O celular e nós

A hipercompetição no audiovisual

Roberto Moreira
O negócio do audiovisual
7 min readAug 19, 2019

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Hoje, com um mesmo instrumento, podemos escrever um roteiro, planejar e administrar o fluxo de uma produção, gravar, editar, mixar, corrigir a cor, distribuir numa plataforma global e ainda fazer uma transmissão ao vivo! Esse instrumento está nos nossos bolsos e é um celular. Não faz vinte anos, a infraestrutura e a mão de obra necessárias para essas atividades eram gigantescas. Agora, estão ao alcance de todos nós.

Assim como a produção, o consumo também se transformou. Antes, jornais competiam com jornais, revistas com revistas, televisão com televisão, consoles de games com consoles de games; cada mídia possuía um suporte diferente que definia sua natureza. Íamos ao cinema, pegávamos com nossas mãos o jornal, que era diferente da revista e do livro, tínhamos que sintonizar o rádio ou colocar o disco na vitrola, mas, sobretudo, assistíamos televisão na sala. O modo como consumíamos as mídias colocava limites e definia especificidades. O computador e, por extensão, o celular, é uma maquina que permite representar qualquer mídia. O adolescente, deitado em sua cama, acessa notícias, tutoriais, filmes, games, livros e o que mais for, por meio de um mesmo objeto. Agora todas as mídias competem entre si.

Este é um fenômeno contemporâneo que tem alcance geral na sociedade: a desintermediação digital.

Por exemplo, a organização do cinema no século XX possuía muitas mediações que definiam um sistema de diferenças entre os seus vários agentes. Era um sistema hierárquico e vertical. De um lado, um cinema de arte, mantido pela burocracia estatal, com seus festivais, escolas, crítica especializada, um circuito próprio e um público com alto capital cultural. E, de outro, a burocracia corporativa da grande mídia, o cinema de mercado, a televisão e um público com baixo capital cultural. Entre essas instâncias existiam vários vasos comunicantes. Os grandes estúdios realizavam produtos de qualidade, pois traziam prestígio, e muitos filmes “industriais” eram discutidos nas escolas e participavam de festivais. Mas era um mundo vertical, no qual -seja no circuito de arte, seja no comercial- poucos decidiam o que muitos iam assistir. Hoje, o quadro é outro.

As companhias de mídia não controlam mais a conversa, pelo menos não como fizeram no passado. Os grandes sucessos do passado eram (…) os beneficiários de opções limitadas. É claro que um filme será um sucesso se for o único filme exibido no sábado a noite. Do mesmo modo, quando as quatro redes dividiam entre si uma nação de 200 milhões, a vida era bem mais fácil para os executivos de televisão. Tudo isso mudou. As opções são muitas. Fãs de pequenos nichos podem agora encontrar novos conteúdos como nunca. Buscar em qualquer lugar notícias e entretenimento nunca foi tão fácil e barato. E a expectativa das pessoas em relação à mídia sofreu uma revolução. Não se contentam mais em ser uma audiência passiva, eles insistem em ser participantes, em criar seu próprio material e encontrar o que vão ler, ouvir e ver. (Murdoch, 2007)

O texto acima não é de um ativista digital, mas sim de um barão da mídia tradicional, Rupert Murdoch. Ocorreu uma horizontalização, ou seja, o consumo de cultura dissolveu todas as diferenças e não está mais organizado por um sistema vertical. Ninguém mais controla o consumo.

Há vários aspectos positivos gerados pela desintermediação digital: nunca foi tão fácil fazer um filme! Os custos de produção diminuíram e há menos barreiras de entrada. Produtores e diretores podem distribuir diretamente seus filmes através das plataformas digitais. Performers e celebridades são escolhidos pelo público no Youtube e não mais por um executivo de televisão ou de uma gravadora. Com a proliferação de títulos e canais de distribuição, os resultados dos esforços artísticos tornaram-se ainda mais imprevisíveis. Isso é bom para a criatividade. O século XXI oferece uma paisagem variada, na qual é difícil se movimentar, mas com inegável energia e maiores oportunidades.

Também estamos nos dirigindo a um público global. Produtos de países secundários no fluxo mundial de imagens e sons ganham proeminência, como a serie espanhola La Casa de Papel (Pina, 2017) ou a brasileira 3% (Aguilera, 2016). O que não impede que o conteúdo local também se desenvolva. A mesma Netflix está produzindo para os mercados nacionais porque sabe que precisa de conteúdo para competir com as emissoras de televisão. A produção indiana e coreana faz sucesso em toda a Asia. E países como Japão e França conseguem manter seus mercados nacionais. A Cidade do México, Madri e Londres tornaram-se pólos de intensa produção. Há vários arranjos globais, regionais e nacionais, e uma explosão mundial de realização de conteúdos.

Mas há também vários problemas. Vivemos uma ditadura do gosto médio. Ao contrário das nossas expectativas, quando o público pode escolher, escolhe mais do mesmo. Nos primeiros ensaios de TV digital, esperava-se que fossem gravadas as séries de TV do horário nobre, mas também outros tipos de programas dirigidos a nichos. No entanto, só se gravou o prime-time. Muito se falou da cauda longa (Anderson, 2006), mas essas expectativas se frustraram. O dinheiro de verdade está nos grandes sucessos. É uma economia onde “quem ganha leva tudo”, muito concentrada em poucos resultados (Elberse, 2013).

