Autocracia, “Messianismo” e como a cultura de liderança deixou a gente mal-acostumado

Bruno A.
o mundo precisa saber
4 min readNov 1, 2022
Photo by Elijah Ekdahl on Unsplash

No momento em que escrevo esse texto, Elon Musk acaba de dissolver o conselho do Twitter, recém comprado por ele, e se torna o único mandatário de uma das maiores redes sociais do mundo, com mais de 400 milhões de usuários.

O século 20, entre outras inovações culturais, nos trouxe a ideia do “líder”. O sujeito – geralmente homem – capaz de levar o seu mundo na força do seu próprio braço. De ditadores à megaempresários, de craques do futebol a pastores. Aprendemos que, se guiados pela mente superior de um líder, podemos ir longe.

O líder tem que ser inteligente, capaz?

Nem sempre.

Na verdade, ele precisa ser carismático, boa lábia. Precisa ter um storytelling que mostra como ele também já esteve entre os liderados. Ele é o sumo sacerdote, que conhece nossas dores, porém venceu, e por isso é capaz de interceder por nós.

Os leitores mais atentos da bíblia vão reparar que essas palavras foram emprestadas da carta Aos Hebreus (4:14-16), onde essa frase é utilizada para afirmar a autoridade messiânica e intercessora de um Jesus Cristo que conheceu nossas dores, porém venceu, e por isso é capaz de interceder por nós. E é exatamente assim que os líderes são vendidos: como um messias.

Mas, a aplicação do “mito do messias” fora da religião esconde um problema.

Será que, dentro do nosso ambiente corporativo, o ideal seria um líder forte que nos guiará até a “vida eterna”, em meio a processos mal estabelecidos, ou uma empresa com processos robustos, bem estabelecidos, de forma que este processo forme bons líderes?

Outra: será que no nosso país, precisamos de um líder forte que precisa tirar todas as instituições democráticas do caminho, para que ele possa garantir a soberania nacional com a força do seu braço, ou será que precisamos de uma democracia com instituições muito bem estabelecidas, de forma que, independente da “força do braço do líder”, as coisas fluam naturalmente?

Precisamos de um xerife no STF pra garantir que a lei seja cumprida, ou precisamos de uma legislação forte e de uma cultura de cumprimento às leis?

Precisamos de uma mente genial e inovadora nas empresas, ou de um ambiente que fomente inovação a ponto de que qualquer um consiga ter uma ideia inovadora?

Precisamos de um sindico de condomínio linha dura, ou precisamos de um ambiente onde todos os condôminos entendam e cumpram seus deveres?

Precisamos de igrejas lideradas por um profeta que tenha acesso exclusivo a Deus, ou precisamos de igrejas com um bom ensino bíblico, de forma que qualquer um consiga contato com o Divino e entendimento da Sua Palavra (aliás, é esse acesso liberado a Deus que é defendido na carta aos Hebreus)?

E, se estamos concordando com a segunda opção em todas essas frases, então por que estamos sempre trabalhando e desejando que a primeira opção se cumpra nas nossas vidas?

Hoje, vivemos numa sociedade que cultua a autocracia. Quando vemos um presidente disposto a minar todas as instituições democráticas para que ele governe autocraticamente, isso é apenas um reflexo da nossa cultura que sempre clama por um messias.

E uma das críticas da carta aos Hebreus a essa ideia do “sacerdote homem” é que, quando ele morre, morre com ele o sacerdócio. Não à toa, no momento em que escrevo esse texto, vemos os seguidores do messias presidente (e o próprio messias presidente) desnorteados, afinal o sacerdócio dele – eterno, para alguns – acabou.

A solução para o mito do messias autocrático seria pararmos de criar messias autocráticos. Deveríamos zelar pela criação de uma cultura (processos, teologias, sistemas democráticos, ou seja lá qual nome se encaixa na organização onde você quer aplicar esse texto) forte, replicável e acessível a todos.

O “bom messias” é aquele que aplica essa boa cultura de tal forma que ele pode sair de cena e seus liderados continuarão até transformar aquela semente em uma das maiores instituições de todos os tempos. E ainda que essa instituição se perca nos personagens, ela mesmo dispõe de uma cultura forte de criticismo que sempre recobra uma volta aos trilhos*. Aliás, foi isso que o Messias verdadeiro fez.

E como este é um blog sobre religião, então fica a dica aos meus irmãos de fé: vamos tirar os olhos dos “Messias da Shopee” desta terra, e vamos nos inspirar no Messias do céu, a saber, o original.

*Só um adendo: na teologia cristã, aprendemos que essa “cultura forte" é fruto, primeiramente, da dispensação do Espírito Santo (Atos 2). Mas as cartas de Paulo e dos demais apóstolos também mostram como deveríamos atuar para zelar por essa “cultura". No fim, entendo que por mais que haja um fator divino, é na cultura dos homens — e na disposição desses homens em moldar sua cultura à partir da “cultura divina" do Espírito Santo — que essa transformação ocorre.

Esse texto continua aqui, onde eu falo de igrejas autocratas.

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