Imagem com fundo verde escuro. Fios pretos atravessam a imagem da esquerda para direita, formando uma ondulação. À esquerda aparece a imagem de uma periferia e também uma orelha humana. Acima desses elementos aparece o mapa do Brasil, em vermelho. Ao centro lê-se o título da seção: “Colaboração, escuta e distribuição”. À direita aparecem os logos da Abraji e do Farol Jornalismo, e também a frase: “Projeções para o jornalismo brasileiro em 2022”.

Em 2022, jornalismo posicionado oferecerá novos paradigmas de colaboração, escuta e distribuição

Norte e Nordeste do Brasil mostram como o jornalismo hiperlocal estará mais atento às suas próprias comunidades a partir de um jornalismo mais engajando, mas não menos rigoroso

Laércio Portela
O jornalismo no Brasil em 2022

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Em 2022, o jornalismo deve avançar sob novos parâmetros: a “redação” não está mais distanciada, a quilômetros, isolada do lugar dos acontecimentos, e nem mesmo a produção da notícia é um campo exclusivo dos jornalistas. Essa perspectiva impacta diretamente no fazer jornalístico, trocando a senha da competição pela da colaboração, o isolamento pela escuta ativa e, necessariamente, estruturando novas maneiras de distribuir conteúdo e interagir com aqueles de quem se quer a atenção.

Daqui, de Pernambuco, onde escrevo esse texto, jovens pretos periféricos, estudantes e recém-formados na área vão pavimentando um caminho próprio para o jornalismo hiperlocal e engajado. Jovens como Daniel Paixão, do Fruto de Favela, da comunidade do Jacaré, Maranguape I, Paulista, na Região Metropolitana do Recife, que produziu videorreportagem e Brega Protesto contra a apropriação indevida da Dança do Passinho. Nascida na periferia e criminalizada pela polícia, a batida do brega funk tem sido utilizada pelos políticos em jingles de campanha que circulam em carros de som nos bairros periféricos.

Imagem com fundo verde escuro e letras brancas, onde se lê: "Em 2022, a "redação" não está mais distanciada, isolada do lugar os acontecimentos, e nem mesmo a produção da notícia é um campo exclusivo dos jornalistas."

Ou Martihene Keila e Gilberto Luiz, do Sargento Perifa, da comunidade do Córrego do Sargento, cercada pelos morros da Zona Norte da capital pernambucana, que realizaram um censo dos moradores, indo de casa em casa, para entender quem são, do que precisam e como vivem aqueles para quem o Coletivo se propõe a fazer uma comunicação de combate à desigualdade social, ao racismo e à violência contra a mulher.

A 550 quilômetros dali, no Quilombo de Conceição das Crioulas, distrito de Salgueiro, no Sertão Central, mulheres do Crioulas Vídeo ressignificam sua própria história. No curta “PE-460: uma história de luta ancestral” abordam a inauguração da estrada que dá acesso ao território sem falar de custo da obra, sem mostrar imagens da construção ou entrevistas com autoridades públicas, mas a partir da memória das pessoas mais velhas do local, reportando décadas de resistência contra o isolamento e o racismo.

Perceber as possibilidades alternativas do jornalismo marcou Martihene, do Sargento Perifa. “Na faculdade, entendi muita coisa depois que aprendi sobre enquadramento e percebi o poder que o jornalista tem em suas mãos, de fazer ver algumas coisas e invisibilizar outras”. O jornalismo e a vida real são indissociáveis. “Acredito na informação para a transformação, por isso trouxe para o jornalismo que faço a minha vida de resistência enquanto mulher negra. Não dava para separar uma coisa da outra”.

Em 2022, ano de eleições estaduais e presidencial, será ainda mais difícil separar “uma coisa da outra”, o quanto a política afeta nossas vidas, por exemplo, das histórias que precisamos contar. Esse sentido de proximidade com a pauta, compromisso de escuta e entrega de um conteúdo capaz de relacionar o cotidiano das pessoas aos processos e projetos políticos em disputa pode e deve fazer a diferença da cobertura jornalística no próximo ano.

Inseridos em suas comunidades, esses coletivos não atuam apenas na área da comunicação e do jornalismo, se organizam também em torno de projetos de educação, cultura, tecnologia, saúde e segurança alimentar. Na pandemia, tiveram um papel-chave na produção e distribuição de conteúdos para se contrapor à onda de desinformação. Primeiro, contra a ideia da “gripezinha”, depois a cloroquina e, por fim, na defesa e estímulo à vacinação.

