Imagem com o fundo marrom claro. Atravessando da esquerda para direita há fios que simulam ondas. À esquerda há imagem de um homem negro lendo algo em braile. Acima dele aparece parte do mapa do Brasil, em vermelho. Ao centro o título da seção: “Acessibilidade no jornalismo”. À direita aparecem os logos da Abraji, do Farol Jornalismo e a frase “Projeções para o jornalismo no Brasil em 2022”.

Acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência desafia o jornalismo em 2022

Escassez de iniciativas que privilegiam a acessibilidade escancara necessidade de treinamento e de valorização das potencialidades e habilidades de comunicadores com deficiência

Gustavo Torniero
O jornalismo no Brasil em 2022

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Em 2019, éramos mais de 17 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Os dados são da Pesquisa Nacional de Saúde, publicada em 2020 pelo IBGE. Apesar do número expressivo, a realidade ainda é inóspita quando falamos de representatividade nas redações e de acessibilidade no jornalismo.

Eu sou uma pessoa cega, assim como outros quase 7 milhões de brasileiros. Terminei minha graduação em jornalismo em 2017, mas trabalho com comunicação desde 2012. Com base em pesquisas e na minha experiência no campo da acessibilidade, posso afirmar com todas as letras que somos invisíveis pelo mercado de mídia. Em 2022 não será muito diferente.

Imagem com fundo laranja onde se escreve, com letras brancas, a seguinte frase: "Posso afirmar com todas as letras que somos invisíveis pelo mercado de mídia: em 2022 não será muito diferente".

Por outro lado, o surgimento de iniciativas que colocam o jornalismo tradicional à prova mostram que uma mudança não só é necessária, como ela já começou. Grandes veículos de comunicação, projetos independentes e veículos nativo digitais perceberam que tornar o conteúdo acessível para pessoas com deficiência é urgente do ponto de vista social e de negócio.

Para tanto, apostam em capacitações nas redações, pensam em como a tecnologia pode otimizar a acessibilidade e incentivam a mudança de mentalidade e da cultura organizacional dentro de suas equipes.

A conscientização e os processos de trabalho estão longe de mudar de forma radical, mas trata-se de uma tendência que desponta para 2022 e para os anos seguintes.

Problema crônico e estrutural

Há um desconhecimento generalizado entre repórteres, editores, empresas jornalísticas e donos de veículos sobre como cobrir assuntos relacionados à deficiência e produzir conteúdo com acessibilidade. Será que falta interesse? Uma certeza eu tenho: não faltam profissionais com deficiência capacitados para trabalhar com jornalismo. Também existem consultorias especializadas para implantar procedimentos e técnicas para produzir conteúdo acessível.

Quando falamos da cobertura da mídia sobre pessoas com deficiência física, sensorial (que engloba pessoas com deficiência visual e auditiva), mental e intelectual, normalmente temos um show de horrores: matérias que focam na superação ou no coitadismo. Raramente as matérias valorizam a fonte como uma pessoa comum ou como um especialista no tema abordado.

É reflexo do capacitismo estrutural. Existe uma crença de que somos incapazes ou inferiores — “como um jornalista cego vai cobrir política?”, por exemplo. Ou, ainda, de que o veículo precisa se utilizar de nossos corpos para ganhar cliques ou para nos fazer um favor. É uma mescla, sim, de desconhecimento e despreparo, mas também de uma visão que ficou no século passado — de que a deficiência se resume à condição médica, com foco na doença que pode ter ocasionado uma determinada deficiência.

“Embora existam casos de repórteres com deficiência em redações na América Latina, eles são uma exceção. Não há dados concretos sobre o assunto, mas as experiências pessoais de jornalistas com deficiência indicam que é esse o caso”, diz trecho de artigo publicado pela LatAm Journalism Review.

No Brasil não é diferente. Não é possível mensurar quantos colegas com deficiência estão em pequenas ou grandes redações. Meu palpite é que são poucos, o que reflete a falta de diversidade no mercado de mídia, e, por consequência, a qualidade da cobertura e de uma visão holística sobre acessibilidade e inclusão.

