Para se engajar com o público, jornalismo precisará escutar

Paula Miraglia
O jornalismo no Brasil em 2020
4 min readDec 19, 2019

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Em 2020, engajamento passará por levar a sério a ideia de comunidade, olhar para novas métricas e cultivar relação com a audiência

“Toda conversa começa com uma boa escuta”. A frase, atribuída a um autor desconhecido, evoca um dos princípios fundamentais quando se trata do relacionamento com a audiência. Desde que engajamento virou a palavra para medir o impacto e a performance de um conteúdo, as métricas de desempenho de uma notícia passaram a ser construídas em torno do comportamento da audiência. E, nesse sentido, escutar, interpretar e responder aos leitores vêm ganhando centralidade na atividade jornalística. Em 2020, não será diferente.

Mas, ainda que isso possa soar como uma das atualizações do jornalismo na sua versão digital, a ideia de prestar serviço aos leitores está no coração do jornalismo desde sempre. “O engajamento deve ser visto como parte do compromisso do jornalismo com a cidadania”, escreveram Bill Kovach e Tom Rosenstiel no clássico livro Elements of Journalism.

Por um lado, estamos realmente falando de novos comportamentos no consumo de notícias (sobretudo entre os mais jovens), do protagonismo das plataformas de distribuição de conteúdo, inclusive o jornalístico, e de todos os problemas e desafios que elas trazem. Por outro, a popularidade e importância das seções de cartas ou a prestação de contas feitas pelos ombudsmen — recursos antigos e tradicionais dos jornais — mostram que canais de interlocução com os leitores sempre foram combustível para a produção dos jornalistas.

Qualquer reflexão sobre o futuro quando o tema é “engajamento com a audiência” precisa, portanto, contemplar essas duas dimensões. Já que, novamente segundo Kovach e Rosenstiel, “parte da responsabilidade do jornalismo é não apenas disponibilizar informação, mas disponibilizá-la de um modo que as pessoas estejam inclinadas a escutar”.

Esse tem sido um tema para organizações de mídia muito diferentes em termos de perfil e tamanho. Veículos tradicionais, por exemplo, têm chamado a atenção de seus leitores para o seu valor como instituição. Novas iniciativas associam sua independência ao financiamento exclusivo dos seus leitores. No Brasil e no mundo, 2020 será um ano em que aquilo que chamamos de engajamento da audiência ganhará ainda mais centralidade, em versões cada vez mais criativas. Nesse contexto, 3 pontos em particular me parecem relevantes:

Levar a sério a ideia de comunidade

“Talvez nada alimente tanto a lealdade do leitor quanto o engajamento — a sensação de fazer parte de uma comunidade”. Para o New York Times, seus leitores enxergam a si mesmos como parte de uma comunidade que tem o Times em comum, e eles “querem conversar e aprender um com o outro, não apenas sobre comida, livros, viagens, tecnologia e palavras cruzadas, mas também sobre política e política externa”. São vários os veículos que têm investido na construção de espaços onde a identidade dos leitores com o jornal e de uns com os outros possa ser posta em prática. O próprio Times criou um “Reader Center”, seção dedicada exclusivamente à interlocução com e entre seus leitores. A Folha de São Paulo só permite comentários de seus assinantes e agora esses também podem oferecer cinco conteúdos por dia de presente. O Nexo tem um grupo de Facebook exclusivo para assinantes, onde recebe sugestões, críticas, ideias de pautas e compartilha um pouco dos bastidores do jornal.

Olhar para novas métricas

Desde que o modelo de assinaturas se tornou o horizonte de sustentabilidade dos jornais, a “conversão” talvez seja a modalidade de engajamento mais importante. Como consequência, o volume de audiência não pode mais ser a única métrica a indicar o sucesso de um conteúdo produzido e publicado. Desde os processos de produção até a seleção de tópicos abordados, qual é o melhor conjunto de indicadores para entender o que significa produzir jornalismo de qualidade e capaz de converter?

Cultivar a relação com leitores, fãs, apoiadores

Mais do que consumir esse ou aquele conteúdo, estamos falando da construção de uma relação com uma marca ou com um determinado estilo de jornalismo. Que se traduz no consumo de notícias, mas também (senão sobretudo) no apoio a um determinado veículo, no endosso público, numa verdadeira relação. A campanha do Guardian talvez seja um dos casos mais bem-sucedidos desse tipo de interação e apoio. No Brasil, a Agência Pública criou o programa de aliados, que traduz o potencial da relação de um veículo com os seus leitores. Os jornais estão na memória afetiva das trajetórias individuais. Como os leitores mais jovens estão construindo essa memória? A ideia de “li na internet” ameaça a construção de uma relação com essa ou aquela marca. O desafio de engajar leitores passa, assim, pela decisão de estar mais próximo e estabelecer uma relação mais horizontal com a audiência. O que isso significa na prática? Como cultivar a relação com a audiência em 2020? Escutar sugestões, reconhecer publicamente os erros, celebrar os elogios, ou ter a disposição para explicar seu modelo de negócios e princípios editoriais, são exemplos nesse sentido.

As características de cada organização, seu modelo editorial e de negócios são o que vão determinar como essas práticas se concretizarão no dia a dia de cada veículo. Mas colocar o leitor no centro do processo de produção parece ser um ponto de partida que todas deveriam ter em comum.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2020. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Paula Miraglia
O jornalismo no Brasil em 2020

Co-fundadora e Diretora Geral do Nexo Jornal. Cientista Social e doutora em Antropologia