Um negócio extraordinário

Por que o cinema é uma atividade imprevisível, complexa, em que poucos ganham muito.

Roberto Moreira
O negócio do audiovisual
10 min readAug 25, 2019

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O senso comum considera a produção de filmes de sucesso uma tarefa simples e mecânica. Bastariam alguns ingredientes, como narrativa linear, protagonista heróico, final feliz, efeitos especiais, atores famosos e valores conservadores, para garantir um bom público. No entanto, os resultados da bilheteria demonstram como essas fórmulas são vazias. A performance de um filme é um fenômeno incerto. De Vany (De Vany, 2004) estudou matematicamente a dinâmica do mercado de cinema e chegou à conclusão de que não há como prever ou determinar o sucesso.

Todo filme é único. Se fosse possível encontrar a fórmula de um filme médio, as rendas da maioria dos filmes seriam semelhantes, com pequenas variações nos extremos, como acontece com a altura ou peso da população. Esse tipo de distribuição de resultados é chamado curva de Gauss e tem a forma de um sino.

No entanto, a bilheteria forma uma curva com um pico alto, uma queda abrupta e um cauda pesada. É uma distribuição repleta de pequenos eventos sem muita importância e na qual acontecimentos extraordinários são raros, mas poderosos. É só observar no gráfico abaixo a distância que separa os resultados do primeiro para o segundo colocado, do segundo para o terceiro, e assim or diante.

Como De Vany observa,

Não existe um filme típico e as médias não significam nada […] O negócio do cinema é completa e absolutamente não-Gaussiano, porque é um negócio do extraordinário. (2004. p.2)

Nele, poucos filmes capturam quase toda a renda e só é possível prever com algum grau de confiança o resultado de bilheteria da próxima semana a partir do resultado da semana anterior.

Para compreender esta dinâmica é preciso considerar o cinema como uma indústria da informação. O consumo de seus produtos pode variar nos extremos porque as variáveis informativas são essencialmente ilimitadas. Ou seja, o consumo de um produto informativo gera uma experiência que depois pode ser replicada ao infinito: ao comentar um filme, o espectador está partilhando informações, um bem intangível, sem que haja perda de valor. Ao contrário, ele tem um novo prazer ao comunicar sua experiência de ver o filme! Assim, a informação propaga-se sem custo, criando novos beneficiários e aumentando seu valor, seja a favor ou contra uma obra. Um filme, se cai no gosto do público, não tem limite para a sua bilheteria. Enquanto existirem pessoas interessadas em assistir o filme ele permanece em cartaz e a compra de um consumidor não inviabiliza uma nova compra.

Segundo De Vany:

O público não sabe do que gosta enquanto não o vê. Todo filme é uma descoberta e as audiências transmitem suas descobertas a outras pessoas em um dinâmico efeito em cadeia de informações.(De Vany, 2004. p.7)

Num primeiro momento, entre os espectadores predomina a imitação: eu vou ver porque todo mundo está indo ver. Por isso, uma informação fundamental para formar a decisão de consumo é a divulgação da bilheteria e do lugar do filme na escala dos mais vistos. Mas, num segundo momento, a apreciação do filme através do boca-a-boca forma um consenso entre os espectadores sobre a sua qualidade. O espectador que não gostou de um filme, que passou pela experiência de vê-lo e a julgou negativa, tem um enorme poder de convencimento. Por exemplo, se em um grupo há 4 pessoas que assistiram um filme e uma só manifesta descontentamento, aqueles que não viram o filme decidem evitá-lo. O boca-a-boca é o fator determinante do sucesso de um filme. Conforme os juízos sobre os filmes se propagam, poucos filmes mantêm sua bilheteria e todos os outros afundam. Assim, o resultado pode variar muito nos extremos:

  • Se o público gosta do filme, a onda positiva favorece a bilheteria.
  • Se o público não aprecia um filme, a onda negativa enterra a decisão de consumo dos futuros espectadores.

Por isso, não é possível prever a bilheteria total pela abertura, pois o consenso vai se formando conforme os espectadores trocam informações sobre a sua experiência.