Jornalismo inacessível a pessoas com deficiência

São várias as barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência no acesso à informação de qualidade. Eu, por exemplo, não consigo ter acesso a imagens, gráficos e infográficos quando não há uma descrição textual do conteúdo.

Este problema inviabiliza o consumo de vários dados relevantes e que são publicados pela imprensa, de forma interativa ou em uma simples reportagem com imagem de ilustração. O mesmo acontece em telejornais, quando as informações são colocadas na tela e o repórter ou apresentador apenas indica e aponta para áreas específicas de um mapa.

E o que falar das pessoas surdas que só se comunicam por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras)? Essas não possuem acesso a nada publicado pela imprensa apenas em língua portuguesa.

Mas ainda existem aquelas pessoas com deficiência auditiva oralizadas e que podem absorver informações em português. Mesmo essas não encontram com facilidade conteúdo com legendas comuns, muito menos com legendas para surdos (que inclui transcrição e descrição de efeitos sonoros, por exemplo).

No digital a situação poderia ser melhor, não é mesmo?

Pois o cenário é trágico, embora existam soluções tecnológicas e padrões internacionais para atender ao maior número de pessoas — com e sem deficiência. Quem desenvolve sites e produz conteúdo deveria seguir as Diretrizes de Acessibilidade para Conteúdo Web (WCAG, na sigla em inglês), documento produzido pelo consórcio W3C.

De acordo com a terceira edição da pesquisa do Movimento Web Para Todos ( o qual eu sou um dos embaixadores) e da empresa Big Data Corp, menos de 1% (0,89%) das páginas web no Brasil tiveram sucesso em todos os testes de acessibilidade aplicados em 2021. Globalmente houve uma melhora tímida, já que em 2020 o percentual era de 0,74%. Mas o jornalismo não está nada bem.

Apenas 3,15% dos sites de notícias passaram nos testes de acessibilidade. No ano anterior o percentual foi de 3,03%. Não tem nem como interpretar que houve uma melhora, e sim estagnação.

Com base no ranking Alexa, o especialista em acessibilidade Henrique Berg fez uma análise da navegação nos maiores sites de notícia do Brasil. Ele descobriu o óbvio: todos são péssimos para a navegação com leitores de tela, programas que verbalizam toda a informação em tela para nós, pessoas cegas.

Acessibilidade deveria ser um valor jornalístico inegociável. Esse termo tem múltiplas facetas e interpretações. Para mim, significa permitir, ao maior número de pessoas possível, acesso à informação e ao conteúdo que é produzido em diferentes meios e formatos.

Quando o conteúdo é projetado desde o início pensando na diversidade, o jornalismo consegue alcançar pessoas cegas, com deficiência auditiva, física, intelectual, pessoas idosas, com dislexia, entre vários outros públicos.

Um sopro de esperança para o futuro

Felizmente, existem boas iniciativas no Brasil. Embora sejam pontuais, dão um sopro de esperança para a profissão e para o mercado de mídia para 2022 e os próximos anos. Elas utilizam a tecnologia e as boas práticas de conteúdo acessível para que a informação seja acessível a todas as pessoas, além de treinar o mercado sobre a cobertura desse tema.

Imagem com fundo laranja e letras brancas, onde se lê a seguinte frase: "Felizmente, existem boas iniciativas no Brasil. Embora sejam pontuais, dão um sopro de esperança para o jornalismo em 2022".

No segundo semestre de 2021, o data_labe, um laboratório de dados e narrativas sobre periferias, lançou o curso “jornalismo anticapacitista” focado em jornalismo de dados e linguagens multimídia eexclusivo para pessoas com deficiência. É um caminho: capacitar diferentes pessoas com deficiência para trabalhar em empresas de mídia com informação e comunicação.

Já o projeto pernambucano “Acessibilidade Jornalística: um problema que ninguém vê” foi um dos vencedores na edição 2021 do Google News Initiative Innovation Challenge. O objetivo é ampliar a acessibilidade em sites e aplicativos jornalísticos para pessoas cegas e com baixa visão.

