Imagem horizontal com fundo marrom claro. Fios pretos atravessam a imagem formando uma ondulação. À direita aparecem a imagem de uma mulher negra segurando um celular. Ao fundo dela, balões simulam uma conversa em um aplicativo. Acima aparece o mapa do Brasil. Ao centro, o título da seção: "Psicologia e desinformação". À direita aparecem os logos de Abraji e Farol Jornalismo, e a frase: "Projeções para o jornalismo no Brasil em 2022".

Em 2022, jornalismo precisará enfrentar a desinformação como sintoma de um "sistema de crenças"

A desinformação capturou os mecanismos de competição pela atenção; contra este fluxo nocivo, o jornalismo pode ajudar a construir uma sociedade melhor ao apostar em redes de afetos

luís felipe d.s
O jornalismo no Brasil em 2022

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A psicanalista Maria Homem de Mello considera que o momento histórico atual é de libertação das amarras do cristianismo de “amor ao próximo”, que, na opinião dela, é o tipo de amor mais difícil de praticar. Trazendo para o cenário do Brasil atual, ela observa que a recessão econômica dos anos de 2015 e 2016 é o motor do atual momento de crises políticas permanentes. Ela fez com que a classe média se sentisse ameaçada no seu estilo de vida. “O ódio vem como uma ferramenta de defesa contra a minha perda de lugar, uma necessidade imaginária de me defender. ‘Eu não vou voltar para isso. E se eu tô voltando, a culpa é sua, que me empurrou, que tomou o meu lugar’”, afirma ela.

Não é por acaso que vem daí a explosão da desinformação, a ponto de se tornar política de governo. Se une à recessão, combustível dessa necessidade imaginária de se defender, uma disseminação de pequenos dispositivos que lançam dopamina a cada rolagem nos feeds das redes sociais. Não há nenhuma evidência de que estaremos distantes disso em 2022: as crises econômicas e sociais persistem, nos exigindo momentos de prazer e válvulas de escape que serão entregues por dispositivos ainda mais rápidos e internet ainda mais veloz, especialmente com a chegada do 5G.

As rotinas, em geral, são chatas: é necessário tomar banho, comer, trabalhar, todos os dias. É necessário ter válvulas de escape e de prazer em meio a isso. O smartphone trouxe para a humanidade a ideia de que o momento de distração é muito mais simples do que se imaginava: não é mais necessário ir ao cinema, ao parque, ao jogo de futebol. Tudo está ao alcance de mão. E o momento de distração virou a rotina de distração: agora, trabalhamos para buscar atenção plena em meio ao caos informacional.

A desinformação viceja no terreno fértil de distração constante e batalha permanente pela atenção. Pense nas notícias que você leu quando acessou as redes sociais hoje: o que lhe chamou mais atenção, a manchete do jornal local (normalmente um assunto relevante, mas padronizado) ou uma declaração bombástica do presidente? O que seus amigos estão discutindo, o assunto polêmico da vez ou a estatística da inflação, que afeta diretamente as nossas vidas?

As estruturas profissionais de disseminação de desinformação só existem porque há demanda. E a demanda é de um fluxo constante de alegações e de afirmações que nos deixa permanentemente alertas, que captura o nosso foco diante de tudo que acontece pelo mundo, que nos deixa com medo de perder algo importante que esteja ocorrendo. Queremos nos sentir parte da construção de algo melhor para o país, queremos nos sentir felizes, queremos destruir o que nos ameaça.

Nessa seara, o jornalismo profissional já descobriu a importância de combater a desinformação. Agora, o passo seguinte é fazer as perguntas certas, para evitar que os próximos anos sejam ainda mais difíceis.

O sistema de crenças

O que faz uma pessoa continuar a compartilhar desinformação sabendo que a alegação não é verdadeira?

No Aos Fatos, recebemos constantemente e-mails de pessoas que têm as suas postagens marcadas como falsas. São poucas as que efetivamente trazem uma argumentação para enfrentar a checagem. Normalmente, as pessoas se ofendem por terem seus posts marcados; se ofendem pela existência de agências de checagem que confrontam os seus compartilhamentos com dados; nos xingam, dizendo que estamos a serviço de algum político.

