Imagem horizontal com fundo verde. Fios pretos atravessam a imagem da esquerda para direta, formando ondas. À esquerda aparecem três mãos espalmadas. Acima delas, o mapa do Brasil aparece em vermelho. Ao centro, o título da seção: "Jornalismo e democracia". À direita aparecem os logos de Abraji e Farol Jornalismo, e a frase "Projeções para o jornalismo brasileiro em 2022".

Em 2022, jornalismo e democracia estarão de novo sob teste. E a batalha será dura!

Contra um cenário de autoritarismo, jornalismo deverá apostar em parcerias com o saber científico, incorporar a tecnologia nos seus processos e buscar novas relações com o público

Sylvio Costa
O jornalismo no Brasil em 2022

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Depois de ter estressado ao máximo as relações com o Judiciário, durante as comemorações do Sete de Setembro, o presidente Jair Bolsonaro tem obedecido aos conselhos de aliados e vem emitindo, neste derradeiro trimestre do ano, mensagens de paz. A calmaria se seguiu à reação nervosa e francamente negativa do mercado financeiro e do mundo político aos seus rolês antidemocráticos, mas não deve durar muito.

As eleições tendem a aflorar os ímpetos mais belicosos de um movimento político, o bolsonarismo, que se alimenta da agressividade contra os oponentes, a exemplo de outros fenômenos de massa vistos no mundo e que com ele se assemelham na vocação autoritária e no perfil populista (como aqueles que gravitam em torno de Trump nos EUA e de Orbán na Hungria). Nos bastidores, Bolsonaro continua a exibir aquela fúria contra a democracia e contra o jornalismo que não se tinha visto em nenhum dos seus antecessores, desde a promulgação da Constituição de 1988. A chance de novos ralis pró-arbítrio é tão grande quanto o número e a frequência com que eles já ocorreram no atual mandato.

O presidente e sua base de apoio mantêm permanente assédio virtual contra jornalistas. Veículos e profissionais são ostensivamente perseguidos, além de excluídos de entrevistas e do acesso a informações de interesse público. Sem falar de problemas antigos, como a violência contra jornalistas e o uso da via judicial como arma de constrangimento (lawfare).

Imagem quadrada com fundo verde e letras brancas, onde aparece a frase: "Faz tempo que o jornalismo não encontra eco em uma parcela significativa da população. Isso dificilmente mudará muito em 2022."

Para agravar o quadro, Bolsonaro conserva o hábito de agredir profissionais de imprensa, principalmente mulheres. Já participou de ato de defesa do AI-5. E tem o aval do procurador-geral da República, Augusto Aras, tanto para bloquear jornalistas quanto para ameaçar ministros do Supremo. No último caso, nos atos de setembro, o chamado à ruptura constitucional teve a adesão não só das milhões de pessoas que foram às ruas, mas também de mais de 60 parlamentares federais.

Faz tempo que o jornalismo, brasileiro e internacional, expõe “os pés de barro” do “mito”. Mas seus conteúdos não encontram eco em uma parcela significativa da população, fechada com os canais de informação e as teses do presidente. Isso dificilmente mudará muito em 2022. Mesmo adversários do atual presidente acham improvável que Bolsonaro fique fora do segundo turno. E não falta, inclusive na oposição, quem admita que a reeleição — apontada hoje como duvidosa pelas pesquisas — possa vir a se viabilizar, alavancada sobretudo pelo benefício mensal de R$ 400 do Auxílio Brasil. Quem pode tirá-lo do jogo, aliás, é o ex-juiz Sergio Moro, o mesmo que teve sentenças anuladas pelo Supremo sob a acusação de agir politicamente, o que não é exatamente a postura esperada de um democrata. Para se tornar competitivo, Moro precisa herdar os votos do atual presidente, o que fatalmente exigiria absorver elementos do seu discurso autoritário.

