Violências e outras formas de silenciamento ameaçam exercício jornalístico em 2020
Recrudescimento de assédio processual, perseguição online e violência física apontam para maior restrição à liberdade de imprensa
O Brasil está entre os dez países com maior taxa de impunidade em casos de homicídios de jornalistas e comunicadores, segundo o Índice Global de Impunidade publicado em outubro pelo CPJ (Committee to Protect Journalists). O país está na nona posição na lista que inclui países como Somália, Síria, Iraque, Filipinas e México. Entre os 23 casos de homicídios de jornalistas nos últimos dez anos no país, quinze permanecem impunes. Apesar de alguns casos terem sido levados à justiça, o cenário deixa muito a desejar.
É verdade que o Brasil tem altíssimos números de homicídios em geral, com algo em torno dos 60 mil casos por ano, e a imensa maioria não é investigada, nem chega à justiça. Mas o assassinato de um jornalista em retaliação ao seu trabalho não é apenas um homicídio, é um ataque à liberdade de imprensa uma tentativa de gerar medo e silêncio.
Sendo a liberdade de imprensa um dos pilares de uma democracia forte e vibrante, investigar e responsabilizar os homicídios contra jornalistas é essencial e urgente e deve ser um compromisso de todas as instituições do sistema de justiça criminal. Se um jornalista é assassinado, as investigações devem sempre apurar se o crime deveu-se ao exercício de sua função. Executores, intermediários e mandantes devem ser responsabilizados da forma mais célere possível. Quanto mais tardar a justiça, mais esse processo de medo e silêncio se consolida, colocando a liberdade de imprensa, e outros jornalistas, em risco.
A lentidão do sistema de justiça e o fato de que, muitas vezes, quando um caso é levado a julgamento, apenas os executores, e não os mandantes, são responsabilizados, são elementos que fortalecem os processos de silenciamento de jornalistas pela violência. A menos que as instituições do sistema de justiça criminal mudem sua forma de atuar, a perspectiva é de que em 2020 a impunidade seja marcante nos casos de violência contra jornalistas.
Em abril de 2019, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) publicou um relatório sobre o status das investigações dos casos de homicídio contra jornalistas e comunicadores no Brasil entre 1995 e 2018. Segundo o documento, dos 64 casos de jornalistas e comunicadores assassinados no período, apenas 32 foram solucionados. O quadro revela que o país tem um importante caminho a percorrer para garantir que casos de homicídios de jornalistas não fiquem impunes. Em maio de 2018, foi apresentada no CNMP uma proposta de recomendação sobre a priorização da persecução penal relativa aos crimes praticados contra jornalistas e profissionais de imprensa no Brasil em decorrência ou no exercício da profissão. Ela ainda não foi votada.
Assassinatos de jornalistas costumam ser precedidos de ameaças e ataques.Isso revela que o Estado falha em diversos momentos ao não investigar e responsabilizar os autores das ameaças, impedindo que elas se concretizem. Tampouco há, no Brasil, um mecanismo efetivo de proteção a jornalistas ameaçados. Em setembro de 2018 a Portaria 300 / 2018, do Ministério dos Direitos Humanos, estabeleceu que os jornalistas que cobrem temas de direitos humanos podem fazer parte do Programa de Proteção a Defensores de Direitos Humanos. A publicação da Portaria foi um passo relevante, mas insuficiente. O Programa de Proteção já vinha sendo desmantelado, e sua implementação era precária. Nada indica que isso vá mudar. Ao contrário. No governo federal, responsável pelo programa, estão autoridades que se posicionam publicamente contra defensores de direitos humanos e que, com frequência, atacam verbalmente jornalistas e veículos da imprensa.