Essa lógica se coaduna com a introdução do relatório da Comissão sobre a Desordem da Informação do Aspen Institute, divulgado em novembro de 2021. Veja o que afirma o texto assinado por Katie Couric, Chris Krebs e Rashad Robinson:

“A grande mentira de todas, sobre a qual essa crise prospera e na qual os beneficiários da desinformação se alimentam, é que a crise em si é incontornável. Um dos corolários dessa mitologia é que, para combater a má informação, o que precisamos é de mais (e melhor distribuída) boa informação. Na realidade, apenas elevar o conteúdo confiável não é o suficiente para mudar o curso corrente. Existe um sistema de incentivos que manufatura a desordem informacional, e não vamos encarar o problema se não enfrentarmos esse sistema, nem vamos melhorar se falhamos em nos referir aos problemas sociais maiores que continuam a nos dividir”

Quando se combate a desinformação, não se enfrenta apenas o ato em si de desinformar, a alegação falsa ou a falta de contexto da postagem na rede social. O que se enfrenta é um sistema de crenças, de uma pessoa ou de um grupo — e, se olharmos com atenção, é sobre isso que sociedades são fundadas em vários lugares do mundo, inclusive no Brasil.

A tendência é que isso se agrave em um período de disputa eleitoral presidencial, como se observa para 2022. Isso porque a disputa se dará na arena política, com incentivos públicos e privados para domínio da máquina do Estado. Ou seja: o sistema que “manufatura a desordem informacional”, citado por Couric, Krebs e Robinson, vai estar nas mãos de agentes públicos com e sem mandato, dispostos a ativar gatilhos nos sistemas de crenças de seus eleitores para obter votos.

Em uma análise realizada em janeiro de 2021 pela Harvard Kennedy School Misinformation Review, chamada “The presence of unexpected biases in online fact-checking” (A presença de vieses inesperados na checagem de fatos online), alguns caminhos demonstram as dificuldades enfrentadas. A disposição de entender sistemas de verificação de fatos ajuda a evitar posições extremas, segundo os resultados apresentados. Entretanto, a ausência de evidências de uma alegação provoca respostas mais negativas do que as “evidências mistas”. Ou seja: dizer que “não encontrou” a veracidade de uma informação é muito pior do que observar que “é possível que seja falso”.

A construção da empatia

As redes sociais e seus algoritmos, tidas pelos donos das grandes empresas de comunicação nacionais como os principais vilões da desinformação no país, são apenas uma consequência disso. Sistematicamente, quando somos confrontados pelos usuários das redes com as suas publicações marcadas como falsas, eles afirmam que não mais serão enganados — pela grande mídia, pelos donos das grandes corporações, pelas indústrias farmacêuticas, por qualquer poder que pareça ser maior que o deles.

No documentário Q: Into the Storm (HBO), que tem como base o fenômeno QAnon (teoria conspiratória acerca de uma cabala secreta que comanda o mundo e que estende seus tentáculos pelas instituições mundiais, criando desde redes de tráfico sexual infantil até chips em vacinas), fica evidente que há uma rede de conexão entre as pessoas que fazem parte dos ecossistemas de desinformação. Quem faz parte dos fóruns no qual Q desvenda os supostos segredos da humanidade faz parte, também, de uma comunidade de membros, que desenvolvem empatia consigo mesmos, redes de afetos e de validação de reputação.

Isso, numa sociedade individualista, é ouro. São redes de relações fundamentadas em um sistema de crenças. Você não precisa, como diria Maria Homem, “amar o próximo como a si mesmo”. Você pode, sim, odiar o próximo (aquele que se difere das suas crenças) e amar com a mesma intensidade (aquele que se coaduna com as suas crenças). Nada diferente do que vivemos em uma sociedade, porém, transportado para um fórum do 8chan.

Imagem retangular com o fundo marrom claro e letras brancas, onde se lê: "Em 2022, a tendência é que se acelerem as retomadas de atividades presenciais, o que oferece alguns caminhos para uma reconstrução de laços afetivos e sociais."

