A nave, a casinha e a prisão

Como o cenário atual traz música de qualidade duvidosa para dentro da igreja e aprisiona a criatividade do artista cristão

Bruno A.
o mundo precisa saber
4 min readAug 15, 2022

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Quando falam de “naves imperiais”, eu lembro de Star Wars — Photo by Daniel K Cheung on Unsplash

No último texto, quando estava procurando um trecho de música cristã do mainstream atual para exemplificar a “extinção do nós”, acabei caindo, sem saber, na música evangélica mais polemica do momento.

“Casinha Favorita”, da Isadora Pompeo, foi lançada faz menos de um mês (considerando a data em que esse texto foi escrito), mas já é assunto de centenas de vídeos no Youtube, entre defensores e criticos.

Em um desses vídeos, o Lucas Cavalcanti, do canal Veja por Outro Angulo, traz uma análise onde ele aponta essa tendência do exagero introspectivo que percebemos na música workship. E ele faz uma comparação com um dos clássicos do rock cristão do século passado, “Naves Imperiais”, do Oficina G3.

De fato, são músicas diferentes, e que exemplificam o que disse no outro texto. Naves Imperiais é uma música no plural, que não olha para o “eu”, mas para o “nós”:

“Somos como naves imperiais
A serviço do nosso rei
Vasos de guerra, onde só há ida
E não há tempo para olhar
Voltar para trás” — Naves Imperiais, Oficina G3

E ainda vale dizer que “Naves” é um manifesto. Realmente é uma música coletiva. Por isso ela tem esse tom forte, marcante. Casinha Favorita, pelo contrário, é introspectiva. Ela não fala de “nós”, ela fala de “mim”. Diferente da música do Oficina, ela não tem um própósito público, mas conta um relato pessoal. Ela conta como Jesus, metafóricamente, limpou o terreno baldio do “eu lírico” e ali construiu a sua “casinha favorita”.

Num dado momento, a Isadora troca o “eu” pelo “você”, na tentativa de incluir o ouvinte no discurso da música. Ainda assim, a canção mantem o seu cárater introspectivo. Pois, embora na segunda pessoa, ainda estamos no singular. Ainda estamos no pessoal. Por isso a tendência egocêntrica da canção. Ela nos chama a olhar para dentro de nós, e não para fora.

Mas será, então, que o artista cristão não pode escrever introspectivamente? Será que ele estará sempre refém do coletivo, do “nós lírico”? Será que ele não pode olhar para as sua próprias feridas? Será que ele não pode escrever sobre um momento de intimidade com Deus?

Óbvio que ele pode. Ele é o artista. E como senhor da sua arte, ele pode expressar o que quiser através dela. Como diria Rookmaaker*, “a arte não precisa de justificativa”, certo? Logo, nada te impede de escrever uma poesia extremamente introspectiva e egoísta.

O problema está no uso que fazemos dessa arte e do seu artista.

Hoje, o letrista cristão vive um dilema: ele precisa escrever para o mercado — afinal, música (ainda que cristã) é emprego — ;ele precisa escrever para o coletivo, afinal sua música será o guia do louvor público nas igrejas (aquilo que nossos avós chamavam de “hino”); e por último, ele precisa dar vazão a sua alma, assim como qualquer outro artista.

Se Rookmaaker tentou tirar o peso das costas do artista cristão, o cenário atual é impiedoso: o artista cristão tem três chefes que não aceitam negociação.

E eu trouxe esse exemplo para ajudar na minha posição: sou defensor dos hinários e acho que as igrejas nunca deveriam te-los aposentado. Se as igrejas ainda fossem adeptas dos hinários, os artistas cristãos estariam livres para atender as — infelizmente — necessárias demandas de mercado e os afetos da sua alma, como já nos ensinou Paschoal Bona**, há séculos.

Isadora Pompeo não estaria sofrendo tanta pressão se a sua música não tivesse que ser o hino do culto de domingo de milhares de igrejas Brasil afora.

Já os hinários sim, moldados, compilados, produzidos e validados por um corpo ministerial, no sentido de atender a necessidade liturgica de ser o orientador do louvor público nas congregações, cumpriria muito bem o seu papel e “libertaria” o artista cristão para exercer a sua arte, com uma justificativa a menos.

Isso serviria de desculpa para música cristã de má qualidade? Isso acabaria com a música cristã ruim? Não e não. Porém isso evitaria que letras de má qualidade tivessem o peso de “pregação” e “profecia” dentro dos nossos cultos. Teríamos uma liturgia mais saudável e artistas mais saudáveis, também.

(Nos próximos textos, ainda quero falar sobre as diferenças de tom narrativo entre essas duas músicas, e também defender a utilidade da “música egocêntrica”. Sim, ela é necessária.)

A série Areopagus confunde, propositalmente, arte — cristã e secular — e evangelho. Afinal, se arte é linguagem e evangelho é mensagem, não faz sentido ambos não andarem juntos. Se você gosta do mix, clique aqui e conheça o que já produzimos.

‘* Hans Rookmaaker, holandês (1922–1977) foi um escritor cristão e professor nas áreas de arte e religião. Um dos seus principais livros “A Arte Não Precisa de Justificativa”, ele discursa sobre o papel do artista cristão na sociedade.

** Paschoal Bona, italiano (1808–1878), foi um compositor e teórico músical italiano, famoso por ter criado o “Bona”, método de teoria musical amplamente utilizado por aprendizes. Ele é autor da frase “A música é a arte de manifestar os diversos afetos da nossa alma mediante o som”.

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