EUA II: produzindo filme a filme

Como Hollywood reagiu ao impacto de uma nova mídia: a televisão.

Roberto Moreira
O negócio do audiovisual
11 min readSep 10, 2019

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Frente à inédita competição da TV, o processo de produção em série que marcou os estúdios até os anos 50 foi abandonado e passou-se a praticar o que Staiger (Bordwell et al., 1985) chamou de sistema de empacotamento unitário, ou seja, cada projeto era tratado separadamente, mobilizando sempre diferentes parcerias criativas e diferentes valores de produção. Cada filme era um package diferente. Isto levou à reorganização de todo o negócio.

Quem ocupa o lugar central na cadeia produtiva do cinema são as distribuidoras, e a elas coube negociar os novos termos das relações entre os agentes do mercado. Primeiro foram conduzidas negociações complexas com o setor da exibição, de modo a garantir para a distribuição um percentual expressivo da bilheteria. Criou-se uma escala decrescente para a repartição da receita, começando em 90% para o distribuidor e 10% para o exibidor, e diminuindo a cada semana o percentual do distribuidor em 10%. A virtude da escala decrescente é encorajar a manutenção do filme em cartaz, caso contrário o exibidor trocaria de filme de modo acelerado. Pode parecer que o exibidor está em grande desvantagem, mas a repartição ocorria após a dedução de um valor fixo capaz de cobrir suas despesas operacionais e ainda assegurar um lucro moderado. A idéia era garantir uma grande receita para o distribuidor quando o filme faz sucesso e proteger o exibidor quando o filme fracassa (Balio, 2009). Sessenta anos após, o espírito desses acordos se mantém (Vogel, 2010. p.121).

As relações de produção também se transformaram. Os talentos ganharam autonomia e passaram a trabalhar por carteiras de filmes. Em 1952, o agente Lew Wasserman montou um pacote de sete filmes com James Stewart e Anthony Mann. Foi a primeira vez que um ator recebeu uma fração dos lucros. Outros talentos agenciados por Wasserman eram Gene Kelly, Myma Loy, Billy Wilder, Henry Fonda, Judy Garland, Montgomery Clift, Gregory Peck, Helen Hayes, Fred Astaire, Alfred Hitchcock e Dashiell Hammett. Todos enriqueceram (Gomery, 2005). Até hoje os filmes são organizados através das agências de talentos, que compõem em negociações com os estúdios o mix de artistas por projeto. Sem a necessidade de produzir em série, os estúdios também passaram a contratar produtores independentes. O estúdio que redefiniu as relações entre distribuidores e produtores foi a United Artists (UA), cuja história foi contada por Tino Balio (2009) (2009). Vale a pena uma descrição detalhada pois explica muito bem como Hollywood trabalha até hoje. Mas, para entender a origem da United Artists, é necessário explicar o que é a comissão de distribuição.

O gráfico abaixo ajuda a esclarecer. Após deduzir impostos, contribuições e a remuneração do exibidor, é o retorno do distribuidor, um percentual calculado sobre o total da receita bruta de distribuição, uma vez deduzidos os impostos. Depois do distribuidor receber sua comissão, são pagas as despesas de comercialização -denominadas no meio cinematográfico print and advertising (P&A)- e só então o produtor começa a pagar as despesas pela realização do filme. Nem coloquei no diagrama o lucro do produtor, porque é realmente elusivo. Não à toa os produtores e cineastas têm profundo ressentimento com a distribuição e a exibição.

Distribuição das receitas cinematográficas — Fonte: Elaboração do autor.

Para enfrentar esse problema, os artistas mais importantes dos anos 20 juntaram-se em uma empresa. Criada em 1919 por D. W. Griffith, Charlie Chaplin, Mary Pickford e Douglas Fairbanks, a United Artists era uma distribuidora voltada para remuneração do produtor. Ela oferecia uma escala decrescente de taxa de distribuição, que começava em 25% e diminuía até 10%, acompanhando a receita do filme: quanto maior a receita, menor a taxa. Chaplin, por exemplo, enquanto era sócio pagou taxa de distribuição de apenas 10%. Em compensação, para evitar acusações de favoritismo, os próprios produtores tinham que se financiar. Esta política parece o sonho de qualquer produtor. Por que dividir a receita com o intermediário?