Nos últimos anos, surgiram outras formas de violência contra jornalistas, como o linchamento virtual e o assédio online. É um fenômeno global, que afeta jornalistas em diversos países e com impacto particular sobre as mulheres, que, além de tudo, sofrem ataques misóginos. Várias pesquisas mostram que o assédio online é uma das maiores preocupações entre mulheres jornalistas. O fenômeno não é novo, mas parece ter ganho mais força e escala no Brasil desde as eleições de 2018. Candidatos no período eleitoral e autoridades públicas muitas vezes têm um papel-chave em iniciar ou alimentar o processo de assédio online contra jornalistas, em um efeito dominó perverso que começa com um tweet e se desdobra em uma avalanche de ataques e ameaças, como aconteceu com as jornalistas da revista AzMina e de O Estado de São Paulo.
Com frequência, os ataques massivos online incluem a divulgação de informações pessoais dos jornalistas, como seu endereço residencial, fotos de sua família e outros dados de sua rotina, expondo-os a possíveis ataques no mundo real.
As instituições do Estado e as empresas privadas parecem estar longe de encontrar um caminho para lidar com as chamadas milícias digitais, os robôs, o discurso de ódio e a incitação à violência. É de se esperar que em 2020 o quadro de assédio online e desinformação seja alimentado pelo furor de um novo período eleitoral. O perigo é que, para um problema complexo como esse, sejam propostas falsas soluções que signifiquem mais adiante maior restrição à liberdade de expressão e criminalização de comunicadores e jornalistas.
A violência não tem sido a única tentativa de silenciamento de jornalistas e de cerceamento à liberdade de imprensa. Quando se pensa a proteção integral de jornalistas, depara-se com outro padrão de ataque que é o assédio processual (ou assédio judicial) contra veículos da imprensa e jornalistas. O assédio processual acontece tanto na esfera criminal, que inclui os crimes de calúnia, injúria e difamação, quanto na cível, seja para para exigir remoção de conteúdo e censura prévia, seja para exigir compensação financeira por danos morais. A legislação brasileira, nesse ponto, é muito inadequada, permitindo a criminalização de jornalistas pelos chamados crimes contra a honra.
A resposta das autoridades, por meio de propostas legislativas, ao quadro generalizado de desinformação que tomou conta do debate público e que afeta, em particular, a dinâmica eleitoral parece estar indo em uma direção indesejada de criação de mais mecanismos de restrição à liberdade de imprensa e criminalização de jornalistas. Em novembro de 2019, houve mudança no Código Eleitoral brasileiro para incluir o crime de “denunciação caluniosa”, o que poderia ser facilmente aplicado para criminalizar jornalistas cobrindo as eleições de 2020.
O ano de 2020 será de enormes desafios para a proteção e segurança de jornalistas, ainda mais considerando as eleições municipais. A tendência é de que aumentem os casos de ataques contra jornalistas no ambiente online, mas não só. Tudo indica que será um ano de aumento da criminalização e do assédio processual.
Mas não precisa ser assim. O ano de 2020 pode ser também a oportunidade para que autoridades locais e nacionais e os diversos atores do sistema de justiça criminal assumam o compromisso de proteger a liberdade de imprensa e de garantir que jornalistas e comunicadores possam exercer seu trabalho em segurança e sem medo de represálias. O Conselho Nacional do Ministério Público pode apreciar a proposta de recomendação apresentada em 2018. O Congresso Nacional pode não aprovar novas leis que aumentem a possibilidade de criminalização de jornalistas. O judiciário pode não processar e sentenciar jornalistas por somente fazer seu trabalho. E, finalmente, candidat@s e autoridades públicas pode não fazer declarações públicas que incitem a violência contra jornalistas e que desvalorizem o trabalho da imprensa.
A perspectiva para a segurança de jornalistas e para a liberdade de imprensa no país em 2020 não é das mais animadoras. Os próprios jornalistas devem estar preparados para enfrentar esses desafios, melhorando sua formação em segurança digital, se organizando em redes de proteção para respostas rápidas em casos de ataques e ameaças, e articulando redes de advogados especialistas em liberdade de imprensa para atuar em sua defesa. Mas, se a liberdade de imprensa é um dos pilares da democracia, cabe a toda a sociedade defender um ambiente seguro, livre e saudável para jornalistas exercerem seu trabalho.
Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2020. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.