Ganhos e perdas

Qual a chave para o crescimento do nosso mercado?

Roberto Moreira
O negócio do audiovisual
6 min readDec 4, 2019

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Sempre foi um lugar comum no nosso pensamento cinematográfico dizer que nosso mercado é ocupado pelo filme estrangeiro. Falamos o tempo todo de market share, que podemos traduzir como ocupação de mercado, e citamos percentuais. Uma porcentagem, para falar tecnicamente, é “uma medida de razão com base 100 (cem)” (PORCENTAGEM, 2019), ou seja, é a velha regra de três. Ao representar o problema através de percentuais, fazemos da ocupação de mercado um jogo de soma-zero, onde “o ganho de um jogador representa necessariamente a perda para o outro jogador” (SOMA-ZERO, 2019). O gráfico abaixo ilustra muito bem essa idéia.

Gráfico 1: Elaboração do autor. Fonte: FILME B.

Somos assim induzidos a pensar que cada ponto percentual ganho pelo filme estrangeiro é tomado do brasileiro e vice-versa. Mas, se deixamos de pensar em percentuais, o problema assume uma nova configuração. O segundo gráfico compara o número de espectadores do filme nacional e estrangeiro. De cara é possível observar que, em vários anos, a bilheteria cresceu para os dois tipos de produtos e que também não há correspondência entre os ganhos e as perdas. Ou seja, um produto não tira o espaço do outro.

Gráfico 2: Elaboração do autor. Fonte: FILME B.

Esta tabela esclarece melhor pois coloca lado a lado a variação percentual do crescimento no número de espectadores de um ano para o outro, seja do filme brasileiro, seja do estrangeiro.

Tabela 1: Elaboração do autor. Fonte: FILME B.

Podemos chegar a algumas conclusões rapidamente.

  • Se o jogo fosse de soma zero, a diferença percentual entre a ocupação do mercado para o filme brasileiro e estrangeiro deveria tender a zero,
  • em quase metade dos anos, o cinema nacional cresceu percentualmente mais que o estrangeiro,
  • em um terço dos anos, os dois tipos de filmes cresceram juntos.

Ou seja, a correlação entre a ocupação do filme estrangeiro e nacional é baixa, se o nosso mercado fosse “ocupado” pelo estrangeiro essa correlação tinha que ser alta. Vale recordar o exemplo da Coréia, onde a pujança da produção nacional puxou o crescimento do mercado cinematográfico como um todo. No exemplo brasileiro observa-se o mesmo resultado, ainda que tímido e irregular. Nos anos de maior participação brasileira no mercado não houve necessariamente a contração da presença importada. O gráfico abaixo deixa essa diferença ainda mais evidente.

Gráfico 3: Elaboração do autor. Fonte: FILME B.

A variação no crescimento do número de espectadores do filme brasileiro vai de 202% a –39% pontos percentuais! Como a variação é bem menor para o filme estrangeiro (de 23% a -20%), seu crescimento parece mais estável. Mas, se fazemos um gráfico só do filme estrangeiro, o resultado também surpreende.

Gráfico 4: Elaboração do autor. Fonte: FILME B.

Para entender variações tão grandes é preciso lembrar que o mercado cinematográfico gira em torno de extremos. A performance dos filmes é imprevisível e por isso as duas carteiras apresentam tanta variação. Tudo depende da safra. Mas é claro que, quanto maior a variação, mais frágil a ocupação do mercado.

A performance extremamente irregular dos filmes brasileiros deve-se às características da oferta. Quando há títulos ganhadores nos torneios de sobrevivência do mercado, acontecem os saltos, ou seja, dependemos de poucos e raros títulos de alta performance. Se tivéssemos um número mais constante de filmes capazes de conquistar o público, a variação seria menor de ano para ano.

Este é um objetivo difícil, mas não impossível. Variações sempre vão existir, mas podem ser menores, basta garantir uma presença consistente no mercado com filmes capazes de atrair o público. Essas variações extremas do filme brasileiro também trazem algumas boas notícias.

  • É possível realizar saltos, o crescimento não necessariamente é lento e constante.
  • O filme brasileiro tem muito mais potencial de crescimento que o estrangeiro.
  • Basta conseguirmos manter o público conquistado de um ano para o outro que nossa ocupação do mercado vai aumentar aceleradamente.