Em 1946, apesar de a UA ter a maior receita de sua história, mal conseguiu um resultado positivo, pois na maioria dos seus contratos a taxa de distribuição estava sendo negociada a 10% e não no ponto de equilíbrio, de 22%. Os produtores de sucesso apropriavam-se de toda a receita e pouco sobrava para cobrir os prejuízos da maioria do filmes. Dois anos depois a empresa enfrentou uma crise que levou Chaplin e Pickford a contratar um grupo de advogados para administrar a empresa. Em cinco anos, Arthur Krim e Robert Benjamin assumiram o controle e compraram a participação dos antigos sócios. O modelo criado por eles consolidou a figura do produtor independente e transformou em 15 anos a United Artists na maior produtora-distribuidora do mundo.

Conforme o momento do mercado, a UA cobrava uma comissão de distribuição que variava entre 30 e 45 por cento da receita bruta de distribuição. Esses recursos eram usados para cobrir as despesas fixas de sua rede internacional de venda, compensar perdas com empréstimos para produção e contribuir para uma carteira de financiamento de novos projetos. É claro que os produtores sempre resistiam à taxa. Numa negociação com o poderoso Lew Wassermam, então presidente da agência MCA, Krim afirmou:

É o resultado inevitável do sucesso que tenhamos um custo operacional de US$13.000.000 por ano para operar no mundo todo. Se nós não pudermos faturar isso com os filmes de sucesso, onde vamos conseguir? É uma falácia considerar a comissão de distribuição apenas como lucro. Nos apequenando, eles só vão diminuir a força que os protege. (Balio, 2009. p.57)

Os mais de 100 filmes que UA financiou entre 1946 e 1957 geraram US$24.145 em lucros. O número é esse mesmo: vinte-quatro mil, centro e quarenta e cinco dólares. No entanto, a receita bruta com as taxas de distribuição pularam de US$20 milhões para mais de US$60 milhões, e o lucro, antes de descontar os impostos, foi de US$350 mil para mais de US$6 milhões (Balio, 2009. p.92). A UA seria lucrativa mesmo se todos os seus filmes fossem um fracasso.

Nós estamos determinados a evitar o fracasso em cada filme. Isto significa que devemos constantemente pesar e medir com quantos filmes conseguimos lidar de modo lucrativo, e devemos ter certeza que não estamos correndo riscos desnecessários. Nossa política aqui é considerar desde o início todo filme um fracasso. Esse é o modo como agimos. Então, se temos um sucesso, isto significa que o duro trabalho deu resultado e ficamos agradavelmente surpresos. (Balio, 2009. p.110)

Como afirma Vogel sobre a taxa de distribuição, ainda hoje

é esse lucro […] que mantém o distribuidor no negócio, apesar da alta probabilidade de que vários filmes percam dinheiro, depois de processados todos os custos e despesas (Vogel, 2010. pgs. 187–188).

Balio descreve como as receitas eram partilhadas:

A receita era alocada aos sócios de acordo com o grau de risco a que se expuseram. A receita da exibição em salas de cinema era conhecida como o “bruto da distribuição.” Para cada dolar coletado, a UA deduzia sua taxa de distribuição; a sobra, chamada “a parcela do produtor,” era usado primeiro para reembolsar a UA pelos custos de cópia e publicidade [P&A]; em segundo lugar para pagar o empréstimo pela produção e os recursos de finalização; em terceiro, para pagar os salários devidos. Só então, as receitas (com a taxa de distribuição ainda sendo descontada) eram consideradas lucro e divididas entre os participantes nas proporções acordadas. (Balio, 2009. p.118)

Naqueles filmes que geravam lucro, a UA era generosa com o produtor e geralmente dividia em 50%. Mas a UA assumia o maior risco e tinha a retenção prioritária sobre a receita. (Balio, 2009. p.19) Como se não bastasse, os acordos de produção para múltiplos filmes tinha compensação colateral, ou seja, a receita dos sucessos devia cobrir o prejuízo dos fracassos, o que tornava quase impossível o ganho de lucro pelo produtor. Stanley Kramer produziu 5 filmes para a UA entre 1955 e 1960:

Os filmes estavam cruzados em grupos de dois e três. No primeiro grupo, Não Serás um Estranho (1955) e Orgulho e Paixão (1957) tiveram um custo de US$1.5 milhão e US$3.7 milhão respectivamente. Não Serás um Estranho teve distribuição mundial e a receita bruta da distribuição foi de mais de 8 milhões e rendeu um lucro de 1.8 milhão, uma quantia substancial tendo em vista o investimento. Orgulho e Paixão, no entanto, teve uma receita de apenas US$6.7 milhão e perdeu US$2.5 milhão, também uma quantia substancial. (…) Como os dois filmes tinham compensação colateral, a UA perdeu US$700,000 (US$2.5 milhão menos US$1.8 milhão) ao invés da perda total de Orgulho e Paixão de US$2.5 milhões. E Kramer não ganhou lucro nenhum, ao invés dos US$1.8 milhão por Não Serás um Estranho. Todos os filmes no segundo grupo deram prejuízo e a UA absorveu estas perdas. (Balio, 2009. p.118)

A UA possuía direitos de distribuição dos filmes em todos os mercados e mídias e, conforme avançou o programa de financiamento de filmes, aumentou de 5 anos para 10 e finalmente por tempo ilimitado esta propriedade.

Em compensação, a UA proporcionava o financiamento completo do filme: oferecia garantia junto aos bancos, adiantava recursos e investia dinheiro próprio. É importante destacar que este serviço de intermediação financeira tirava do produtor o ônus de se relacionar com investidores. Também era oferecida uma garantia de receita para o produtor: ele recebia sua taxa pela produção adiantada, nos casos de contratos para múltiplos filmes, e ainda uma taxa de administração para garantir o custo operacional de sua empresa. A sobrevivência do produtor provinha desses recursos e da renda dos mercados secundários, na época a televisão. Continuando com o exemplo de Kramer: apesar do resultado problemático do primeiro contrato,

UA garantiu a produção de mais seis filmes, três por ele dirigidos e três por ele produzidos. Para cada filme do primeiro grupo, ele recebeu um taxa de produtor de US$75.000, e de US$50.000 pelos do segundo. UA também garantiu uma taxa de administração de US$600.000, pagando US$100.000 por ano. Como incentivo extra, UA aumentou sua participação [de Kramer] nos lucros de 60 para 70 por cento. (Balio, 2009. p.160)

É importante destacar a dificuldade do produtor de garantir alguma receita, devido à sua alta exposição ao risco. Uma das parcerias mais profícuas da UA foi com os irmãos Mirisch. Após a conclusão de um acordo para vinte filmes,

Apenas cinco filmes tiveram lucro: três sucessos de Billy Wilder, Sete Homens e um Destino (1960), e Fugindo do Inferno (1963). O grupo de vinte filmes perdeu US$8.7 milhões até 1963, com uma receita nas salas de US$92 milhões. Apesar das perdas na produção, o acordo foi muito lucrativo para a UA. Estes vinte filmes geraram US$32 milhões em taxa de distribuição até 1963. Depois de deduzir as perdas de US$8.7 milhões, sobraram mais de US$23 milhões. Dito de outra maneira, UA ganhou aproximadamente 25% da receita como taxa após deduzir as perdas. As despesas de distribuição não estão disponíveis, mas é correto estimar que a UA ganhou uma fortuna. (Balio, 2009. p.194)

Outra vantagem do produtor era a liberdade. A UA lutava junto com seus produtores contra o Código Hayes e permitia que fossem tratados temas polêmicos. Aprovava história, elenco, diretor e orçamento, componentes criativos essenciais para julgar o potencial comercial de um filme, mas no processo de realização do filme o produtor tinha completa autonomia, incluindo o direito ao corte final. A UA limitava-se a manter um sistema de controle do orçamento, para acompanhar o andamento do projeto e garantir sua realização dentro do estimado. O produtor submetia à UA diariamente as ordens do dia, os relatórios de produção e a situação do fluxo de caixa e a UA designava um agente para assinar conjuntamente os cheques na locação. Mas, de resto, a liberdade do produtor era preservada. Segundo Otto Preminger:

Apenas a UA tem um sistema verdadeiro de produção independente. Eles reconhecem que o independente tem a sua própria personalidade. Depois que eles estão de acordo sobre o roteiro e são consultados sobre o elenco, deixam tudo a critério do produtor. Na maioria das vezes, quando os outros fazem um contrato independente, querem aprovar a filmagem e o corte final. (Balio, 2009. p.239)

