O diabo visível — e o invisível — em “Black Mirror: Demon 79"
Contém spoilers de Black Mirror 6x03
Um dos diabos que tenta Nida (Anjana Vasan) pelo caminho das trevas é bem comum: alguém — Gaap (Paapa Essiedu) — que vem do inferno, na imagem do artista mais subversivo da época, dizendo que ela precisa sacrificar três vidas humanas para que o apocalipse não se cumpra.
Nida sofre de pensamentos intrusivos, como mostra o episódio, então podemos até especular se o diabo de Nida é real ou apenas alucinação.
Pensamentos intrusivos*, como se sabe, podem ser causados, entre outras coisas, por uma situação de estresse ou ansiedade. E os pontos que levam a moça de origem indiana a essa condição estão espalhados pela estória.
Nossa religiosidade faz com que nós preguemos os olhos em Gaap, o diabo subversivo. Afinal, todos já ouvimos desde histórias sobre alguém que teria sido possuído até mesmo as referências bíblicas, como a de Mateus 4, onde satanás se apresenta pessoalmente a Jesus para tentá-lo.
Mas o que não percebemos (ou percebemos?) ao assistir Demon 79 é que o diabo não apenas existe, como ele se apresenta de muitas formas.
A pobre Nida é vista como uma intrusa na xenófoba Inglaterra de 1979, onde conservadores urram horrores contra qualquer um que não tenha o “sangue azul” britânico. Seu casebre está com o portão pichado com o simbolo de um partido fascista. Coincidência?
Chamar a polícia? Não no reino que parece estar unido contra os “intrusos”. Na TV, a voz que ecoa é a do político conservador, anti-imigração, Michael Smart, vociferando a caça aos imigrantes como plataforma de campanha.
No trabalho, a vida de Nida não é mais leve. Seu chefe a manda almoçar no porão, pois sua colega de trabalho, que a persegue de maneira xenófoba, reclama do cheiro da comida indiana que ela come, enquanto ambos tietam o político que vê gente como Nida como um animal a ser caçado e eliminado, sem em nenhum momento empatizar — se colocar no lugar, mesmo — de alguém que parece viver em meio à lobos, sentindo que sua integridade está correndo perigo.
Em Demon 79 — e na vida, porque não — é bem claro o diabo visível que um hora se apresenta vermelho, de chifre, rabo e cheirando enxofre, mandando matar, e em outra hora se apresenta na figura do vocalista do grupo musical mais subversivo e lascivo da época; mas não parece tão claro o diabo invisível, que permeia o ambiente, se organiza em partidos e canaliza o clamor social por caçar e matar aqueles que, segundo estes, não são iguais.
O diabo, como dizem, é astuto. E para tomar pra si a alma do mais moral e conservador, se for preciso, ele disfarça a sua sede por sangue em discursos de moral e bons costumes.
Oremos e vigiemos.
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Esse post no site do Drauzio Varela explica o que são pensamentos intrusivos.