Considerando que boa parte do fluxo de fake news transita pelos grupos de WhatAapp, os coletivos produziram pequenos áudiocasts, vídeos e memes explicativos para o aplicativo de mensagens. Nos territórios, veicularam os áudio nas rádios-postes, afixaram lambes e grafitaram nas áreas de maior fluxo de pessoas. Também fizeram circular informações pelas áudio-bikes.

Os laços entre os coletivos e suas comunidades criados em 2021 e o acúmulo de experiências são pontos de largada importantes para o enfrentamento de uma nova onda de negacionismo no próximo ano, levando em conta as incertezas em torno do fim da pandemia em 2022.

As estratégias de produção e, especialmente, de distribuição de conteúdos por esses coletivos indicam novos caminhos para a construção de relacionamento com as audiências para os quais a mídia independente mais estruturada ou as grandes redações regionais e até nacionais precisam estar atentas. Disputar atenção vai exigir cada vez mais aproximação com o público e seu território.

No Interior do Nordeste e Norte de Minas, o alerta sobre a circulação de notícias falsas minimizando os impactos da pandemia e depois desacreditando as vacinas contra a covid-19 chegou pela Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) formada por quase 3 mil entidades espalhadas em mais de mil municípios. Foi preciso mobilizar a rede de comunicadores populares. Uma das estratégias mais eficazes partiu da serra da Borborema, na Paraíba, com a produção e distribuição de uma série de “zap novelas”, pequenos áudios com diálogos entre personagens que desmentiam os conteúdos falsos.

“As pessoas não costumam ter crédito de 4G para navegar em sites de notícias, não costumam checar a informação e acreditam naquilo que foi enviado por parentes”, explica Fernanda Cruz, coordenadora de comunicação da entidade. Daí a importância também que os disseminadores das informações corretas sejam do laço de confiança das pessoas vítimas da desinformação e compartilhem de sua linguagem, exatamente o que propõe as redes de coletivos e mídia independente que vão ganhando força pelo país.

Uma das experiências mais vigorosas da construção de narrativas “nós por nós mesmos” vem dos povos indígenas. Em agosto e setembro de 2021, 6 mil indígenas de 170 povos e de 20 estados do Brasil se reuniram no Acampamento Terra Livre, em Brasília, para acompanhar o julgamento do Marco Temporal pelo Supremo Tribunal Federal. Lá estavam dezenas de comunicadores indígenas. Em reuniões conjuntas de pauta, dividiam colaborativamente a cobertura da enorme quantidade de eventos, debates, manifestações culturais e protestos de cada dia. O mesmo aconteceu na Segunda Marcha das Mulheres Indígenas e no Primeiro Fórum Nacional de Educação Superior Indígena e Quilombola.

Entre os influencers indígenas que marcaram presença em Brasília estava Samela Sateré Mawé, de Manaus. Samela integrou-se à comunicação indígena no período da pandemia e da crise na capital do Amazonas. Hoje é uma das apresentadoras do canal Reload, plataforma colaborativa mantida por dez organizações da mídia independente com o objetivo de descomplicar a linguagem das notícias para o público jovem.

“As pessoas dizem: ‘nossa!, uma indígena nas redes sociais, tendo um celular melhor do que o meu’. Não querem acreditar mesmo quando estamos na frente delas. Essa é a nossa resistência narrativa, minha e de outros coletivos de etno mídia e influenciadores indígenas, falando de dentro de nossos territórios, das nossas causas e mostrando também nossa cultura, identidade e diversidade para diminuir os preconceitos e sendo protagonistas dessas informações”, conta Samela.

Um dos coletivos mais atuantes na etno mídia é o Mídia Índia. Criado por Erisvan Bone e outros jovens indígenas do Povo Guajajara do Maranhão. Erisvan é formado em jornalismo pela UFMA. Uma rede de comunicação descentralizada e colaborativa que conta com mais de 100 colaboradores espalhados por vários estados do país com páginas no Facebook, Twitter, Instagram e Youtube, produções de documentários e podcasts. ”(Essa rede) possibilita a troca de tecnologias, experiências e, principalmente, a representatividade indígena nos meios de comunicação com a difusão de suas lutas e como mais uma ferramenta de exigência de direitos”, relata Erisvan.