O produtor tornava-se proprietário do título, ou seja, o filme estava em seu nome, o que lhe garantia vantagens fiscais e participação nos lucros. Ele também podia filmar onde quisesse, pois a UA não possuía estúdios. Isso significava que o produtor não era obrigado a pagar um fixo pelo uso dos recursos dos estúdios -custo que as vezes alcançava 40% do orçamento total- e tinha a vantagem de filmar em países mais adequados à história ou que oferecessem subsídios. A UA também permitia ao produtor apresentar agentes de venda para colaborar na distribuição do filme, de modo a afastar qualquer suspeita quando ao seu empenho na venda.

Seus contratos não eram exclusivos, ou seja um produtor só teria que ir em frente com um projeto quando estivesse satisfeito com os termos e circunstâncias do empreendimento. Se ambas a partes não chegassem a um acordo, o produtor tinha o direito de buscar o financiamento em outro lugar e se ao final o projeto não vingasse, os custos de desenvolvimento eram cancelados como perda ou cobrados no próximo filme do produtor.

Como já vimos, o talento não era obrigado a assinar contratos de longa duração, tornava-se sócio da empreitada e concordava em receber boa parte de seu salário depois que os custos do filme fossem amortizados. Quando recebiam percentagem dos lucros, ela era deduzida da parcela do produtor, ou, as vezes, partilhada com a UA em percentuais variáveis. Estrelas de sucesso podiam exigir, além do seu salário, uma percentagem do bruto, ao invés da participação nos lucros. Nesse caso UA e o produtor arcavam igualmente com o custo. Eis o exemplo de Quanto Mais Quente Melhor (1959):

Marilyn Monroe trabalhou por 10% da receita bruta que ultrapassasse US$4 milhões; Tony Curtis 5% da receita bruta acima de US$2 milhões; e Billy Wilder 17,5% do primeiro milhão depois do ponto de equilíbrio e 20% dai em diante. Um insatisfeito Bob Benjamin notou que quando se somava a taxa de distribuição padrão de 30%, sobrava menos de um terço da receita bruta para amortizar as despesas de produção. Quanto Mais Quente Melhor gerou apenas US$500.000 de lucro na sua primeira exibição nos cinemas. Wilder, por outro lado, embolsou US$1.2 milhão; Monroe, US$800.000, e Curtis, aproximadamente US$500.000. (Balio, 2009. p.170)

Hoje os contratos se sofisticaram muito mas, em linha gerais, esses parâmetros continuam a ser praticados nas negociações entre produtores e distribuidores nos EUA. A distribuição fica com o grosso da renda e, em contrapartida, arca com o ônus do financiamento. Não à toa, quando a verticalização foi quebrada, os estúdios americanos ficaram com a distribuição. É a posição-chave dentro da indústria e aquela capaz de capturar maior renda através da taxa de distribuição.

Referências

BORDWELL, D.; STAIGER, J.; THOMPSON, K. The Classical Hollywood Cinema: Film Style & Mode of Production to 1960. New York: Columbia University Press, 1985.

BALIO, T. United Artists: The Company Built By the Stars — Volume 1, 1919–1950. Madison, Wis.: University of Wisconsin Press, 2009.

BALIO, T. United Artists: The Company That Changed the Film Industry — Volume 2, 1951–1978. Madison, Wis.: University of Wisconsin Press, 2009.

FUGINDO do Inferno. Direção: John Sturges. Los Angeles: United Artists, 1963.

GOMERY, D. The Hollywood Studio System: A History. London: British Film Institute, 2005.

NÃO serás um estranho. Direção: Stanley Kramer. Los Angeles: United Artists, 1955.

ORGULHO e paixão. Direção: Stanley Kramer . Los Angeles: United Artists, 1957.

QUANTO mais quente melhor. Direção: Billy Wilder. Los Angeles: United Artists, 1959.

SETE homens e um destino. Direção: John Sturges. Los Angeles: United Artists, 1960.

VOGEL, H. L. Entertainment Industry Economics: A Guide for Financial Analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

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Roberto Moreira
O negócio do audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.