Para o bem ou para o mal, o traço que define melhor o momento que vivemos é a hipercompetição. O número de filmes lançados aumentou muito, como os gráficos abaixo demonstram para o Brasil e EUA.

Número de filmes lançados no Brasil 2001–2017 Fontes: Filme e Ancine. Gráfico do autor.
Número de filmes lançados nos cinemas americanos 1980–2016. Fonte: (Follows, 2017)

O número de séries originais nos EUA era 216, em 2010; hoje, são quase 500, com o streaming liderando a produção.

Número estimado de séries ficcionais originais. Fonte: (Clark).

A Netflix tem mais de 150 milhões de usuários globais e cresce em ritmo acelerado.

Número de usuários da Netflix. Fonte: (STATISTA). Gráfico do autor.

Um bilhão de horas são assistidas por dia no Youtube. No topo de tudo isso estão os videogames. São 250 milhões de jogadores de Fortnite. E hoje 660 milhões de pessoas assistem à transmissão de jogos de vídeo por canais como Twitch -mais do que aqueles que veem HBO, Netflix, ESPN e Hulu combinados! Como se não bastasse, nossa atenção também é disputada pelas redes sociais, pelo esporte, pelas atividades culturais, pela gastronomia, pela moda e pelas lojas.

É reveladora a clareza que os media moguls têm do jogo. Com a palavra, John Stanley, CEO da WarnerMedia, numa conferência para funcionários da HBO.

Vocês estão competindo com dispositivos que ficam nas mãos das pessoas e capturam a atenção deles a cada 15 minutos. A dinâmica das pessoas ficarem viciadas em determinados aplicativos não é muito diferente disso. Sabemos através de estudos que há endorfinas liberadas quando as pessoas recebem vibrações e “Likes” do Facebook, e se esse for o primeiro lugar que as pessoas verificam o que devem fazer no resto das suas vidas, o que elas devem consumir, o que elas querem fazer, isso não é bom para nenhum de nós nesta sala. E precisamos pensar (…) quantas horas por dia de engajamento estamos conseguindo? (Kafka, 2018)

E o audiovisual tem enorme poder de engajar o consumidor. Por isso a Amazon oferece gratuitamente conteúdo de vídeo para seus clientes Prime, e a Apple segue no mesmo caminho. Os serviços de telecomunicação adotam a mesma estratégia para diferenciar seus serviços. E as redes sócias também entraram nesse jogo. Ao final, são poucas as empresas, como Netflix ou Globo, que têm no entretenimento seu objetivo maior. É esse poder da imagem em movimento que explica sua predominância no tráfego da internet.

Trafego global de IP por categoria de aplicativo. Fonte: (CISCO).

Mas, apesar desse gigantesco crescimento da oferta e do reconhecimento do papel estratégico do audiovisual no mundo do consumo, nosso setor ainda é visto com desconfiança e insegurança. No próximo artigo vamos entender a raiz desse problema.

Referências

MURDOCH, R. Mixed Media, Traditional companies are feeling threatened. I say, bring on the changes. Forbes, 5 de maio de 2007. 179(10).

LA CASA DE PAPEL. Criador: Alex Pina. Madrid: Netflix, 2017.

3%. Criador: Pedro Aguilera. São Paulo: Netflix, 2016.

ANDERSON, C. The Long Tail : Why the Future of Business is Selling Less of More. New York: Hyperion, 2006.

ELBERSE, A. Blockbusters : Hit-Making, Risk-Taking, and the Big Business of Entertainment. New York: Henry Holt and Co., 2013.

FOLLOWS, S. How many films are released each year? 2017. Disponível em: https://stephenfollows.com/how-many-films-are-released-each-year/#comment-39537. Acesso em: 10 Setembro 2018.

CLARK, T. There was an all-time high of 495 scripted original TV shows in 2018, as Netflix and other streaming services surge. Disponível em: https://www.businessinsider.com/more-original-scripted-shows-on-netflix-streamers-than-cable-broadcast-tv-2018-12. Acesso em: 13 de agosto 2019.

STATISTA. Number of Netflix paying streaming subscribers worldwide from 3rd quarter 2011 to 2nd quarter 2019 (in millions). Disponível em: https://www.statista.com/statistics/250934/quarterly-number-of-netflix-streaming-subscribers-worldwide/. Acesso em: 13 de agosto 2019.

KAFKA, P. Here’s what HBO’s new boss really said about the company’s plans under AT&T. 9 julho de 2018. Disponível em: https://www.vox.com/2018/7/9/17551270/hbo-att-john-stankey-richard-plepler-transcript-facebook-amazon-netflix. Acesso em: 19 junho 2019.

CISCO. Cisco Visual Networking Index: Forecast and Trends, 2017–2022 White Paper. Disponível em: https://www.cisco.com/c/en/us/solutions/collateral/service-provider/visual-networking-index-vni/white-paper-c11-741490.html. Acesso em: 13 de agosto 2019.

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Roberto Moreira
O negócio do audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.