“Alvo Mais que a Neve" é racista, como disse Kleber Lucas?
A análise dessa fala polêmica, em cinco pontos
Começaremos pelo consenso. E por Apocalipse
"Depois destas coisas, vi, e eis grande multidão que ninguém podia contar, de todas as nações, tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestes brancas, com ramos de palmeira nas mãos. E clamavam com voz forte, dizendo: “Ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro, pertence a salvação."
Apocalipse 7:9-10 NAA
É consenso que quando o trecho acima foi escrito pelo apóstolo João, não havia as tensões raciais entre brancos e pretos, nos moldes definidos pelo incio do tráfico humano de pessoas negras, no século XVI. Logo, não é provável que João tenha utilizado o termo "vestes brancas" de maneira racista.
E a afirmação do parágrafo acima é importante, pois crentes pregam e cantam sobre "brancura" baseados nestes versos, e não em lógicas raciais. Isso na maior parte das vezes. Possíveis exceções serão tratadas ainda nesse texto.
Logo, em um primeiro momento, não faz sentido a fala do Kleber Lucas em sua entrevista para o podcast do Midia Ninja, dizendo que o hino "Alvo Mais que a Neve" é racista.
A letra do hino, claramente se refere a passagem de Apocalipse: e a retórica de que, pelo sangue de Cristo, podemos ter "vestes brancas", assim como João citou:
Bendito seja o Cordeiro
Que na cruz por nós padeceu
Bendito seja o Seu sangue
Que por nós ali Ele verteu
Eis nesse sangue lavados
Com roupas que tão alvas são
Os pecadores remidos
Que perante seu Deus já estãoAlvo mais que a neve
Alvo mais que a neve
Sim nesse sangue lavado
Mais alvo que a neve serei
("Alvo mais que a Neve" - Harpa Cristã)
White as Snow, Black as Sin
A maior parte dos nosso hinos são transliterações de letras americanas. Na hinologia americana, um dos hinos mais conhecidos é o "White as Snow" (Branco como a Neve). E, obviamente, em algum momento, essa mesma tensão entre inspiração bíblica x racismo também foi levantada.
Mas, na América, as coisas podem ter acontecido de maneira diferente.
É sabido que, nos EUA, a religião protestante foi instrumentalizada para defender interesses escravocratas no século XIX. Muitos dos grandes nomes da teologia americana da época eram escravagistas, e aliados aos políticos do sul daquele país, construíram uma promíscua relação entre política, religião e escravatura.
Assim, naquele contexto, não seria estranho termos pregações e hinos — mesmo com respaldo bíblico — sendo distorcidos com objetivos escravagistas.
E imagine só você, uma pessoa preta dentro de uma igreja, tentando se aproximar de Cristo numa igreja que insiste em utilizar uma retórica que dá a entender que a sua cor de pele te faz mais pecador. Nada cristão, não é?
Mas, no Brasil, esse contexto não aconteceu (pelo menos não nos mesmos termos). As tensões antiescravagistas ocorreram por aqui antes da chegada das principais correntes protestantes. Logo, temos que tomar cuidado para não importar um problema americano.
Hinolatria
Mas, e se fosse verdade. Se realmente algum de nossos clássicos hinos contiverem mensagens racistas, machistas, ou ofensivas, de maneira geral? Isso significa que não houve inspiração divina nessas composições? Devemos entrar em pânico?
Antes de mais nada, acho importante entendemos que, por mais que nossos hinos possam ter sido divinamente inspirados, as letras foram escritas por homens e mulheres que vivem dentro de uma cultura. Dessa forma, estamos totalmente sujeitos a absorver o que de melhor e o que de pior há na cultura que nos rodeia.
Logo, "Alvo Mais que a Neve" poderia sim ser racista, e isso não deveria nos causar nenhum pânico.
Caso isso fosse verdade, caberia a nós revisar a letra do hino, de acordo com o nosso crescente entendimento, e adapta-la, de forma que nosso louvor não fosse contra o mandamento divino, de amar ao próximo como a nós mesmos.
Alguns de nossos círculos evangélicos mantém uma espécie de "hinolatria": letras de hinos que não pode ser melhoradas, porque seriam inerrantes.
Inerrante é a Palavra de Deus, e não uma peça de arte que nós, seres humanos errantes, produzimos.
Logo, se a letra de um hino, ou uma frase ou dizer comum do nosso vocabulário ofende a dignidade de um de nossos irmãos (não o pecado que ele comete, mas a dignidade da humanidade dele), mais importante é o nosso irmão por quem Cristo morreu do que a nossa peça de liturgia.
Bolsonarismo de esquerda?
Agora, quero deixar uma observação sobre a forma como essa "bomba" foi jogada.
Num país onde — seja isso bom ou ruim — maior parte dos evangélicos são de direita, o Kléber Lucas, um artista cristão de esquerda, em um podcast de esquerda, lançar a braba de que um dos principais hinos evangelicos é racista, sem sequer se preocupar em contextualizar os seus porquês, me soa a mais bolsonarista das atitudes.
Afinal, é do bolsonarismo essa pratica de lançar a "verdade polêmica" e deixar que as redes e os algoritmos lidem com isso, causando mais reacionismo e mais ódio.
Como já disse em um texto anterior por aqui, uma esquerda que não se preocupa com o tempero do que diz e lança a polêmica, sem se preocupar com as consequências, é tão bolsonarista quando Bolsonaro.
Trocamos o pão, mas mantivemos a mosca.
Hinos “politicamente corretos"?
Para finalizar, quero deixar o link para o meu último texto, onde falo justamente sobre como poderíamos estar utilizando o politicamente correto como porta para pregação do Evangelho.
Afinal, pregar a Palavra importa mais que qualquer polêmica de internet, não é?