A dinâmica dessas trocas, dessa enxurrada de informações, é não-linear, ou seja, pequenas diferenças crescem rapidamente a cada interação entre fãs, através de um processo de retroalimentação. É a metáfora do “efeito borboleta” usada para explicar de modo acessível a teoria do caos: um pequeno distúrbio tem ao final consequências extraordinárias. De Vany criou o “efeito pipoca”: uma leva de pipocas estragadas pode contaminar o juízo dos espectadores daquele cinema e ir contaminando de modo negativo toda a cascata de informações gerada pelo filme. Assim, um pequeno distúrbio tem consequências extraordinárias, para o bem ou para o mal.

Tecnicamente, esse fenômeno é descrito como alta sensibilidade às condições iniciais. No cinema, um número insuficiente de salas, um cartaz ruim ou um péssimo coadjuvante podem comprometer irremediavelmente o lançamento de um filme. A lógica por trás da estratégia de lançamento do blockbuster é justamente garantir um bom começo, de modo a minimizar o efeito do boca-a-boca. Mas a maioria desses filmes depois também naufraga. No máximo os estúdios conseguem garantir um piso de renda, mas não impor um sucesso.

As receitas dos filmes seguem uma dinâmica não-linear que bifurca em dois caminhos diferentes; um leva a vidas longas e altas receitas, e o outro, a vidas breves e baixa arrecadação. Bifurcações são uma assinatura do caos. (De Vany, 2004. p.2)

Dinâmica não-linear, alta sensibilidade frente às condições iniciais e resultados bifurcados caracterizam o consumo cinematográfico como complexo, imprevisível e caótico. O mercado se organizou de modo a se ajustar a essas características. Conforme a audiência sequencialmente descobre e revela seu juízo sobre o filme, a demanda varia dinamicamente e a oferta também tem que ser muito flexível nos seus arranjos para adaptar-se a essas variações.

Vamos ver como isso acontece. Assim que surge um sucesso, tudo deve ser dirigido para se adaptar às oportunidades que ele representa. Uma grande bilheteria é gerada por uma enxurrada de informação. Se a oferta conseguir acompanhar essa enxurrada, haverá salas de cinema à disposição para acolher o público do filme. Um fracasso também é uma torrente de informações, mas nesse caso a enxurrada mata o filme. Para garantir que seus cinemas não fiquem vazios, os exibidores retiram de cartaz os filmes que produziram uma onda negativa de informações. Como ninguém sabe o que faz um sucesso ou quando ele vai acontecer, tudo deve ser dirigido para se adaptar as oportunidades que ele representa. Um filme bem lançado vai adequando seu número de salas ao interesse dos espectadores. Se a avaliação for muito positiva, o circuito pode até se expandir. Mas, em geral, observa-se o contrário: após a abertura, trata-se de ir diminuindo o número de salas, sem prejuízo da média de espectadores por sala.

De Vany refere-se a “torneios de sobrevivência” para caracterizar a inserção do filme no mercado cinematográfico. Vale a pena reproduzir sua descrição.

Os filmes vivem e morrem nos torneios de bilheteria conforme são desafiados durante sua exibição por um elenco de novos competidores que evolui aleatoriamente. Os desafiantes são os filmes previamente lançados e os novos que estréiam. Os filmes em competição são ordenados hierarquicamente pelos frequentadores de cinema e aqueles no topo da lista sobrevivem, garantindo sua exibição na semana seguinte. Filmes com baixa classificação caem e são substituídos por novos desafiantes. (2004. p.12)

Esse torneio selvagem faz com que uns poucos sobreviventes abocanhem a maior parte da renda e exclui rapidamente os filmes de baixa performance. Como poucos filmes conquistam o público, trata-se de otimizar sua renda em detrimento de todos os outros.

O resultado desses torneios são poucos sucessos e muitos fracassos. 78% dos filmes perdem dinheiro e apenas 22% são lucrativos. A estatística mais dramática é a seguinte: apenas 6,3% dos filmes receberam 80% dos lucros totais de Hollywood na última década (De Vany, 2004. p.214). Ou seja, a concentração do resultado em poucos títulos não é uma distorção do mercado, mas sim sua característica. Por sinal, característica do mercado de entretenimento como um todo:

[…] para filmes, livros, discos, programas de televisão, brinquedos e jogos, espectadores de TV a cabo, visitas a um sítio de internet, salários de atores, e virtualmente qualquer outra coisa nesse campo, pelo menos 80% da receita total é geralmente derivado por muito menos do que 20% dos produtos ou serviços. (Vogel, 2010. p.41)

E essa distribuição é fractal: se criarmos subconjuntos mais especializados, a mesma situação se repetirá: poucos filmes de terror fazem grande sucesso, poucos filmes de arte conquistam prestígio, poucos filmes com vocação de blockbuster fazem milhões de espectadores.

