EUA I: Ascensão e queda dos estúdios

Nada como um bom oligopólio!

Roberto Moreira
O negócio do audiovisual
6 min readSep 5, 2019

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Por sua posição hegemônica no mercado internacional, é preciso entender a organização industrial do cinema americano. Em sua configuração atual, Hollywood formou uma platéia global e goza de inegável estabilidade. Mas não foi sempre assim e nem sempre foram tão hegemônicos. Antes de 1914, quem dominava o entretenimento global era a França. É certo que a ascensão americana beneficiou-se do impacto da Primeira Guerra Mundial, que debilitou a presença internacional do cinema francês, alemão e italiano, mas também aconteceu por motivos endógenos. Em 1914, Adolph Zuckor, criou na Paramount o modelo que viria a ser imitado pelas demais majors e que em linhas gerais persiste até hoje (Gomery, 2005):

  1. Integração vertical. Todos os elos da cadeia produtiva, do roteiro até a sala de exibição, faziam parte de uma mesma empresa. O mercado era dividido entre as majors, consolidando um arranjo oligopolista onde os estúdios controlavam as melhores praças, sobrando as piores para os exibidores independentes. Com 15% das salas, recolhiam 75% da renda. Os estúdios também obrigavam os exibidores a programarem filmes em grupos (block-booking) e a comprarem títulos às cegas (blind-buying). Essas táticas garantiam um retorno mínimo mesmo para os filmes mais medíocres e repassava para exibidores impotentes parte do risco do negócio.
  2. Descriminação de preços. Até 1914 não havia uma política de preços uniforme. Cada exibidor cobrava de acordo com o que julgava ser o valor do filme, ou seja, cada cinema praticava preços diferentes para cada filme. Zukor estabeleceu preços mínimos a serem cobrados pela exibição de seus filmes e criou um sistema de janelas. Primeiro o filme era exibido no circuito premium (first run), depois seguia-se um período de tempo, de sete a trinta dias, que o filme saia do circuito (the clearance), para retornar num circuito de menor prestígio a um preço menor (second run), outro período de clearance, e depois o third run, e assim sucessivamente. Em algumas cidades chegava-se a onze rodadas de exibição; em cidades pequenas, só duas. Essas exibições também eram delimitadas por áreas (zones), e cada estúdio tinha a sua zone, de modo que se tratava de um arranjo oligopolistico. Este sistema aproveita os ganhos de escala em um negócio onde o investimento inicial é alto, mas cujo produto pode ser reproduzido infinitas vezes a baixo custo, ou seja, ele permite extrair a maior receita possível de um mesmo produto.
  3. Expansão internacional. Expandindo a lógica de discriminação de preços, Zuckor percebeu que o custo de entrar em um novo mercado é marginal em relação ao ganho de receita. Rapidamente abriu escritórios ao redor do mundo. O mercado internacional, durante os anos 30 e 40, já respondia por metade do faturamento de um filme.
  4. Processo de produção em série no modelo Taylorista. Zukor calculou que precisava produzir 30 filmes por ano para manter sua estrutura de distribuição. A MGM, por exemplo, precisava produzir um filme novo, na média, a cada nove dias para atender o mercado exibidor.
  5. Star System. O talento era administrado pelos estúdios através de contratos de sete anos. Até aconteciam empréstimos de atores entre estúdios, mas eram assalariados e suas carreiras controladas pela empresa
  6. Formato padronizado do produto. O sucesso de The Prisoner of Zenda (1913), uma adaptação teatral inspirada pelo exemplo do film d’art europeu, consagrou o filme de longa-metragem como um produto de qualidade. Nessa época também consolidou-se um padrão técnico e dramatúrgico que destacou a produção americana.

Esse modelo persistiu pelos anos 20, 30 e 40. A integração vertical garantia um fluxo contínuo de filmes, que possuíam espaço cativo no cinema tempo suficiente para garantir sua amortização. Nesse mundo estático e controlado, os filmes permaneciam mais tempo em cartaz, sendo que vários lançamentos começavam em poucas salas e iam crescendo aos poucos. Os estúdios determinavam onde, quando e por quanto tempo o espectador ia ter acesso aos filmes, ou seja, não enfrentavam concorrência e diminuíam muito o risco da atividade.

