Flaviola renasce olhando para frente

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4 min readJun 24, 2020

Artista pernambucano lança segundo álbum 44 anos depois da estreia

Flaviola costa a costa com D Mingus, parceiro no álbum Ex-Tudo

Por Hugo Morais

Muita gente lembra de Flaviola e O bando do Sol, de Recife, com carinho e devoção. Não é para menos: o disco homônimo do grupo saiu em 1976, uma época áurea da produção nordestina e do que se chamou de Psicodelia Nordestina, e é um clássico cult. Um sumiço depois de um disco desses é motivo pra muitos questionamentos. Mas se Flávio Lira, o Flaviola, desapareceu em forma de cantor de banda, de disco, e passou décadas sem voltar a Recife, ele nunca desapareceu artisticamente. Entre São Paulo e o Rio de Janeiro, fez trilhas para peças, composições para outros artistas, dirigiu musical, participou de Bienal.

Flaviola e O Bando do Sol foi gravado e lançado de forma independente. Manoel Lira, pai de Flaviola e desembargador, bancou a produção. O selo Rozenblit, de Recife, lançou a obra. A despeito do que todos que ouvem o disco acham, Flaviola não gostou do resultado, achou a gravação fraca, a capa com material ruim. Muito da qualidade do disco vem de sua força artística. Do folk, do psicodelismo, que torna a obra grandiosa.

A capa do álbum Ex-Tudo, de Flaviola

Foram 25 anos sem desembarcar em Recife. Mas durante a passagem para o Abril Pro Rock de 2015, Flaviola conheceu D Mingus e as obras de vários artistas de Recife. Bateu a vontade de gravar de novo. Não seria ainda naquele momento, mas a semente foi plantada. Entre idas e vindas, de 2017 a 2020, Ex Tudo foi concebido, nasceu e cresceu. Se mostrou um evolução natural do primeiro disco, 44 anos depois. Mas Flaviola quase desapareceu como matéria, corpo, por uma doença misteriosa, em meio ao processo. A capa do novo disco diz muito sobre isso, um período difícil e que foi superado.

Ex Tudo saiu, primeiro, porque Flaviola quis. Segundo porque Domingos Porto, o D Mingus, músico natural de Arcoverde, assumiu a tarefa de criar o álbum. O processo se deu entre idas e vindas de Flaviola do Rio de Janeiro para Recife entre 2017 e 2019 quando o músico resolveu se estabelecer por um tempo no sítio, em Aldeia, na casa de seu amigo Pedrinho. D Mingus resolveu se mudar para o sítio onde Flaviola estava e depois mudou para o sítio ao lado, onde o processo ganhou força como um todo. E por fim o disco saiu porque um grupo de músicos abraçou o projeto, entre eles Tiago Marditu, Júlio Ferraz, Thiago França, Theo Galindo, Juvenil Silva, Daniel Liberalin e Numa Ciro.

A obra passeia pelo passado, presente e futuro. Sem medo. Algumas músicas apontam para um cenário bucólico, ancorado num folk, como “A Ideia” que abre o disco com cara de 1976. “Bambu” segue no clima, mas “No Centro d’Ação” já se percebe que Flaviola não se prende ao passado e mostra um caminho apontando para frente. Introspecção ainda é um bom mote para se escrever e a voz do cantor dá o peso necessário para olhar para dentro. “Sem Tema” já aponta uma veia mais pop, com uma pegada dançante, e fala de limitação. Tema/rótulos que muitos se enquadram e tentam enquadrar.

“Poder e Saber” mostra, em formas eletrônicas, a necessidade do equilíbrio do que está em cima e em baixo. E mais do que o equilíbrio, a necessidade de crescimento. Poder e saber, se não andam de mãos dadas, não somam. “Crânios” é das mais bonitas do disco. Aqui o bucólico atinge o ápice chegando a um tom medieval, trovador, com direito a personagens que ornam muito bem a obra. Em vários momentos do disco Flaviola mostra que a música, a necessidade de criar, pensar e cantar é se mostrar vivo. Isso fica claro em “Pra Não Desesperar”.

D Mingus e Flaviola durante a gravação

“Recife Submerso” tem cara de lembranças, de nostalgia. Flaviola, em entrevista aJotabê Medeiros para a Carta Capital, falou que os anos 70 foram um horror. Seriam lembranças daquela época? A música é a mais pesada do disco, com uma pegada roqueira forte com pitadas eletrônicas, que inclusive permeiam o disco como um todo ao lado da introspecção e observação dos dias. É o caso de “Setembrina”, que passeia pelo orgânico e eletrônico com desenvoltura. “Mata Hari” é uma homenagem a Margaretha Gertruida Zelle, dançarina condenada a morte por espionagem na Primeira Guerra Mundial.

“Nunca Vá Embora”, a mais eletrônica do disco, é sexualidade pura e encerra o disco de forma a dar a obra uma cara enigmática, uma beleza estranha. A música é o encontro de corpos que se completam e se querem mais. O tom dançante e a interpretação de Flaviola abre até espaço para se imaginar uma noite bem curtida na rua e em casa. Flaviola volta em grande estilo.

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