Existem ‘seitas’ e ‘seitas’

Os múltiplos significados desse termo famoso no meio religioso

Bruno A.
o mundo precisa saber
4 min readJul 19, 2024

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Photo by Matthew R. Dix on Unsplash

O verbete “seita” anda bem surrado, coitado.

Não vou nem me desgastar correndo atrás da etimologia do termo, porque no dia a dia, pouco nos lixamos para essas formalidades.

Se você é religioso como eu, “seita” é a definição para qualquer fé que discorde minimamente da nossa forma de crer. Dentro do particionado mundo evangélico, se você pedir para dez crentes de diferentes tradições listar cinco igrejas que são seitas, você vai ouvir uma multidão de respostas, e certamente a sua igreja aparecerá na lista de alguém.

E se você não é religioso, tá mais fácil ainda: tudo é seita! Da igreja católica centenária até a galera do ayahuasca da rua de baixo. Pronto.

Mas repare que, pelo menos dentro do circuito religioso, o termo seita nunca é auto atribuído. Ninguém diz “ter sido guiado por Deus pra criar uma seita”. Normalmente esse termo é uma atribuição da religião maior, institucional, sobre suas dissidências ou sobre formas diferentes — ainda que levemente — de fé.

Isso explica “os evangélicos hipotéticos” desse texto e suas listas de igrejas sectarias.

Mas, quem é o dono da fé, pra poder se denominar como “fé” e alcunhar os demais como “seita”? Não existe uma “Organização Mundial da Fé" pra definir essas coisas (graças a Deus!). Então, assim como o “domínio da fé” é um tema de disputa eterna, a discussão de que igrejas são seitas também seria (por mais que, como bom evangélico, eu também tenha a minha lista no alforje).

Embora não esteja desprezando os problemas relacionados a falsos ensinos e heresias em muitas de nossas igrejas, essas definições um tanto quanto pejorativas de fé são perigosas, e não apenas pelo seu potencial preconceituoso, mas porque ela acaba ajudando a encobrir “seitas”, mas não estas das quais estamos falando, mas as da “outra definição”.

A outra definição de “seita” poderia ser um culto, um ajuntamento liderado por uma personalidade carismática, auto centrada, que atribui a si, e somente a si, o poder de conexão com o sobrenatural. Outra característica de uma seita, neste sentido, é a tentativa de isolar seus membros do mundo comum, por meio de teorias da conspirações e escatologias(1) exageradas, que demandam rituais não menos exagerados para que membros possam permanecer membros.

Daí lembramos daqueles famosos cultos dos Estados Unidos — e de outros lugares também — onde sempre há suicídios coletivos praticados por membros que criam no fim do mundo, ou de abusos sexuais praticados por líderes que colocavam isso como condição para membresia, entre outras coisas que beiram a insanidade e a ilegalidade.

Provavelmente o descrito no parágrafo acima não se encaixa na igreja ou religião descrita por nós como “seita” apenas por “birra teológica". E é aqui que mora o perigo: se tudo é seita, então nada é seita. E se nada é seita, a gente perde a sensibilidade em perceber o que, de fato, e “seita”, é prejudicial, insano, ilegal.

Fala-se muito das características de seitas em manterem ritos de passagem, ritos cerimoniais, linguagens específicas, símbolos e significados próprios, que só fazem sentido para quem está “dentro”. Mas essa definição é problemática, porque nós podemos aplica-la tanto ao culto estranho onde há abusos quanto a igreja que você frequenta aos domingo. Lá também teve houve um rito de passagem (conversão e batismo), lá também ritos cerimoniais (cultos, células e etc.), lá também há líderes, lá também há linguagens, códigos e símbolos específicos, dificilmente reconhecidos por quem está fora desses círculos.

Aliás, o descrito no último parágrafo se aplica não apenas a igrejas, mas a qualquer grupo: os meninos skatistas da praça, a torcida organizada do seu time, a empresa onde você trabalha, até mesmo a sua família. Porque isso não pertence apenas a ajuntamentos sectarios, mas a criação de sistemas culturais, de maneira geral.

Agora, uma seita — no sentido de “opa, esse lugar é sinistro e com certeza isso vai dar ruim logo logo” —tem essa característica de tentar te separar do mundo comum. É mais do que seus “irmãos de igreja” te chamando para o culto de domingo. Se trata realmente de tentar te aprisionar. Tentar fazer com que toda a sua existência fora daquele culto perca todo o sentido. E, uma vez que absolutamente nada no mundo exterior faz sentido, aquilo que o “líder" manda fazer — por mais que seja imoral ou ilegal — parece racional na lógica do grupo. E isso não se aplica apenas a grupos religiosos. Basta ver o que acontece com torcidas organizadas ou em quadrilhas e esquemas de corrupção, por exemplo.

Não saber dosar as coisas, não largar a nossa birra teológica e assumirmos o papel do caça-fantasma toda vez que a teologia ou a doutrina do coleguinha não bate com a nossa, só ajuda a manter nas sombras quem precisa delas para que suas más obras nunca apareçam.

(1) Segundo o Wikipédia, “Escatologia (do grego antigo εσχατος, “último”, mais o sufixo -λόγια, “estudo”) é uma parte da teologia e filosofia que trata dos últimos eventos na história do mundo ou do destino final do gênero humano, comumente denominado como fim do mundo”.

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