Nesse período, 20% dos filmes eram de alto-orçamento, 30% médio e 50% baixo (Pokorny e Sedgwick, 2010). O grosso da receita dos estúdios provinha dos filmes de baixo orçamento, que geravam um terço dos lucros totais e absorviam apenas um quinto dos custos, resultando numa taxa de retorno que era o dobro daquela dos filmes de alto-orçamento. Como a contribuição dos médios orçamentos ao lucro era equivalente à proporção de custos que absorviam, no final, as produções de baixo custo subsidiavam aquelas de alto custo.

O sistema dos estúdios gerava uma carteira diversificada, mas seu sucesso financeiro provinha de orçamentos apertados, com grande apelo de público e modestas aspirações artísticas (Pokorny e Sedgwick, 2010. p.76).

Vale observar que a verticalização atenua o risco, não apenas porque os filmes fazem parte de uma carteira, mas também porque os resultados da distribuição e exibição, muito mais seguros, compensam a perda inerente em uma atividade de alto risco como a produção.

Recapitulando, o estúdio:

  • Controla a oferta, decidindo quando, onde e qual filme as pessoas vão assistir.
  • Forma uma carteira onde os sucessos compensam os fracassos
  • Amortiza o fracasso da produção com os resultados da distribuição e da exibição

Fora dos EUA, houve outros exemplos de integração vertical: na Inglaterra, durante a década de 40, a Rank Organization e a Associated British Picture Corporation; na Alemanha dos anos 20, a Ufa; na França dos anos 30, Gaumont-Franco-Film-Aubert e Pathé-Natan (Chapman, 2003). No Brasil, a Atlântida nos anos 50, propriedade do exibidor Severiano Ribeiro, e a Rede Globo, construída segundo o modelo dos estúdios americanos, são exemplos de integração vertical.

A crise do pós-guerra

1946 foi o ano da maior bilheteria na história do cinema americano. Infelizmente, uma profunda transformação no consumo dos filmes levou a uma brusca e ininterrupta queda no número de espectadores.

Despesa dos consumidores com cinema nos EUA (1929–1999). Fonte: (Vogel, 2001), apud (Pokorny e Sedgwick, 2010. p.64)

Segundo Pokorny:

Acréscimos nos salários reais e reduções nas horas de trabalho abriram um leque maior de alternativas de recreação. O rápido aumento na urbanização e no número de casas próprias resultou em mudanças radicais no estilo de vida, e, junto com a explosão na natalidade, levou o que havia sido o núcleo do público de cinema a se engajar em outras atividades. A difusão acelerada da televisão -presente em menos de 9% das casas americanas em 1950 e atingindo 64% cinco anos depois- também teve um impacto drástico na frequência dos cinemas. De fato, argumenta-se que a difusão da televisão respondeu por mais de 70% na queda da receita dos cinemas em 1950 e 1951, caindo para 60% em 1952, 58% em 1953 e 55.8% em 1954. (Pokorny e Sedgwick, 2010. p.70)

Ao mesmo tempo, a organização dos estúdios passou por profunda transformações. De Vany e Walls (2004) também responsabilizam o Paramount Act de 1948 por fragilizar a indústria num momento difícil. Segundo Gomery (2005), esta foi a iniciativa regulatória de maior impacto em toda história da economia americana. Os estúdios foram obrigados a se desfazer de seu circuito de exibição e, o que pouco se comenta, também foram impedidos de serem proprietários de redes de televisão, contrariando um projeto que já em andamento durante os anos 30. Agora, estavam definitivamente impedidos de se integrarem verticalmente.

Assim, a demanda por cinema mudou e os filmes deixaram de ser produzidos em série para um mercado garantido. O mundo confortável dos mercados integrados verticalmente ruiu e os estúdios tiveram que se adaptar a uma nova realidade.

Referências

GOMERY, D. The Hollywood Studio System: A History. London: British Film Institute, 2005.

THE Prisoner of Zenda. Direção: Edwin S Porter; Hugh Ford. New York: Famous Players Film Company, 1913.

POKORNY, M.; SEDGWICK, J. Profitability trends in Hollywood, 1929 to 1999: somebody must know something1. The Economic History Review, 2010. 63(1).

CHAPMAN, J. Cinemas of the World : Film and Society From 1895 to the Present. London: Reaktion Books, 2003.

VOGEL, H. L. Entertainment Industry Economics: A Guide for Financial Analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

DE VANY, A. Hollywood Economics: How Extreme Uncertainty Shapes the Film Industry. Routledge, 2004.

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Roberto Moreira
O negócio do audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.