Nova onda de sindicalização e cooperativismo em contexto de plataformas digitais chegará ao jornalismo

Rafael Grohmann
O jornalismo no Brasil em 2020
6 min readDec 19, 2019

--

Movimentos por organização coletiva no jornalismo têm ocorrido em outros países e podem chegar ao Brasil em 2020

Em 2013, quando publiquei, com Roseli Fígaro e Cláudia Nonato, o livro “As mudanças no mundo do trabalho do jornalista”, um dos resultados era: o jornalista não se vê como trabalhador ou como parte da classe trabalhadora. Isso se relacionava, em alguma medida, ao não reconhecimento do sindicato, por parte dos profissionais, como uma instância de defesa coletiva em meio a um contexto de individualização e flexibilização de contratos e relações de trabalho.

De lá para cá, com a reforma trabalhista, houve uma normalização dos contratos antes considerados atípicos. Na terra de Bacurau, o bico sempre foi a norma, e o jornalista freelancer existia havia muito tempo, como um laboratório da reforma trabalhista. A esse cenário soma-se a intensificação de uma racionalidade empreendedora espraiada por todos os campos da vida — como lógica inescapável, totalizante e meritocrática. Empreender vira a resposta mágica para todos os problemas em contexto de reestruturação das redações e reconfiguração dos postos de trabalho e de iniciativas em jornalismo.

Isso se acentua com a plataformização do trabalho, que envolve gestão algorítmica, extração de dados e vigilância dos trabalhadores por meio de plataformas digitais. Além de motoristas de Uber e entregadores de iFood, há incidência das plataformas nas maneiras de iniciativas e jornalistas organizarem suas atividades de trabalho. O futuro do trabalho do jornalista será plataformizado. Isso se deve a uma dependência: a) dos próprios veículos midiáticos em relação às plataformas digitais globais; b) de jornalistas freelancers em relação a plataformas de trabalho; c) de profissionais que produzem conteúdo para plataformas digitais, com lógicas próprias, como o Youtube. Isso significa, de algum modo, pensar o trabalho jornalístico para além do que se convencionou como sendo jornalismo, pois estamos inseridos na cadeia global de valor do trabalho digital. E aqui falamos do ponto de vista dos jornalistas como trabalhadores.

Vivemos um tempo de inflexão. O cenário político-econômico global tem levado a uma série de movimentos para que os trabalhadores não sejam — ainda mais — engolidos. Mudaram as formas de organização e controle do trabalho — inclusive no jornalismo — e são necessárias, então, outras maneiras de resistência e organização coletiva do trabalho. Não existe trabalhador inorganizável. E, em meio ao contexto político que parece ter vindo de alguma série da Netflix, os jornalistas têm se reconhecido como trabalhadores e buscado novas formas de organização do trabalho que confrontem lógicas individualistas. Acreditamos que, em 2020, movimentos que têm ocorrido no jornalismo ao redor do mundo estarão em pauta no Brasil.

Um deles é a busca por formas autogeridas de organização do trabalho, que no Brasil têm proliferado principalmente na forma de coletivos. Ao redor do mundo têm surgido — forçosamente ou por iniciativa própria — cooperativas de jornalistas, buscando democracia no ambiente de trabalho a partir de um tipo específico, em termos jurídicos inclusive, de organização do trabalho. Na Argentina, a área de comunicação foi a que mais cresceu na economia cooperativista do país desde 2015 (início do governo Macri) e possui ao menos 20 cooperativas de jornalistas, como, Tiempo Argentino e revista MU. O Tiempo foi selecionado pela Google News Initiative para construir softwares livres destinados ao jornalismo autogerido.

Há a emergência de iniciativas jornalísticas com produção multiplataforma e em contexto de plataformas digitais — o chamado cooperativismo de plataforma. Podemos destacar Divergente, do Bagabaga Studios, em Portugal, e DocPress, da DocServizi, na Itália. No Brasil, há duas cooperativas de jornalistas — JorGraf, que edita a Tribuna Hoje, em Alagoas, e o portal Desacato, em Santa Catarina -, mas ainda faltam discussões sobre os entraves jurídicos às cooperativas de jornalistas no país e um maior diálogo com o cooperativismo de plataforma. Se não for tendência em 2020, o assunto deve ao menos estar em pauta nos espaços onde se discute o futuro do jornalismo e dos jornalistas.