Estes dados comprovam que os mercados não estão necessariamente “ocupados” pelo filme estrangeiro, mas sim que o filme nacional não consegue ocupar o seu espaço. A demanda por cinema é elástica. O jogo não é de soma zero, ao contrário, quanto mais um agente do mercado ganha, mais os outros também podem ganhar. Um mercado como nosso, dominado apenas pelo filme americano, é apequenado, restrito e tímido, como é atestado pela baixa frequência. É a presença do filme brasileiro que fará o cinema realizar sua vocação de entretenimento popular.

Os economistas utilizam o conceito de desconto cultural para caracterizar essa vantagem. Produtos culturais são diferenciados porque, sendo todas as condições iguais, as pessoas preferem os códigos culturais e conteúdos produzidos na sua própria língua. Levando em consideração dois programas similares produzidos em países diferentes, um programa realizado em português e contendo mensagens culturais que nos são familiares será mais valorizado. Por isso, a importação de produtos culturais diminui seu valor (Sora and Hyun-hae, 2004).

Um bom exemplo é a comparação entre Avatar (2009) e Tropa de elite 2 — O inimigo agora é outro, (2010). O primeiro custou US$ 516 milhões e o segundo, R$ 8,7 milhões. No entanto, Tropa teve no Brasil 11.146.723 espectadores, e Avatar 9.111.628. Vemos outro exemplo todo dia na nossa televisão. Seria bem mais barato veicular enlatados americanos no horário nobre, no entanto, o que atraí o público brasileiro é a telenovela. Apesar do desconto cultural, que é para nós uma grande vantagem, nossos filmes não atendem às expectativas do público.

Essa dificuldade de diálogo, já diagnosticada nos anos 60 (BERNARDET, 2007), é muitas vezes racionalizada, no sentido freudiano, colocando a culpa no outro, ou seja, no filme americano. Qualquer cineasta ou produtor trabalha com sinceridade, realizando muitas vezes grandes sacrifícios para chegar no mercado com um filme no qual acredita. É difícil aceitar o fracasso de um filme. Mas, ao invés de colocar a culpa no filme estrangeiro, seria mais produtivo reconhecer que a maioria esmagadora dos filmes vai mal, inclusive a maioria da produção americana! Poucos sobrevivem em mercados tão competitivos e aleatórios. É preciso respirar fundo e aceitar que a qualidade do seu filme pode ser reconhecida também no streaming, na televisão ou em festivais. O número de espectadores no cinema não é o único indicador de qualidade, é importante seguir em frente tentando. Nesse sentido, a “culpa” não é do cinema americano.

Dito isso, é importante esclarecer dois pontos.

  1. A pressão política e econômica do cinema americano é uma realidade. O jogo imperial é bruto. Mas fica a questão, porque somos tão incompetentes na nossa resistência? Apesar das circunstâncias favoraveis dos recentes governos de esquerda, nosso resultado foi fraco. O problema não é a grande política. Então, onde pega?
  2. Sou a favor da cota de tela para o filme brasileiro. Ela é um instrumento para garantir mercado, e pode ser estratégica para relançar o filme brasileiro; só acho que não é condição suficiente para promover o crescimento do nosso market share (SANTOS, 2019).

Meu ponto é que existe um problema no perfil da produção brasileira. Nossa oferta de filmes é irregular, acomodada por um sistema que exige pouca performance, e não consegue ocupar o mercado de modo consistente. Precisamos desesperadamente de filmes competitivos e para isso precisamos mudar os parâmetros do fomento.

Referências

BERNARDET, J.-C. Brasil em tempo de cinema: ensaio sobre o cinema brasileiro de 1958 a 1966. (1967) São Paulo: Compania das Letras, 2007.

PORCENTAGEM. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Porcentagem. Acesso em: 25 Oct 2019.

SANTOS, A. Z. A cota de tela é uma medida qua atende às necessidades do cinema nacional? 2019. 86 p. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em Audiovisual) — Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

SOMA-ZERO. In: WIKIPEDIA, a enciclopédia livre. Flórida: Wikimedia Foundation, 2019. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Soma-zero. Acesso em: 25 Oct 2019.

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Roberto Moreira
O negócio do audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.