Desafios para o jornalismo

Como construir a empatia em um cenário de recessão, de pandemia, de divisão do mundo? O espírito do tempo é o oposto disso: estamos enclausurados nas nossas casas, com aparelhos que geram dopamina sem parar, buscando culpados para tudo. Em 2022, entretanto, a tendência é que se acelerem as retomadas de atividades presenciais, o que oferece alguns caminhos para uma reconstrução de laços afetivos e sociais.

O relatório Aspen dá alguns caminhos: o Front Porch Forum, por exemplo, que reúne vizinhos para compartilhar experiências relacionadas à comunidade em Vermont. O Local Voices Network, que incentiva encontros presenciais e usa inteligência artificial para ajudar a compartilhar e amplificar projetos com o objetivo de ouvir os excluídos. Essas alternativas vão além de combater o dano imediato, que é a desinformação já disseminada: constroem redes de afetos e de empatia entre pessoas para melhorar as suas relações com o mundo e, por consequência, com a tecnologia e com as notícias.

Sabemos que o cenário no Brasil, entretanto, é diferente. Durante a pandemia, por exemplo, a desinformação foi o centro de uma política de estado que comprou e distribuiu medicamentos sem eficácia contra a covid-19, levando a milhares de vítimas do negacionismo. As consequências disso serão dramáticas para o país ao longo dos próximos anos. A economia evolui a passos lentos, o custo de vida aumenta, a educação está estagnada. A fome atinge cerca de 20 milhões de pessoas, população maior que a do Chile.

Nesse cenário, a tendência é que haja um recrudescimento das relações sociais em amplo espectro, o que nos leva a pensar, no âmbito do jornalismo, nos problemas comuns que unem as sociedades. Desemprego, falta de alimentação, aumento do custo de vida, são alguns desses problemas. E cabe ao jornalismo oferecer ao cidadão que consome notícias um bojo de alternativas para resolução dessas questões.

Convencionou-se chamar a isso de “jornalismo de soluções”, conceito adotado para pensar impacto para além das pautas. O termo, entretanto, não pode ser esvaziado de significado: em um contexto de tensão permanente de classes, refletido na piora de índices de qualidade de vida, é importante perceber o que é parte do problema. O clique fácil e o anúncio enganoso que aumentam o faturamento enquanto escondem a informação por trás do paywall ajudam muito pouco.

O Brasil ainda vai ter que sofrer anos com a escalada de tensões, com o ódio, com as culpas — e a eleição presidencial de 2022 tende a ser uma grande catarse desses sentimentos. Para além da rejeição do atual presidente da República, a arena eleitoral mexerá com o sentimento de mais de 600 mil mortes pela covid-19 e um sentimento de que a perspectiva de futuro tende a ser ameaçadora.

Imagem com fundo laranja com letras brancas em que se lê: "O Brasil ainda vai sofrer com a escalada de tensões, com o ódio, com as culpas — e a eleição presidencial de 2022 tende a ser uma grande catarse desses sentimentos."

Nesse contexto, referindo-se novamente ao relatório Aspen, as redes de afetos e de trocas entre pessoas acabam sendo um caminho para levar o jornalismo além do mero mercado da atenção, e ajudá-lo a ser um degrau no rumo de uma sociedade melhor. A pandemia da covid-19 e a overdose de negacionismo que se seguiu colocaram, na mídia brasileira, a tarefa de orientar a sociedade diante de um cenário de muita informação, muito alarmismo e muitas crenças diversas.

Assim como nos ensina o trabalho da Harvard Misinformation Review, temos que mostrar que não adianta dizer que não conseguimos chegar nas evidências corretas — precisamos ajudar a sociedade, munida de todas as informações possíveis, a descobrir o seu caminho.

Este texto faz parte da série O Jornalismo no Brasil em 2022. A opinião dos autores não necessariamente representa a opinião da Abraji ou do Farol Jornalismo.

Imagem mostra a palavra “Realização” seguida dos logos do Farol Jornalismo e da Abraji.

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