Outros jeitos de usar a notícia*

Ana Naddaf
O jornalismo no Brasil em 2020
9 min readDec 19, 2019

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Multiplicidade de suportes e de possibilidades de interação abre caminho para novas formas de contar uma história (e de fazê-la chegar a alguém)

Conhecido por contar histórias, o roteirista e cineasta Francis Ford Coppola resolveu investir em uma máquina para distribuir narrativas. O aparelho, que tem a forma de um cilindro, possui três botões indicando “um minuto”, “três minutos” ou “cinco minutos”. Ao ser pressionado, um conto é impresso em uma tira de papel, tipo recibo de supermercado. O tempo indicado no botão é quanto se leva para ler o texto. A tal máquina faz parte de um projeto da Short Édition, uma editora comunitária na França que instalou esses aparelhos em universidades, terminais de transportes urbanos e outros espaços públicos pelo mundo. A do Coppola fica no Zoetrope, seu restaurante em San Francisco, nos Estados Unidos.

Estudar novos canais de distribuição tem sido tarefa necessária para quem produz narrativas. Sempre haverá espaço para boas histórias e não faltarão maneiras de contá-las. Mas é preciso fazê-las chegar às pessoas. Se já é possível receber ficção apertando um botão, o que podemos projetar para a distribuição de conteúdo noticioso?

Em 2020, o uso da tecnologia e a coexistência de múltiplos suportes trazem (bons) desafios para a produção de narrativas jornalísticas e para torná-las mais relevantes. Mas, quando se fala em conectar o conteúdo a múltiplas oportunidades de alcance e interação, é necessário mapear canais e dispositivos e (re)desenhar estratégias de produção.

O agora e o porvir

Em uma lista de tendências no campo da distribuição convergem conceitos de hiperpersonalização e curadoria (segmentação e recomendação de conteúdo), transmissão contínua para distribuir conteúdo multimídia (streaming) e on demand com diferentes tipos de monetização (o consumidor decide quando, onde e como quer pagar para receber notícias), agregadores de informação para garantir fontes confiáveis e economia de tempo, novos canais para diferentes formatos de áudio e vídeo, verificação de fatos em tempo real, parcerias entre jornalistas e veículos de comunicação, integração entre dispositivos conectados à internet das coisas e envio e recebimento de informações para um incontável número de dispositivos (de aplicativo de mensagens instantâneas à tecnologia vestível).

Além de canais digitais, que ampliam e diversificam audiência, os canais offline aparecem como possibilidades de distribuição e são responsáveis não apenas por gerar comunidades, mas por aproximar produtos de mídia da audiência (e vice-versa) e serem propulsores para o financiamento de novas produções. No inventário de possibilidades figuram eventos relacionados a temas de projetos jornalísticos, palestras, cursos e até conversas sobre os bastidores das notícias.

Quando se fala na indústria da comunicação, parece que não há estabilidade definitiva no tempo presente. Tudo trespassa por um ar de alvitre. É preciso apostar, testar e errar para acertar. Como na metodologia criada para startups, o design sprint: criar, prototipar, testar e validar. E rápido.

Como palpite de apostador, desenha-se um 2020 onde é preciso adaptar — e distribuir — as notícias (principalmente, o hard news) para um impacto visual e usando recursos de áudio; testar diferentes canais para construir novas audiências; plataformas que agreguem conteúdo multimídia e permitam distribuição streaming e on demand (com diferentes acessos dos usuários nas transmissões: gratuito, exclusivo para assinantes e pay-per-view); e colaboração entre empresas de comunicação para ampliar produção e distribuição.

O novo momento da narrativa sonora

Nem Ira Glass, que possui um dos podcasts mais ouvidos do mundo (se você ainda não conhece, procure por This American Life), poderia imaginar a popularidade da distribuição de conteúdo via RSS. Tradicionais rádios nos Estados Unidos, como a NPR e a PRX, souberam adaptar conteúdo noticioso para esse formato. Apesar dos primeiros podcasts terem aparecido no Brasil há 15 anos, eles demoraram a chegar às redações. Somente entre 2017 e 2018, rádios brasileiras começaram a apostar no modelo, seguidas por outras empresas de comunicação — principalmente as centradas no impresso.