O projeto inclui nove organizações jornalísticas independentes do Nordeste e a Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Com o apoio do Google, o grupo vai ampliar a pesquisa sobre a oferta e o consumo de conteúdo jornalístico por pessoas com deficiência visual. Além disso, pretende criar duas ferramentas automatizadas: uma aplicação para que sites jornalísticos possam obter um diagnóstico e recomendações para adaptar seus conteúdos e um aplicativo curador de conteúdo jornalístico de qualidade e acessível. Esse exemplo prova como a tecnologia e a inovação podem andar de mão dadas em benefício da acessibilidade nos próximos anos.

Alguns veículos, embora de forma tímida, também implementam gradativamente recursos de acessibilidade. O Nexo Jornal, publicação apenas digital, inclui descrição das imagens contidas em cada matéria.

“Ninguém pode publicar uma imagem sem descrição, é uma própria condição imposta pelo nosso publicador. Fizemos um treinamento interno para instruir o time sobre como fazer uma descrição útil das imagens para quem tenha deficiência visual e que não seja uma simples reprodução da legenda”, me disse Marina Menezes, head de operações do Nexo.

O veículo também estuda a implementação de uma ferramenta para a transformação das reportagens em áudio. O objetivo é realizar, no começo de 2022, uma formação mais ampla sobre conteúdo acessível.

O Nexo já possui programas de diversidade racial, mas ainda não há nenhum projeto específico para inclusão de pessoas com deficiência na redação. A Marina me disse que isso está no radar e que a publicação espera ter uma política de inclusão de pessoas com deficiência no futuro.

O publicador da Folha também permite adicionar descrição de imagens nas matérias. “O trabalho, porém, não ocorre de forma 100% eficiente, afinal, isso precisa ser introjetado na cultura da Redação. Acreditamos que já evoluímos muito, mas estamos a anos luz de um mundo ideal”, admite o veículo.

Camila Marques, editora de Digital e Audiência do jornal, e Melina Cardoso, produtora e audiodescritora na TV Folha, me disseram que jornal conta com reportagens com audiodescrição no canal do Youtube da TV Folha, com periodicidade semanal, e descrição de imagens no Instagram. O contraste de cores também é testado na versão digital para o conteúdo ser acessível para pessoas com baixa visão.

O veículo pretende escrever futuramente um manual de descrição de imagens para servir de norte para toda a Redação, com a ajuda de Melina Cardoso. “Também pretendemos melhorar a navegabilidade do site, ampliando cada vez mais a acessibilidade nas imagens disponibilizadas nas matérias”, informa a Folha. Atualmente, 15 jornalistas estão fazendo cursos de audiodescrição para aperfeiçoar as descrições de imagens (outros 12 já fizeram esse curso).

Mas iniciativas também existem em pequenos projetos. O veículo independente de tecnologia Manual do Usuário descreve todas as imagens publicadas tanto no site como nos perfis de redes sociais e na newsletter. Conversei com o fundador do site, Rodrigo Ghedin, para minha coluna no Yahoo. É ele quem faz a edição e publicação de todos os textos.

“Sinceramente, as descrições de imagens não tomam muito tempo, então não tem desculpa para não adotá-las”, ele me disse. É, sem dúvida, um exemplo de que acessibilidade pode e deve começar do básico.

Vamos, então, para um breve resumo:

  • O jornalismo em 2022 pode e deve procurar consultorias e treinamentos para capacitar suas equipes sobre como cobrir assuntos relacionados a pessoas com deficiência e sobre como produzir conteúdo acessível.
  • O jornalismo em 2022 tem a capacidade de gerar outros projetos estruturados de inclusão e de retenção de talentos, valorizando as potencialidades e habilidades de comunicadores com deficiência.
  • O jornalismo em 2022 deve entender acessibilidade e inclusão de pessoas com deficiência não como adicional, e sim como prioridade. Só assim vamos fazer o que realmente é a nossa missão: fornecer informação de credibilidade, de qualidade e acessível para todas as pessoas.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

Imagem mostra a palavra “Realização” seguida dos logos do Farol Jornalismo e da Abraji.

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Gustavo Torniero
O jornalismo no Brasil em 2022

jornalista, ativista pelos direitos das pessoas com deficiência e consultor em acessibilidade. Colunista do Yahoo e coordenador de jornalismo da Rádio ONCB