Outro movimento é uma nova onda de organização coletiva dos jornalistas, seja esse nome “sindicato” ou não. Isso se dá em um contexto em que trabalhadores de plataformas digitais — desde Uber até Google — estão se organizando em protestos, greves e sindicatos. A Tech Workers Coalition — de trabalhadores do setor de tecnologia nos Estados Unidos — é um exemplo de que até a elite do Vale do Silício está procurando formas de organização. Outros exemplos são a Game Workers Unite, da indústria de videogames, com presença em vários países, inclusive Brasil e Argentina; e a Youtubers Union, da Alemanha, filiada ao maior sindicato metalúrgico do país, o IG Metall, com os trabalhadores exigindo da plataforma, entre outras coisas, maior transparência nos algoritmos.

No âmbito do jornalismo, destacamos o Writers Guild of America East, dos Estados Unidos, que reúne trabalhadores de VICE, Vox, The Intercept, MTV, HuffPost, Gizmodo e Fast Company, com cerca de 2 mil sindicalizados. Há também o sindicato dos trabalhadores do Buzzfeed — reforçamos que eles não fazem só memes — em um contexto de emergência de sindicatos de trabalhadores de outras iniciativas em plataformas digitais, como Pitchfork e NBC. Há também sindicatos de freelancers, como Freelancers Union, Canadian Freelance Union, ações sindicais de jornalistas frilas na Suécia, além do movimento #FairPayForFreelancers.

Em comum — além de estar localizados no Norte Global — estão a busca por uma organização coletiva dos jornalistas que seja adequada à forma atual do mundo do trabalho; o fato de nem sempre se considerarem como “sindicatos”, e sim como organizações de trabalhadores, em busca por novas palavras para designar novos momentos; o papel fundamental das plataformas digitais como meio de comunicação e, ao mesmo tempo, organização política dos jornalistas. Os jovens jornalistas estão cansados de ser alimentados por locais de trabalho descontraídos, pelo imaginário das startups de tecnologia, mas sob precárias condições de trabalho, como mostra pesquisa de Nicole Cohen e Greig de Peuter no Canadá. Além das condições de trabalho, os jornalistas clamam por maior diversidade racial nas redações e por maior controle sobre suas próprias atividades de trabalho.

De maneira nenhuma encaramos essas iniciativas com idealização ou como exemplos irrefutáveis dos direitos dos jornalistas como trabalhadores, mas apenas como tentativas, brechas e, de fato, movimentos de jornalistas em luta pela própria sobrevivência, em contexto de plataformização do trabalho jornalístico. Antes de tudo, trata-se de encarar o trabalho jornalístico a partir dos prismas da autogestão e auto-organização. Como pensar e adotar novas formas de defesa do trabalho de jornalistas em um mundo do trabalho que explodiu e não é mais o mesmo da década de 1980? Esse debate chegará ao Brasil em 2020, como uma agenda para organizações de jornalistas, universidades e profissionais.

Para o Brasil, os desafios são imensos, dadas as características do mercado de trabalho — não só em jornalismo, em que o “bico” por imposição sempre foi a norma e o efeito de desqualificação profissional (deskilling) vem corroendo as identidades específicas há tempos. Junte-se a isso a configuração atual das instituições de defesa coletiva dos jornalistas e o debate ainda incipiente sobre essas questões nas universidades. Vivemos um tempo de inflexão no país em que o universo mágico do empreendedorismo vai sendo desmistificado, e as pessoas e instituições começam a prestar atenção a outras formas de organização coletiva do trabalho jornalístico. Isso só acontecerá se for orgânico e de baixo para cima. As redes de iniciativas jornalísticas autogeridas são um exemplo disso, como o projeto InfoTerritório, iniciativa conjunta de Alma Preta, Desenrola e Não Me Enrola, Periferia em Movimento e Preto Império, também selecionada pelo Google News Initiative, destinada a fortalecer o jornalismo nas periferias de São Paulo.

O trabalho jornalístico no Brasil em 2020 será coletivo e autogerido.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2020. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

--

--

Rafael Grohmann
O jornalismo no Brasil em 2020

Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos e editor da newsletter DigiLabour