Como o jornalismo pode agir num quadro que favorece o autoritarismo? Com a modéstia de recursos própria de uma organização independente, o Congresso em Foco tem trilhado três caminhos que, acreditamos, pode aumentar a eficácia do trabalho que fazemos. Com as ressalvas devidas, tais possibilidades são aplicáveis às demais organizações da área, sejam pequenas ou grandes. São elas:

  1. Uma parceria mais firme com a ciência e com o saber acadêmico, de modo a melhorar a qualidade dos produtos, tais como pesquisas e análises, e a enfrentar com mais êxito a tendência de tantas pessoas a se recusarem a reconhecer a veracidade de algo demonstrado pela experiência, pela história ou pela ciência (o popular “negacionismo”);
  2. Incorporação da tecnologia a todas as áreas da organização, processo que já nos permitiu pôr no ar uma robusta base de informações automatizada sobre os parlamentares, o Radar do Congresso;
  3. Busca de uma nova relação com os usuários, oferecendo maior espaço para ouvir críticas, estabelecer conexões, rever conceitos e produtos, assim como para reconhecer erros sem subterfúgios. Vamos merecer mais confiança se tivermos habilidade para explicar o que fazemos e tornar nossos procedimentos editoriais mais transparentes.

Geralmente, nós, jornalistas, damos pouca atenção ao que pensam os destinatários finais do que produzimos. Esquecemos que comunicar tem menos a ver com o que a gente fala e mais com o que a pessoa entende. A mídia brasileira tem sido perseguida de forma odiosa pelos bolsonaristas, assim como no passado recente foi tratada muitas vezes com injustificada intolerância pelos petistas. Mas isso não a absolve de seus erros, que são muitos. Um dos mais graves, a meu ver, é a tendência a desqualificar de maneira genérica a política e os políticos. Promover a “antipolítica” facilita a vida dos populistas que se pretendem colocar acima das instituições e das leis. É o “paradoxo trágico da via eleitoral para o autoritarismo”, alertam Steven Levitsky e Daniel Ziblat no livro Como as democracias morrem: “Os assassinos da democracia usam as próprias instituições da democracia — gradual, sutil e mesmo legalmente — para matá-la”.

Estudiosos como Levitsky, Ziblat, Yascha Mounk (O povo contra a democracia, Cia. das Letras) e Giuliano Da Empoli (Os engenheiros do caos, Vestígio) têm mostrado como a instrumentalização das ferramentas digitais permitiu construir fenômenos políticos ancorados na insatisfação popular com o sistema político e a situação econômica. Bolsonaro e seus apoiadores contam com um forte arsenal de comunicação para defender ideias autoritárias e negacionistas. Sua face mais óbvia é a vasta rede de ativistas entrincheirados nas mídias sociais e em aplicativos de mensagens. Mas também inclui os serviços oficiais de comunicação do governo; igrejas evangélicas; entidades de empresários, de policiais e de militares; grupos organizados de extrema direita; e centenas de veículos privados amigos.

Vários desses veículos são de criação recente, outros são recém-convertidos ao pensamento ultraconservador, mas todos são contemplados com algum tipo de favorecimento. Que pode vir sob a forma de publicidade federal, de acesso a autoridades ou do aumento do tráfego digital, transmutado em receitas publicitárias. Pois é, bolsonarismo dá audiência e dinheiro! Estar atento a esse verdadeiro comboio de desinformação, de modo a neutralizar os seus impactos nocivos, é uma das grandes tarefas que o jornalismo terá pela frente ano que vem.

Mais uma vez, devemos estar conscientes de que a batalha será dura. Esse aparato não era tão grande em 2018, quando Bolsonaro se elegeu pela primeira vez. E está mobilizado 24 horas por dia para repetir, por exemplo, que jamais houve ditadura militar no Brasil. Que a tortura se justifica em alguns casos. Que máscaras faciais são inúteis contra a covid-19. Que, em meio a um “sistema” podre, Jair Messias Bolsonaro é o solitário combatente da verdade e da justiça, empenhado em defender os valores da família cristã contra a degradação moral. E que só não se reelegerá se as urnas forem fraudadas.

Imagem quadrada com o fundo verde com letras brancas, onde aparece a frase: "Que pode fazer o jornalismo quando mentiras passam a ser encaradas como verdade? A resposta é simples: fazer melhor jornalismo."