Com o intuito de construir audiências para o hard news, a consolidação do podcast deve se dar em 2020. A narrativa sonora aproxima e gera empatia em um público mais novo. Mas não só. É um bom recurso, ainda mais em um país eminentemente oral. Reportagens em áudio, novas propostas de podcasts e até experimentações em áudio 3D ajudam o público a entender melhor os fatos e a aprender algo novo.

Como uma volta à era de ouro do rádio, o áudio tem se tornado parte importante na produção de conteúdo e de como as pessoas descobrem mídia. Sobretudos quando avançam os dispositivos domésticos que usam princípios de inteligência artificial (como Google Home e Echos, da Amazon) e se disseminam assistentes virtuais ativados por comando de voz (como Alexa, Siri e Google Assistente). E por que apostar nisso para o próximo ano? Não é de hoje que o Google Assistente fala português, mas o gigante das buscas finalmente lançou no Brasil um speaker com sistema de assistente virtual — um pouquinho antes da virada para 2020.

Dos stories às grandes telas

Depois do boom em anos anteriores, novas oportunidades aparecem também para as narrativas visuais — de webdocs e vídeos curtos que explicam a notícia a produções audiovisuais não convencionais que contam histórias a partir da personalização, imersão e interatividade. Em 2020, o vídeo volta como ferramenta jornalística, graças a recursos tecnológicos com interfaces responsivas visuais, de áudio e táteis. E com mais canais de distribuição para formatos diferenciados e audiências distintas.

Produtoras estão testando conteúdos audiovisuais interativos nos quais o espectador toca, clica ou aciona por comando de voz as ações dos protagonistas, alterando o enredo em tempo real. O recurso tem sido usado por séries, como no episódio Bandersnatch, de Black Mirror, em que o público faz escolhas durante a narrativa. Mas a imersão e a interatividade não são recursos usados apenas pelo entretenimento. A empresa americana de mídia Ryot vem produzindo documentários em parceria com organizações de notícias, como o New York Times. São vídeos documentais imersivos que se utilizam de realidade virtual e ambientes em 360o.

Diferentes formatos audiovisuais (de curta e média duração) estão sendo produzidos e testados nas redações e com distribuição desse conteúdo para todas as telas. O site paraguaio El Surtidor, que trabalha com jornalismo visual, apresenta narrativas audiovisuais desenhadas para dispositivos móveis que combinam ilustração, gifs e vídeo animado. No Brasil, o Nexo usa bastante recursos audiovisuais e a interatividade de dados. Os dois veículos abordam temas em profundidade, sem complicar a narrativa, e facilitam a distribuição por vários canais. Suas histórias podem ser vistas no site ou compartilhadas por redes sociais e aplicativos de mensagens.

Os stories devem ultrapassar os feeds como a principal maneira de compartilhar informação, tornando-se assim um canal de distribuição em que se deve ficar de olho. Segundo dados do próprio Instagram, em 2019, dos mais de 1 bilhão de usuários ativos na rede de compartilhamento, cerca de 500 milhões assistem a stories diariamente. A curva de evolução dos números aponta para um crescimento em 2020. Além do engajamento e do reforço de branding que essa mídia possibilita, os stories do Instagram (e mais recentemente do Facebook) são responsáveis por uma boa parte do fluxo de entrada em vários sites de notícias — principalmente para uma audiência mais jovem.

A distribuição de notícias por meio das mídias sociais ganhou tanta força que novos aplicativos e ferramentas apareceram para incentivar a produção de conteúdo nesse formato. Caso do TikTok, aplicativo de mídia desenvolvido na China para criar e compartilhar vídeos curtos com cortes de imagens e inclusão de música. O Instagram está testando, exclusivamente no Brasil, uma nova funcionalidade na sua plataforma muito parecida com o TikTok, batizada de “Cenas”. Além de reforçar o uso de outro aplicativo seu, o IGTV, que permite vídeos mais longos, de até 10 minutos. O cenário noticioso de 2020, com eleições e Olimpíada, é propício para esses modelos de compartilhamento de informação. Inclusive com possibilidade de investimento em médio e longo formato para distribuição em grandes telas.