A checagem das informações recebidas é um ponto importante do trabalho da Mídia Índia. “Recebemos muitas informações em nossas redes dos nossos seguidores; são denúncias, notícias, fotos de algum acontecimento em determinado território. Daí buscamos a veracidade da notícia antes de ser divulgada”. A Mídia Índia atua em parceria com a comunicação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Mídia Ninja, Copiô Parente e Visibilidade Indígena.

Essa é uma outra característica da comunicação engajada, a parceria colaborativa com entidades da sociedade civil que representam grupos específicos, pesquisam e organizam informações sobre esses grupos ou atuam na proteção dos direitos dessas populações, comunidades ou territórios e que detêm um acúmulo de anos de trabalho na área.

As experiências do Fruto de Favela, Sargento Perifa, Crioulas Vídeo, dos influencers indígenas e da Mídia Índia colocam no centro da produção de significados e narrativas pessoas que o jornalismo tradicional durante muito tempo — e ainda agora — enxergou como fontes ou personagens e não realizadores. Essa é uma virada e tanto. Em 2022, as narrativas “nós por nós” vão se aprofundar, tensionando as abordagens oficialistas e protocolares.

Em outra experiência, nove veículos da mídia independente do Nordeste e a Universidade Católica de Pernambuco vão finalizar em 2022 uma solução integrada para a oferta de conteúdo jornalístico de qualidade acessível a pessoas cegas e de baixa visão. A proposta da Marco Zero Conteúdo, do Recife, parceira da Unicap e dos outros oito veículos, foi uma das vencedoras do desafio internacional realizado em 2021 pelo Google News Initiative, que promove soluções inovadoras para o jornalismo na América Latina.

Alguns aspectos do projeto nos ajudam a entender o caminho que o jornalismo deve trilhar no próximo ano. Primeiro, a preocupação de ampliar sua audiência para grupos historicamente ignorados. Depois, o de integrar esses grupos ao processo de elaboração propriamente das estratégias: o projeto conta com consultores cegos e de baixa visão e parte de uma pesquisa aprofundada com o público-alvo para entender como e por quais meios consome notícias.

O aspecto mais inovador, no entanto, está na própria formação da rede de veículos fora do eixo Rio-São Paulo, que ainda é beneficiado pela maior parte dos recursos destinados à mídia independente no Brasil.

Se abordamos aspectos da escuta e da distribuição, a palavra-chave aqui é colaboração.

Colaboração, engajamento e rigor na apuração

Além da MZ Conteúdo (PE) e da Unicap, participam do projeto Mídia Caeté (AL), Olhos Jornalismo (AL), Retruco (PE), Agência Diadorim (PE), Saiba Mais (RN), Agência Eco Nordeste (CE), Revista Afirmativa (BA) e a newsletter Cajueira. A diversidade dessas mídias mostra a potência do jornalismo nativo digital que vai se organizando no Nordeste.

Em comum a todos esses grupos, o pouco tempo de vida, a defesa do trabalho colaborativo, a afirmação do lugar a partir do qual produzem seus conteúdos e o engajamento explícito a uma ou mais causas. Nenhum deles advoga pelos conceitos da imparcialidade e da neutralidade, (apontados por Gaye Tuchman ainda nos anos 1970 como um ritual estratégico para defender certas posições), mas todos reafirmam o compromisso com o rigor na apuração dos fatos.

Imagem com fundo verde escuro e letras brancas, onde se lê: "Em 2022, vai ter muito mais gente fazendo um jornalismo engajado que joga limpo com seu público, expondo o que acredita e contando como apura as informações que produz."

Cabe aqui mencionar a jornalista, professora e pesquisadora do Núcleo de Design e Comunicação da UFPE Fabiana Moraes, que advoga por um jornalismo de subjetividade como prática de construção de narrativas que questionem supostos valores universais e reducionistas. “Toda prática jornalística é posicionada e ideológica. Abrir essa verdade para leitoras e leitores é torná-los mais partícipes do processo de construção jornalística, e não há problema nisso”.

Em 2022, vai ter muito mais gente fazendo um jornalismo engajado que joga limpo com seu público, expondo no que acredita e contando como apura os fatos e informações que produz.

