A extinção do “nós” na música cristã atual

Como “intimidade com Deus” vem sendo confundida com egocentrismo — e porque os hinos são importantes para reverter isso

Bruno A.
o mundo precisa saber
4 min readAug 4, 2022

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Photo by Jared Subia on Unsplash

Um dos grandes trunfos da música gospel atual é te dar a impressão que ela foi feita especialmente para você. Ela parece falar sobre as suas dores, as suas agruras, sobre as injustiças e provações que você sofre. Ao mesmo tempo, ela fala sobre como Deus te ama e vem salvar você. Inclusive, “eu” e “você” (sempre na primeira pessoa) são pronomes recorrentes nessas músicas.

É como se Deus tivesse falando exclusivamente com você através daqueles versos.

Ele resolveu pegar o nada
Era tudo que eu sabia ser
O terreno que ninguém comprava
Ele escolheu para viver
Com Seu sangue Ele pagou
Um palácio no terreno edificou
Sou Sua casinha favorita

(Casinha Favorita, Isadora Pompeu)

E isso não é errado, num primeiro momento. Podemos citar excelentes letras de hoje e do passado, escritas no singular da primeira ou segunda pessoa. O problema existe quando isso passa a ser industrializado — como tudo na cultura pop atual — e, de repente, parece que toda a musica cristã está sendo direcionada exclusivamente para mim.

Se, num primeiro momento, essas canções parecem me pegar no colo e me levar para o Pai, num segundo momento, tenho a impressão errada que sou exclusivo — seja no meu valor para Deus, seja no ardor das minhas provas. Tenho a impressão de que sou, realmente, raridade.

O pecado não consegue esconder
A marca de Jesus que existe em você
O que você fez ou deixou de fazer
Não mudou o início Deus escolheu você

Sua raridade não está naquilo que você possui
Ou que sabe fazer
Isso é mistério de Deus com você

(Raridade, Anderson Freire)

E é aqui que o problema começa. No ardor da nossa provação, temos realmente a impressão de que somos os únicos perseguidos, desempregados, enfermos, desprezados, depressivos… Mas, olhe para trás, olhe para os outros bancos da igreja e você verá dezenas, centenas, até milhares de pessoas que estão passando exatamente pelas mesmas situações que você.

Logo, não se trata da aflição do “eu”, e sim a aflição do “nós”.

E é esse cuidado que os hinos congregacionais têm. Eles são compostos, na maior parte das vezes, no plural da primeira pessoa. Ou seja, não é a “minha dor”, e sim a “nossa dor”. Não é o “meu clamor”, e sim o “nosso clamor”.

A Ti devemos nossa gratidão
Grandioso és Tu, Senhor Jesus
Tu nos tiraste da escravidão
Grandioso és Tu, Senhor Jesus

(Grandioso És Tu, Hinário 5 CCB)

Na verdade, hinos no singular também existem (assim como existe música cristã comercial no plural ). Mas parece que o “nós”, tão presente nos nossos hinários, está sendo substituído pelo “eu” na música gospel.

O “eu” até pode trazer uma sensação de intimidade, de proximidade com Deus (e até por isso que é bom existir músicas assim), mas o “nós” trás inclusão, coletividade. Quando cantamos que “Jesus morreu por mim”, eu me sinto abraçado, mas quando canto que “Jesus morreu por nós”, eu distribuo esse abraço a todos aqueles que precisam. E cantar sobre o “nós” tira o foco do meu ego, da minha dor, do meu individualismo — tão incentivado pelo mundo ao meu redor — e me da a sensação do coletivo, da mesa dividida, da comunhão. Afinal, uma igreja não é sobre eu e Ele, e sim sobre nós e Ele.

Quão espinhosa a coroa
Que Jesus por nós suportou
Oh! Quão profundas as chagas
Que nos provam o quanto Ele amou

Eis nessas chagas pureza
Para o maior pecador
Pois, que mais alvo que a neve
O Teu sangue nos torna, Senhor

(Mais Alvo Que a Neve, Harpa Cristã)

Já que estamos falando disso, a música secular está enveredando pelo mesmo precipício. Se na minha época os jovens tinham, na ponta da língua, canções como Faroeste Caboclo, que falam sobre um desastre social que atinge, de alguma forma, a todos nós; hoje, parece que a música que se ouve na rádio (ou no Spotify) é totalmente centrada no “eu”, na minha vidinha e nos meus relacionamentos complicados. É o mundo inteiro girando em torno do meu umbigo (ou do meu chifre).

A música cristã não deveria estar indo pelo mesmo caminho.

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