Após surgir como diferencial, colaboração no jornalismo deve se fortalecer em 2019

Tendência é que apareçam mais projetos colaborativos contra desinformação, cobertura de ódio, reportagens transnacionais e parcerias de redações com a academia e com os leitores

Guilherme Amado
O jornalismo no Brasil em 2019
6 min readDec 17, 2018

--

Há pouco mais de um ano, quando entrevistei 20 repórteres e editores brasileiros para traçar um panorama da colaboração no jornalismo brasileiro, o cenário que encontrei sugeria ser improvável que surgisse nos meses seguintes algo como foi neste 2018 o Comprova, o consórcio de checagem de notícias falsas criado pelo First Draft News, programa de Harvard contra a desinformação em períodos eleitorais, e pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji). Mas eis que aconteceu. O Comprova, encerrado logo após as eleições, foi a maior colaboração de veículos concorrentes da história da imprensa brasileira, com 24 organizações jornalísticas atuando sob os mesmos padrões e regras em nome do combate às notícias falsas.

Como a edição 2018 do especial O jornalismo no Brasil previu que ocorreria, a colaboração foi um dos veios mais vigorosos do jornalismo brasileiro neste ano, com o sucesso não só de um, mas de dois projetos colaborativos contra a desinformação, já que houve também o Fato ou Fake, exclusivo de veículos do Grupo Globo, mas que igualmente plantou no gigante grupo de mídia importantes sementes de colaboração. Mas o que aconteceu? Como num passe de mágica, desapareceu a cultura de competição que prevalecia? Em 2019, passaremos a ser ursinhos carinhosos da colaboração, com veículos deixando para trás a ética da disputa em nome de um bem maior? Nem tanto.

Ainda existem desafios grandes à colaboração, mas está cada dia mais claro que, curiosamente, saber colaborar se tornou um diferencial competitivo. A tendência é que a disseminação da cultura de colaboração ganhe velocidade em 2019, e mais redações, a exemplo do que ocorreu este ano, percebam que incentivá-la em diferentes instâncias é imperativo.

Vou enumerar cinco frentes em que vejo possibilidade de colaboração em 2019, com ideias salpicadas aqui e ali de projetos colaborativos, como uma maneira de inspirar quem se anime a deixar de lado o esquema de detetive solitário que (ainda) predomina na imprensa brasileira.

Apesar do sucesso do Comprova e do Fato ou Fake, a desinformação continua sendo um desafio. As notícias falsas não evaporaram com o fim da campanha eleitoral. Pelo contrário. Tudo indica que diferentes grupos políticos devem intensificar seu uso, e novas lógicas de colaboração podem surgir para enfrentá-la. Mas, independentemente de novos arranjos, os veículos que colaboraram nos dois consórcios, bem como os que assistiram de fora, mas ficaram com água na boca de participar, deveriam adaptar orçamentos ou correr atrás de novas fontes de recursos para manter seus trabalhos. Não faz sentido deixar a informação falsa circular livremente e só se organizar para combatê-la conjuntamente de quatro em quatro anos. O WhatsApp é o desafio mais evidente, e devem ser pensados projetos coletivos exclusivos para esta rede social, mas ainda há muito o que fazer no Twitter, Facebook, Instagram e YouTube — plataforma geralmente esquecida, mas um importante canal de disseminação de notícias falsas.

Outra área em que há demanda para o surgimento de novos projetos colaborativos é na cobertura do ódio na sociedade brasileira. Aparentemente, os casos de violência física e psicológica contra diferentes grupos — mulheres, negros, homossexuais, nordestinos, jornalistas etc. — tiveram um aumento durante e após as eleições de 2018 e podem aumentar, a depender do cenário político de 2019. Ainda não há no Brasil nada parecido com o Documenting Hate, projeto colaborativo da ProPublica, um dos principais veículos de jornalismo investigativo sem fins lucrativos nos Estados Unidos. O projeto criou uma plataforma, abastecida por cidadãos, com casos de ataques físicos ou verbais motivados por ódio ou preconceito. Cada ocorrência relatada é checada por voluntários e o mapeamento fica à disposição de veículos, para que seus repórteres deem aos dados e às histórias tratamento jornalístico. No Brasil, a iniciativa poderia partir de veículos com ou sem fins lucrativos, e deveria ser aberta a concorrentes, a exemplo do que o JOTA faz, com o Lava JOTA.

A crise econômica da indústria de mídia deve ainda acelerar o desenvolvimento de outro lado da colaboração ainda muito incipiente no Brasil: a escuta de leitores. Ouvi-los é o primeiro passo para uma redação se abrir à colaboração. Métricas são fundamentais, mas basear-se apenas nelas não leva nem ao sucesso jornalístico nem ao comercial. Se você se preocupa em perguntar ao seu leitor o que ele acha do que você vem produzindo, transformando-os em parceiros do que você faz, seu produto se torna mais relevante e útil. A crise de credibilidade que a imprensa vive hoje deve mais e mais contribuir para que jornalistas se desencastelem, e perguntem aos seus leitores a razão de não confiarem no que leem na imprensa profissional. Ainda nesse sentido, há demanda para projetos apurados com a colaboração de leitores. Por que não se aproveitar o começo dos novos governos para convidar os leitores a fiscalizarem determinadas áreas das novas administrações? A mesma lógica se aplica às assembleias e bancadas estaduais no Congresso que tomarão posse. Convidar os leitores, por exemplo, para ler grandes quantidades de documentos ou ensiná-los a mexer em bases de dados públicas não só aumenta a chance de dali vir informação de qualidade como dá a eles mais poder como cidadãos.

Parcerias com a academia é outro setor em que há possibilidades de crescimento no Brasil. O conhecimento específico que especialistas têm pode somar-se à capacidade do jornalismo de traduzir temas complexos de maneira fácil. A intersecção entre academia e redação pode fazer bem aos dois lados do balcão, melhorando a profundidade de reportagens e tornando mais acessível o saber restrito às universidades. A investigação jornalística pode se favorecer muito, trazendo a ciência — de dados, perícias, testes de laboratórios, experimentos etc. — para a reportagem. Veículos que souberem usar a colaboração com a academia em 2019 podem melhorar a qualidade de suas reportagens e tornar isso parte da estratégia de recuperação da credibilidade.

No jornalismo investigativo transnacional, a colaboração dos últimos anos na América Latina tende a ir além da corrupção e do crime organizado, com mais parcerias em reportagens de direitos humanos, meio ambiente e temas sociais. Hoje se tem a impressão de que estamos na época de ouro da colaboração entre jornalistas na região, mas ainda há muito mais o que fazer. Onde está o grande consórcio de jornalistas sul-americanos para cobrir a Amazônia? E por que não uma rede de jornalistas de direitos humanos para cobrir as rotas de imigração do continente?

Se você tem ideias de colaboração, mas ainda não sabe exatamente como formatar seu projeto, mergulhe na base de dados do Center for Cooperative Media, da Universidade Montclair, de Nova Jersey, Estados Unidos. Traduzida recentemente para o português, a base traz mais de 200 exemplos de projetos colaborativos de diferentes perfis, com o bê-a-bá sobre como se organizaram, financiamento, métricas e todo o roteiro para você criar suas redes de colaboração. A contar pelo ano que termina, 2019 tem tudo para que elas sejam ainda mais necessárias.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2019. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

--

--

Guilherme Amado
O jornalismo no Brasil em 2019

Investigative columnist for Epoca Magazine, in Brazil. 2017-18 JSK Fellow at Stanford, ICIJ member and interested in innovation and collaboration in journalism.