“Partimos do chão alagoano”, afirma a Mídia Caeté, trocando a perspectiva da “terra dos marechais” para a “terra dos Caetés, dos quilombolas”. Da mesma Alagoas vem Olhos Jornalismo, um coletivo de mídia independente que busca “amplificar as vidas e os fatos dos que são colocados à margem”. A Revista Afirmativa, da Bahia, a mídia mais antiga entre as oito, criada em 2013, se apresenta como “veículo multimídia de mídia negra” e marca posição: “somos nós, falando de nós, para todo mundo”.

A Diadorim, dividida entre Pernambuco e São Paulo, nasce engajada na promoção dos direitos LGBTQI+ e “para contar as histórias da nossa comunidade, fiscalizar o poder público, denunciar violências e promover um debate plural e crítico”. Idealizada por jovens jornalistas, cineastas e designers, a Agência Retruco, também de Pernambuco, “busca novas maneiras de contar histórias através da combinação de formatos audiovisuais e textuais com um olhar crítico, sensível e criativo”.

Em Natal, Rio Grande do Norte, consolida-se a Agência Saiba Mais: “Nossa principal missão é dar visibilidade às narrativas silenciadas da sociedade. As reportagens, matérias e opiniões publicadas pela agência estão alinhadas a quatro eixos principais: cidadania, transparência, democracia e cultura”. A Eco Nordeste, do Ceará, tem o foco “nas diversas dimensões do Desenvolvimento Sustentável, social, econômica, ambiental, cultural, no Nordeste do Brasil, com respeito à diversidade, promoção da inclusão, destaque ao protagonismo juvenil e feminino, à cultura indígena, quilombola, cigana, dos povos sertanejos, serranos e litorâneos”.

A caçula entre as mídias parceiras do Nordeste é a Cajueira, uma newsletter cuja razão de ser está entrelaçada ao crescimento das mídias nativas digitais na região. A Cajueira nasceu no finalzinho de 2020 com um manifesto em que diz a que veio: reinventar o Nordeste para além da ideia do “Brasil profundo” — carente, atrasado, inculto — ou do “lugar de férias” — exótico, festivo, preguiçoso. A curadoria que promove há pouco mais de um ano, divulgando as diversas iniciativas de jornalismo e comunicação, tem cumprido muito bem esse papel.

Mais alteridade, menos distância

A construção de novas redes é também o que inspira o Festival Fala de Comunicação, Cultura e Jornalismo de Causas, cuja primeira edição presencial deve ser realizada em 2022 na cidade de Salvador. O evento, que já aconteceu duas vezes de forma online durante a pandemia, surgiu como arena de debate das novas formas de mediação do discurso jornalístico que já não se sustentam nos preceitos do distanciamento e da neutralidade. Ao contrário, propõem uma imersão nos territórios e o diálogo com as diversas maneiras de ver e dizer o mundo a partir dessas vivências.

Menciono o Festival porque ele lança esse desafio de levantar pontes entre os coletivos de comunicação popular e os novos e mais diversos grupos de mídia independente que vão ganhando corpo Brasil afora. Precisamos estar atentos a essa troca de experiências e reconhecimentos e seus impactos no fazer jornalístico.

Na prática, ela mistura o jornalismo com arte, cultura e engajamento. Melhor dizer culturas, porque múltiplas: de rua, digitais, urbanas, rurais, periféricas, ancestrais. Por princípio, esse misturar-se demanda enxergar a si como agente, sujeito que interage, envolve-se com o meio, mais, muito mais do que um observador distante. Também demanda alteridade, capacidade de, entendendo o seu lugar, permitir-se olhar pelo olhar do outro.

2022 já começou. Se há incertezas sobre o que está por vir, há também evidências do que não vai faltar. Falo de ataques à imprensa, discurso de ódio contra povos tradicionais e grupos minorizados, e um mundo de desinformação a circular pelas redes sociais e aplicativos de mensagens.

Não partimos do zero. Há acúmulo de experiências em toda parte para esse enfrentamento. Ele passa necessariamente por um jornalismo verdadeiramente comprometido com os princípios da democracia, em defesa dos direitos humanos, contra o racismo, a homofobia, a criminalização da política e dos movimentos sociais. Passa também por um jornalismo que se mistura e se deixa influenciar mais pela arte, a cultura e a linguagem de um público cada vez mais coautor da informação que compartilha.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

Imagem mostra a palavra “Realização” seguida dos logos do Farol Jornalismo e da Abraji.

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Laércio Portela
O jornalismo no Brasil em 2022

Jornalista, editor e cofundador do portal de jornalismo independente Marco Zero Conteúdo