territorialidade, controle, supremacia e etc… Nacionalismo e todo tipo de chauvinismo (étnico, nacional, de gênero, racial) são fomentados e usados para encobrir a ajudar na intensificação da exploração e na desumanização dos que são jogados para escanteio nesse processo. É mais ou menos isso que fala a letra de “Mandamentos”.

E o bom, ou ruim disso, é que Mila vivendo nos EUA e a banda aqui, viveram situações que se completam. Já que nosso presidente copia o que há de pior do de lá e ainda é um capacho sem vergonha alguma.

Pedro Carvalho — Exatamente, é um esforço coordenado. Coordenado a partir de lá, claro.

Mila — Algumas letras também são uma mistura de uns estudos filosóficos da percepção humana do ser na sociedade. Quando eu mudei pra cá (EUA)fiquei lendo bastante sobre a questão do apego material e emocional, e como nós nos comportamos em relação à nossa própria identidade, ou pelo menos a percepção dela. E acho que isso, junto com esse cenário atual do capitalismo que você descreveu, tanto no Brasil, como nos EUA — como vocês citaram, que querendo ou não são um espelho torto, um telefone sem fio fajuto que permeiam os mesmos valores, deram esse resultado. Eu tento sempre trazer a questão da consciência coletiva junto das emoções individuais porque uma coisa que a gente sempre fala, é que a banda busca sair dos discursos panfletários, mas sem perder a força em comunicar questões urgentes e políticas. Acho que rola um meio termo da percepção de ser observador que aponta questões e de ser pessoal, vivenciando essas mesmas questões no presente.

Vocês veem esse EP como um complemento do A Torre da Derrota? Vejo semelhanças entre eles.

Pedro Carvalho — É, acho que sim. Em parte porque o A Torre da Derrota já é com o Xopô na bateria, o que influenciou muito os arranjos e a cara geral da banda. E acho que a gente já tinha chegado num ponto em que as influências e referências tomaram uma forma estruturada e isso se manteve no EP novo. Os dois discos têm um lance que a gente sempre faz, que é misturar músicas com climas diferentes. Sempre acaba tendo a nossa cara, não tem como não ter. Mas tem som mais punk 77, outros mais dark, mais psicodélicos, hardcore, etc. Sempre conversando entre si, mas com variação suficiente para contar uma história e não entediar o ouvinte com a mesma emoção o tempo todo. Dito isso, acho que esse disco novo tem um acabamento melhor tanto na composição quanto na produção. Tá mais coeso até pelo tempo que tivemos para ir lapidando tudo. Mas como eu falei ali, o jeito da gente tocar sempre imprime essa identidade. O Bá toca baixo de um jeito muito particular que permeia tudo que a gente faz, eu também tenho minha maneira de tocar guitarra e a voz da Mila é só dela, inconfundível. Então com a entrada do Xopô no A Torre da Derrota isso meio que se consolidou e criou essa cara que continua no EP novo, tanto nos sons mais punks e diretos quanto nos mais doidinhos.

Mila, a sua visão estando nos EUA e vendo tudo de fora mudou sua percepção do nosso cenário?

Mila — Essa onda conservadora veio caminhando em escala global quando eu ainda morava no Brasil. A Dilma sofreu o golpe e os “gigantes acordaram” em 2015/2016 e o Trump e sua tropa de brutos “para fazer a América ótima de novo” foram eleitos no mesmo ano em 2016. A gente já via o desgaste da democracia e quando o Bolsonaro anunciou sua candidatura, isso tudo ficou ainda mais evidente. Eu saí do Brasil antes dele ganhar a eleição, mas dava pra perceber que era só uma questão de tempo para que rolasse essa cópia do péssimo modelo americano na cara dura. Só dos pontos ruins, como você disse. Mas eu sempre segui me informando, acompanhando e sofrendo como brasileira, então de certa forma eu sinto que minha percepção nunca ficou muito distante da realidade do Brasil. Só que todas as vezes em que eu voltei para visitar amigos e familiares, fiquei bem abalada com o aumento das injustiças sociais que são claramente visíveis, como o aumento da população de rua, por exemplo.

As bases sonoras já estavam feitas e você criou as letras em cima delas? Ou já tinha letra pronta e foi uma adaptação?

Mila — A gente já vinha ensaiando juntos como o Pedro disse, e as bases sonoras já estavam praticamente feitas antes de eu mudar. Eu já tinha uma ou duas músicas com as letras quase prontas. Geralmente eu vou gravando umas ideias de melodias no celular durante os ensaios enquanto eles tocam e escrevo a letra depois ou já uso letras prontas e vou adaptando dentro desses encaixes. Dessa vez o processo foi um pouco diferente por causa da distância, mas essa etapa inicial eu já tinha feito junto com eles. Só refinei depois que eles finalizaram a gravação dos instrumentos e me mandaram a versão final. Daí gravei um esboço das letras e dos encaixes do meu celular mesmo para ver como ficou porque a ideia inicial era eu gravar a voz onde eu moro, mas fui arrastando a finalização até a minha viagem pro Brasil, quase um ano depois. (risos) Por mais que cada integrante tenha uma função específica em alguns momentos, a gente sempre dialoga e batemos o martelo juntos.

Com tudo parado e sem perspectiva, quais planos adiante?

Mila — Acho que agora é esperar. Quero fazer mais músicas, gravar, fazer turnê e tudo mais, ainda mais considerando a resposta surpreendente que o EP novo está tendo. Mas só vai rolar quando a pandemia acabar né… Se a pandemia demorar muito, ou não acabar nunca, acho que vamos seguir gravando e lançando coisas assim mesmo. O mais importante é a música, a expressão, o ímpeto criativo. Isso continua independente de qualquer coisa.

Pedro Carvalho — Uma coisa que nós sempre quisemos fazer mas nunca rolou por mil motivos foi tocar no Nordeste. É um plano possível para mais adiante. Assim como Argentina e os EUA de novo também. Com a Mila por lá fica mais fácil. Mas por enquanto só dá para fazer conjecturas, não tem como planejar nada muito certo. Ah sim, o que já está certo é que o EP vai sair nos EUA e na Argentina em fita. Acho que por enquanto os planos são esses.

Ouça Os Segredos do Espaço e Tempo, no Bandcamp.

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