Ao redor de novas e velhas canções: conheça o Sample Hate

O Inimigo
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8 min readMay 25, 2020

Dois experientes músicos potiguares se unem em projeto que caminha entre o orgânico e o eletrônico

Por Pedro Lucas

A geração mais produtiva da música independente natalense já caminha há quase 20 anos trazendo à baila bandas, projetos, novas sonoridades e experimentações sem deixar a peteca cair. Atravessando gêneros e estilos, caminhando entre tendências e compassos geridos pela contemporaneidade, a cena musical natalense sempre traz novas direções e revelações. O Sample Hate, projeto novo na praça de velhos conhecidos da música potiguar, é a mais nova aposta na área: formado por Dante Augusto e Artur Porpino, que somados devem juntar mais de duas dezenas de bandas no currículo, o duo traz canções produzidas em interação entre instrumentos orgânicos e eletrônicos, com sons de peles de bateria atravessado por sons de pratos eletrônicos, com samples de bandas antigas siderados por vozes perpassada por filtros robóticos, em uma verdadeira inspeção da relação homem-máquina mediada pela brisa tropical da cidade.

A dupla tem lançado singles quase que semanalmente e, embora não tenha promessa de disco integral pra mandar ver, tem sido um bom número de canções finíssimas, ancoradas numa espécie de releitura daquele triphop produzido nos anos 90 por bandas como Massive Attack e Portishead, mas com um vigor identitário que afasta qualquer simples comparação.

Para celebrar o lançamento do mais novo single, com a canção “Beautfiul”, batemos um papo com Dante e Artur sobre o início da parceria, a proposta musical que trazem, e também sobre pandemia e futuro da música. Futuro este com o qual o Sample Hate não parece se importar muito: o futuro que os interessa é aqui e agora.

O Inimigo — Como o projeto surgiu? Como se iniciaram os processos de composição e de construção das músicas?

(Artur) Em 2019 a gente passou um mês na Chapada Diamantina e naturalmente acabamos estabelecendo uma espécie de rotina. Além das trilhas e banhos de cachoeira, tínhamos violões, bateria e percussões por perto. A proximidade com a natureza majestosa, o som das cachoeiras, as árvores e as montanhas contrastavam muito com a dinâmica urbana das nossas rotinas. Isso culminou num estímulo criativo natural. Então acho que, neste início, foi a necessidade de tocar e criar música associada às reflexões sobre inconsistências da vida urbana. Em poucos dias a gente já tinha composto “Same Old Situation”, “Shaking” (que veio a se chamar Wake Alive) e “Friendzone” (que ainda será lançada). E a gente percebia que a estética não se enquadrava ao Fukai. Era algo mais nosso mesmo. Depois de uma viagem psicodélica à beira de uma fogueira vieram o tema e melodia dos versos de “Spiral Dynamics”. Basicamente, em duas ou três semanas já tínhamos a estrutura do que poderia ser um EP. Quando voltamos a Natal, estabelecemos uma frequência de encontros e novas músicas foram acontecendo, enquanto íamos arranjando e gravando as estruturas que havíamos composto na Chapada. Muitas vezes eu já dormia na casa de Dante pra no outro dia acordar cedinho, ir surfar e depois voltar pra uma sessão de gravação.

O Sample Hate tem uma proposta algo maquinal, de ter uma conexão entre vocês dois e as máquinas, com os samples, programações, synths, baterias eletrônicas em cima de instrumentos orgânicos. O que tem por trás disso? Há um referencial, algum ponto de onde vocês partiram ou algo que vocês se espelharam?

(Artur) A proposta do Sample Hate talvez seja apenas a consequência da colaboração entre dois músicos de experiências musicais intensas e diferentes. Sempre tive uma proximidade muito grande com instrumentos orgânicos, especialmente bateria, percussões, violão e voz. Nessas incursões, estudei harmonia de jazz e bossa nova, estudei ritmos variados na bateria e percussão, cantei, criei e participei de muitos projetos, desempenhando funções variadas, muitas vezes rotacionando entre as formações das bandas. Dante é o cientista maluco que também toca vários instrumentos, mas que mexe com a física, com a tecnologia, com os pedais, efeitos, com a manufatura de synths, com os timbres mais ousados, muita criatividade e referências entre clássicos e novidades do mundo underground da música.

Cada vez mais que a gente foi misturando as influências, cada um foi se aproximando um pouco do universo do outro e criando, por consequência, algo novo e de sonoridade peculiar. Nos permitimos explorar essa diversidade que estava aflorando: pratos orgânicos sobrepostos em camadas de bumbos e caixas eletrônicos, baterias programadas, baterias em pads combinadas a percussões orgânicas, uso de ganzás, alfaias, darbukas, uso de compassos compostos, reamps variados, compressões, chorus e tantas outras coisas.

Vocês participaram de diversas bandas e hoje tocam juntos no Fukai. Como vocês se veem em retrospecto, com seus sons antigos, que faziam tempos atrás, em relação ao som que praticam no Sample Hate? Há um amadurecimento, há uma espécie de maturação de ideias que vocês estavam desenvolvendo? Vocês veem um processo de evolução ou mudança enquanto compositores nesse projeto?