Que pode fazer o jornalismo quando mentiras tão flagrantes passam a ser encaradas como verdade por grande contingente de pessoas? A resposta é simples: fazer melhor jornalismo. Teríamos um grande progresso, por exemplo, se alguns dos mais poderosos veículos brasileiros parassem de tratar “lulismo” e “bolsonarismo” como coisas equiparáveis. Tenha lá você a opinião que tiver sobre o PT e o seu principal líder, é forçoso reconhecer que nem o ex-presidente nem seu partido colocaram em real risco o sistema político originário da Constituição de 88. Sim, o petismo no poder cedeu à corrupção, usada sobretudo como moeda de troca política para comprar maioria no Congresso.

Nesse terreno, contudo, houve piora com Bolsonaro. Ele foi o primeiro presidente do atual ciclo constitucional a entregar o controle da pauta legislativa e de áreas estratégicas (incluindo a Casa Civil) aos aliados de ocasião do Centrão, grupo de congressistas de perfil predominantemente de centro-direita que vincula o voto no Parlamento a benesses palacianas. O acordo foi bem-sucedido quanto ao seu objetivo básico, que era afastar as chances de um impeachment facilmente justificável no plano factual e técnico. Para barrá-lo, basta ter os votos de 172 dos 513 deputados. O Centrão já se mostrou capaz de atrair mais de 300. E pode se dar ao luxo de ignorar o assunto, como tem feito o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) em relação aos 133 pedidos de impedimento esquecidos em sua gaveta.

Lira, em troca, comanda uma bilionária máquina de cooptação, o que lhe assegura duplo domínio, sobre o resultado das votações e sobre o governo. O dinheiro vem das emendas parlamentares, que são a principal forma de “convencer” os parlamentares a votarem com o Palácio do Planalto. Em 2019, elas totalizaram R$ 13,7 bilhões, segundo o sistema Siga Brasil, do Senado. Neste ano, somam R$ 33,8 bilhões. Ou seja, na média, cada um dos 594 parlamentares federais — contando com os 81 senadores — tem cerca de R$ 56,9 milhões para distribuir por ano. É mais do que a receita de 63% dos municípios brasileiros, segundo dados oficiais da Secretaria do Tesouro Nacional consolidados pela Aequus Consultoria. E quase a metade da grana das emendas (R$ 16,8 bilhões) está no chamado orçamento secreto, impedindo a identificação do nome do deputado que fez a destinação do recurso.

Seria ingênuo supor que Bolsonaro e seus correligionários mudarão de atitude em relação à democracia e ao jornalismo, em um ano eleitoral, tendo sob controle o Congresso, uma militância expressiva, o procurador-geral e todos os “botões” que um presidente pode apertar.

É verdade que o Judiciário, onde tramitam dezenas de investigações criminais contra a família Bolsonaro, continua impondo freios ao Executivo. Um deles foi a suspensão do orçamento secreto. Não será surpresa, porém, se o Centrão encontrar outra maneira de se apropriar das verbas federais e continuar dando as cartas. Também cassou um parlamentar (ex-líder da bancada bolsonarista na Câmara) por ter afirmado em 2018 que as urnas eletrônicas estavam sendo adulteradas para impedir a eleição de Bolsonaro. Isso indica aumento dos riscos para a difusão de informações falsas em busca de dividendos políticos.

Tendem a crescer também as pressões para que as grandes plataformas digitais removam conteúdos enganosos ou que promovam a cultura do ódio. Mas as informações e as narrativas falsas se acumulam de tal modo em períodos eleitorais que é difícil acreditar que a Justiça será capaz de coibi-las. Ou que as plataformas, que faturam grosso com a mentirada colocada em circulação em seus canais, abrirão mão dos seus lucros em favor de eleições limpas.

Tantos são os desafios que não é de surpreender que muitos demonstrem desânimo com o país, que teve até as cores de sua bandeira sequestradas pela extrema direita. 2022 nos trará uma grande oportunidade para tirar toda essa história a limpo, e o jornalismo terá papel-chave nisso.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

Imagem mostra a palavra “Realização” seguida dos logos do Farol Jornalismo e da Abraji.

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Sylvio Costa
O jornalismo no Brasil em 2022

Fundador do Congresso em Foco, é jornalista e mestre em Comunicações pela Universidade de Westminster (Londres).