Eleições e luta pela preservação da legitimidade consolidam práticas de colaboração

José Antonio Lima
O jornalismo no Brasil em 2020
5 min readDec 19, 2019

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Em 2020, um ambiente hostil à imprensa e pautas de grande interesse público fortalecerão o jornalismo colaborativo

Em um cenário adverso, no qual se acumulam tentativas de deslegitimação do trabalho jornalístico — a começar pela acusação de sermos “fake news” — a colaboração surge como alternativa para enfrentar dificuldades, como destacou a edição 2018 do especial O Jornalismo no Brasil. Tal qual previu a versão 2019, o ano que termina foi de disseminação da cultura da colaboração. Muitos desafios permanecem, mas as parcerias entre órgãos de mídia profissionais são um caminho sem volta. Em 2020, trilhá-lo é fundamental para que o jornalismo continue atuando para preservar o interesse público e para fortalecer as coberturas locais em um ano de eleições municipais.

Na história recente, o termo jornalismo colaborativo se tornou palavra-chave para designar parcerias entre jornalistas e seus leitores. O objetivo era tirar os jornalistas do pedestal em que geralmente se encontram, ampliar o espaço do público e pedir auxílio para grandes investigações. Alguns formatos foram tentados nesse sentido, mas os desafios impostos à imprensa são tão grandes que jornalismo colaborativo passou a ter também outro significado, um que também mexe com uma vaca sagrada da profissão. Para além da colaboração redação-leitor, é preciso realizar parcerias entre redações, mesmo que concorrentes diretas. A ideia é, em determinadas situações, abrir mão da exclusividade em nome de outros valores. Mas quais?

O mais óbvio e importante é o interesse público. Foi esse princípio — e a necessidade de proteger as empresas jornalísticas e seus repórteres, responsáveis por levar ao público algo que era de seu interesse — que motivou colaborações recentes. Entre elas podemos citar as realizadas diretamente pelas publicações nos casos envolvendo o WikiLeaks (Afghan War Diary, Iraq War Logs, Cablegate etc) e os vazamentos de Edward Snowden, ou as colaborações sob a guarida do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (Panama Papers, Paradise Papers, Bribery Divison etc).

As colaborações iniciadas no exterior investiram contra governos poderosos, seus aparatos de inteligência, contra as gigantes da internet e lavadores de dinheiro. Nenhum jornal sozinho teria sustentado uma briga dessas. Essas experiências foram a referência para a busca, por parte do Intercept Brasil, de parcerias para a cobertura da chamada #VazaJato.

Guardadas as devidas proporções, o Intercept Brasil, sozinho, também teria dificuldades para investigar a maior operação de combate à corrupção da história do Brasil, que ganhou força própria, lançou carreiras políticas e passou a integrar o governo federal. A cooperação com redações mais tradicionais trouxe legitimidade e aumentou o grau de proteção a quem estava lidando com os arquivos nos quais se baseiam as investigações, cuja origem permanece desconhecida.

O Projeto Comprova, coalizão liderada pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, vai no mesmo sentido de preservar o interesse público. Mentiras e falsidades sempre fizeram parte da vida política em qualquer lugar do mundo, mas seu uso organizado e sistemático, catalisado pela descomunal força das redes sociais, com o intuito de esgarçar tecidos sociais, provocar a polarização das sociedades e, assim, obter resultados políticos, é uma novidade recente.

Preservar a saúde do espaço público de informação é missão do jornalismo, mas como um único veículo poderia fazer isso? A resposta do Comprova vai direto ao ponto. Os veículos cedem seus repórteres a uma coalizão na qual trabalham em conjunto com colegas de diversas outras organizações. O resultado da parceria é compartilhado por todos e pode ser utilizado inclusive por empresas de mídia que não participam da iniciativa.

Outros projetos colaborativos respondem a desafios de natureza diferente. Desde 2018 está funcionando a Rede Nordeste de comunicação, que congrega Correio (BA), Jornal do Commercio (PE) e O POVO (CE). Os três jornais compartilham seus conteúdos, enfatizando aspectos locais e regionais. A partir dessa ideia pode-se vislumbrar dois avanços relevantes. O primeiro é consolidar e ampliar a importância do jornalismo nordestino, o que será benéfico não apenas para o leitor local, mas também para o resto do país entender melhor a região. O segundo é a possibilidade de o projeto atuar contra ou inspirar iniciativas que possam mitigar o alarmante cenário dos desertos de notícias.

Em 2020, esses desafios vão continuar conosco. As eleições municipais salientam o drama dos desertos de notícias. Parcerias inspiradas na Rede Nordeste, sejam estaduais ou regionais, podem fazer coberturas eleitorais de municípios do interior do Brasil que não tenham imprensa dedicada a isso.

Do mesmo modo, o Comprova pode servir de modelo para a cooperação de veículos que realizem coberturas regionais dentro dos estados, combatendo a desinformação durante o pleito.

Uma possibilidade é a parceria entre veículos independentes fortes e outros locais. O modelo pode ser o usado pela Agência Pública nas eleições de 2018, quando foram feitas verificações em sete pleitos estaduais.

Mais importante é a necessidade de as empresas jornalísticas brasileiras estarem à altura dos desafios colocados. Além de ter de lidar com um cada vez mais complexo ecossistema de informação, o jornalismo profissional está sob ataque. A única forma de lidar com esse cenário é lutar para preservar a credibilidade e a legitimidade do trabalho jornalístico.

A melhor forma de fazer isso é por meio da colaboração. Pesquisas indicam que o leitor sabe que a cooperação eleva a qualidade do trabalho e também dos padrões éticos. Assim, seguir diretrizes padronizadas de ética e transparência, a exemplo das que propõe o Projeto Credibilidade, pode aumentar a confiança no jornalismo como um todo. Se em 2020 os diversos veículos de imprensa criarem mais espaços comuns de contribuição — na feitura de reportagens, no combate à desinformação, na cobertura das eleições ou na realização de pesquisas eleitorais –, serão capazes de compartilhar sua credibilidade e reduzir a força das campanhas que buscam deslegitimar o jornalismo profissional.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2020. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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José Antonio Lima
O jornalismo no Brasil em 2020

Jornalista e professor. Doutorando em Relações Internacionais (USP). Oriente Médio, jornalismo e política.