(Dante) A evolução é algo meio sem começo e meio sem fim. Nessa trajetória, acho que um ponto de revolução foi quando resolvi fazer a transição de quem escuta muita música para quem que se aprofunda no feitio da música. Foi tocando violão na rua de casa, no começo da adolescência, com uns amigos, que essa transição ocorreu. O passo seguinte foi experimentar como guitarrista e cantor em bandinhas de garagem com o pessoal que frequentava os shows e espaços que abrigavam a cena autoral mais voltada a rock, punk e música underground. Aprendi a compor canções estudando os covers pop rock, rock simples, algumas formas de punk, indie e folk que aprendia pra tocar nas bandinhas cover. Depois de um tempo como guitarrista, me surgiu um desejo de estudar teclado, pois minha intuição me falava que as teclas me dariam uma visão mais geral, quase holística da música e foi verdade, mas não tenho instrumento preferido. Essa experiência com um teclado eletrônico acabou me introduzindo ao mundo dos sintetizadores e foi um momento crucial na minha formação musical porque desde que comecei a querer criar música, eu sempre primei por algum tipo de originalidade, fosse alguma sacada em riffs ou estrutura mais abstrata das canções, ou nas sonoridades e timbres dos instrumentos usados para colorir as ideias. O sintetizador me mostrou os sons que eu já vinha buscando e pensava que conseguiria encontrar com guitarra, sobrepondo muitos pedais. O synth me mostrou que eu conseguiria mais facilmente construir esses sons, aquelas sonoridades mais diferentes de tudo que eu já tinha ouvido. Depois disso foi efeito em cadeia, conheci os samplers, drum machines, grooveboxes e os softwares de programação e sequenciamento, tudo isso enquanto curtia e estudava muitos DJ’s, experimentadores bem ousados e produtores de música eletrônica. Desde então, venho incorporando esses elementos em quase tudo que faço como artista e como produtor.

No Sample Hate, Artur trouxe muito essa coisa em comum do compor canção. A fagulha criativa sempre começa com violões, papel e caneta. Só quando já temos uma estrutura de canção sólida é que entramos em estúdio para compor arranjos de outros instrumentos ou explorar design de som para a música. O Sample Hate é muito fruto da nossa insistência em produzir música, não sabemos o dia de amanhã nem se vamos fazer música até ficarmos idosos, mas sabemos que enquanto der, a gente vai fazer música. Com isso em comum, recursos técnicos de registro e edição de música digital, juntamente com nossas habilidade em diferentes instrumentos, nos dedicamos ao processo criativo para ver os frutos brotarem em forma de fonogramas.

Como vocês veem a música nesse período algo apocalíptico? Fazendo um som tão ligado ao futurismo de algum modo, vocês enxergam alguma conexão entre o momento atual e esses singles, alguma intuição ou reflexão contidas ali?

(Dante) Eu gosto muito de analogias para explicar meus pensamentos e vou usar esse artifício para passar minha visão sobre o tempo antes, durante e pós pandemia. Diria que agora estamos submersos em um lago e há uma tempestade com ventos muito fortes sobre a nossa superfície. A paisagem que víamos do lado submerso do lago está mudando rapidamente e a água está bem turva, nos impedindo de enxergar o que está à nossa frente. Previsões são muito arriscadas nesses momentos, acho mais construtivo tentar enxergar o antes e como ele nos levou ao agora. O campo da música enfrenta desafios gigantes nesse momento, mas do modo como eu vejo as coisas acho que foram problemas que nós músicos criamos. Criamos esses problemas ao não nos aceitarmos como profissionais sérios que prestam um serviço como qualquer outro à sociedade. Criamos esses problemas nos comportando como crianças narcisistas e mimadas que fazem qualquer concessão em troca de atenção, concessão criativa, concessão econômica, e muitas outras, tudo em troca de atenção vazia e desinteressada, por muitas vezes falsa. Doamos gratuitamente nosso bem mais valioso que é nossa introspecção criativa e recolhemos as migalhas de pessoas que tem preconceito com nossa profissão e nos chamam de vagabundos e preguiçosos. Criamos esses problemas ao comprar o mito do rock star genial, drogado e desorganizado que estoura um hit aos 22 e morre aos 27. Criamos esses problemas quando temos uma mentalidade competitiva com nossos companheiros de profissão, quando deveríamos agir em conjunto pelos nossos interesses em comum. Criamos esse problema ao dar fonogramas e esperar que o dinheiro entre apenas no show, quando todos sabemos muito bem a pletora de recursos materiais e humanos necessários para se produzir um fonograma.

Existem muitos problemas e acredito que ainda teremos muito tempo para pensar neles. Acabamos de sair de uma era de muita bonança e abundância musical, muita música de todos os gostos sendo produzida, sendo distribuída quase gratuitamente. Acredito que a crise vai gerar um efeito de seca que, quando for percebido e sentido pela sociedade como um todo, exigirá de nós músicos reposicionamentos diante de todas essas reflexões.

Quanto à conexão entre nosso som e o momento atual, eu não vejo tanta conexão, pois essas músicas que temos lançado são o nosso acumulado de um momento pré-pandemia, quando o fato de morarmos em casas diferentes e nos encontrarmos no estúdio para produzir não representava risco à nossa saúde, nem à dos que nos rodeiam. Músicas mais conectadas com o momento estão começando a acontecer agora. A nossa adaptação operacional ao isolamento está bem suave e o desafio de produzir como uma dupla de isolados já tem gerado coisas interessantes. A troca de arquivos em boa qualidade e a sobreposição de camadas à distância tem funcionado bem para nós, estamos mais motivados e com mais tempo disponível agora do que antes da pandemia. A sensação meio apocalíptica que tem permeado esses dias tem me feito buscar mais restrições técnicas na hora de produzir. Mesmo tendo acesso à recursos de produção que acumulei durante o tempo, tenho buscado a criatividade que só a insistência em recursos mais limitados faz brotar. Softwares gratuitos de gravação, aplicativos baratos de sequenciamento de samples, construção de sintetizadores com sucata eletrônica e muita pesquisa de samples no Youtube tem sido o ponto primordial das sonoridades que orbitam ao redor das velhas canções de violão que sempre encontram caminho através das eras, revoluções e pandemias.

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