No entanto, desenvolver um novo público-alvo e monetizar por intermédio dessas plataformas leva os publishers a levantar algumas questões quanto ao modelo de negócio: quem possui o relacionamento com os usuários e quem controla os dados desses canais.

Traduzir a apuração jornalística em formato visual, com a vivência da imersão e da interatividade, faz surgir outra possibilidade para compartilhar informação: a “gamificação” (do inglês gamification, a técnica utiliza mecânicas e características de jogos para engajar e facilitar aprendizagem e contextualização). O Estado de S. Paulo, por exemplo, vem apostando na experiência de consumo de notícias por meio de infográficos, quizzes e jogos.

O “menu do delivery” e a entrega em volume

Com a otimização e o avanço da personalização de notícias, as redações estão utilizando recursos de marketing, investimento em tecnologia e várias linguagens para atrair audiência. O compartilhamento de conteúdo com os leitores e os boletins enviados pelos canais de mensagem — como WhatsApp, Facebook Messenger e Telegram — fazem parte dessa estratégia. E é fácil entender ao analisar alguns números.

O mais popular dos aplicativos no Brasil, o WhatsApp, está presente em 98% dos smartphones e com 98% dos seus usuários declarando que abrem todo dia ou quase todo dia o canal de mensagem. No entanto, as dificuldades técnicas de realizar a distribuição e o compartilhamento massivo de notícias falsas em períodos eleitorais são os problemas a ser enfrentados pelas redações ao usar o recurso em 2020.

As newsletters seguirão em alta. Tornaram-se recurso de distribuição com forte uso de táticas de marketing para aumentar o número de usuários ativos em sites e para conversão e retenção de assinaturas digitais. Em 2020, a aposta está em potencializar as newsletters com a inclusão de análises de articulistas, contextualização e indicações do editor. Além do aumento de envios segmentados pela escolha do próprio usuário (como newsletters exclusivas para torcedores de um time ou amantes da gastronomia). Já as notificações push estão se adaptando a novos dispositivos e wearables, ainda que estes não se tornem tão populares nos próximos anos.

Editores também estão prestando atenção a um novo tráfego de audiência proveniente das páginas de pesquisa de notícias e AMP (Accelerated Mobile Pages) — uma espécie de página alternativa do seu site que carrega de forma extremamente rápida. Google colocou o feed de notícias na página principal de pesquisa dos seus navegadores para mobile, assim como o Chrome passou a exibir notícias personalizadas de acordo com o hábito de pesquisa dos seus usuários — o que traz um efeito significativo nas referências de conteúdos jornalísticos.

A cooperação entre publishers também tem criado impacto e reduzido custos tanto na produção de conteúdo, como na distribuição. Caso das coalizões de fact-checking que surgiram nos últimos anos: Crosscheck (França), Comprova (Brasil), Verificado (México) e Reverso (Argentina). Ou ainda a redação pop-up Riksdagsvalet, que reuniu mais de cem jornalistas durante as eleições de 2018 na Suécia. Algumas dessas coligações estão apostando em verificação em tempo real — muito propício para o próximo ano, com as eleições municipais no país.

No Brasil, uma nova iniciativa de colaboração jornalística tem se mostrado efetiva. Os jornais O Povo (Fortaleza), Jornal do Commercio (Recife) e Correio (Salvador) somaram os esforços de suas redações para produzir e consolidar conteúdos únicos e cobertura diferenciada da região Nordeste, e também para potencializar alcance e audiência na distribuição feita pelas três empresas de comunicação.

Não se nega o fato de que tudo parece estar em constante transformação no fazer jornalístico. E há muitos “jeitos de usar” e distribuir notícias. Por isso, faz-se necessário acreditar em mudanças, provocá-las e testá-las. Para voltar ao início dessa conversa: o intuito é sempre contar boas histórias, mas é preciso fazê-las chegarem a alguém. Muitas vezes, com um simples apertar de botão.

* O título desse artigo se inspira na tradução provocativa em português (Outros jeitos de usar a boca) do livro Honey and Milk, da indiana Rupi Kaur.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2020. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

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Ana Naddaf
O jornalismo no Brasil em 2020

Diretora-executiva de jornalismo do O POVO. Jornalista com especialização em Cultura Visual (Universidad de Barcelona) e em Publishing (New York University).