Essa concentração de resultados só aumenta com o consumo digital de bens culturais. Chris Anderson, no seu tão comentado livro The Long Tail: Why the Future of Business is Selling Less of More (2006), afirmou que as estantes infinitas das plataformas virtuais criariam um gigantesco mercado de nichos. No entanto, sua profecia fracassou. Por exemplo, no caso dos álbuns musicais, 1% dos títulos responde por 80% das vendas, se é que se pode falar em alguma regra (Elberse, 2013). O mercado digital é ainda mais concentrado do que o tradicional.

Tamanha concentração é assustadora do ponto de vista do produtor. Mas é importante entender a sua origem. Nós estamos sempre nos relacionado com outras pessoas. A oportunidade de trocar opiniões e de partilhar experiências com outros indivíduos é muito valiosa e, para isso, precisamos todos assistir os mesmos filmes. Se você é cinéfilo, precisa ver o último filme premiado em Cannes ou ficará sem assunto com seus pares. O mesmo vale para todos os tipos de público. Aqueles filmes que ganham destaque na discussão -seja com amigos, seja pela mídia ou pela rede social- são valorizados positivamente, têm destaque, demandam nossa atenção. Ao contrário, aquele filme do qual pouco se sabe mergulha rapidamente no esquecimento.

Este quadro difícil não deixa de ter suas qualidades. A concentração em poucos títulos, que parece um mal, na verdade é o resultado de uma indústria em constante competição, onde não existem garantias de sucesso (Pokorny e Sedgwick, 2010). O cinema é uma indústria da inovação e da descoberta. O público descobre seu gosto a cada filme e os realizadores inovam oferecendo um leque diversificado de produtos que procuram antecipar uma tendência nova. Cada filme é uma startup. A maioria deles fracassa; porém, quando um filme abre um novo filão, o mercado é inundado de produtos que procuram seguir esse caminho, ao mesmo tempo sempre buscando se diferenciar. Quando ocorre uma saturação, surge um produto inusitado que instaura um novo ciclo.

Nesse contexto competitivo e fragmentado, de resultados tão incertos -onde “Ninguém sabe de nada” e “Todos os sucessos são acasos”- que estratégias permitem consolidar uma indústria?

Em 1986 foi publicado pela primeira vez o livro de Harold Vogel Entertainment industry economics: a guide for financial analysis, que desde então é o manual de referência para investimentos no setor do audiovisual. Seu tom é cético em relação às perspectivas de lucratividade apresentadas pelo cinema.

A existência de estúdios rentáveis e o aparente prejuízo de cada filme na média só podem ser reconciliados quando se entende que o coração do negócio dos estúdios são a distribuição e o financiamento e que, portanto, o prejuízo do marketing e o risco do custo de produção são muitas vezes desviados e/ou transferidos para investidores externos e produtores (algumas vezes abrigados por incentivos fiscais).(2010. p.135)

Vogel sugere que mais vale investir em ações dos estúdios do que se aventurar com os mecanismos de financiamento em filmes desenhados pelos bancos de investimento. Nisso está alinhado com De Vany: ninguém sabe de nada e, em última instância, o que Hollywood oferece em troca do dinheiro é apenas prestígio, status e fortes emoções. Por isso a ênfase em levantar financiamento através de OPM, ou seja, other people money.

Mas nem todos os economistas são tão céticos. Pokorny discorda e afirma que

Tratar os riscos associados com a produção de filmes como um jogo de um tiro só, no qual o risco e a receita dos filmes são analisados atomisticamente, vai contra a contribuição realizada pela teoria da empresa para o pensamento econômico. Nós preferimos reunir os filmes distribuídos pelos maiores estúdios americanos e tratar esses conjuntos como carteiras através das quais o risco é distribuído. Nós encontramos evidências fortes para suportar esse hipótese, o que significa que, apesar de arriscado, o ambiente de negócios da produção/distribuição de filmes não pode ser caracterizado como por uma incontrolável incerteza. (Pokorny, 2005. pgs. 277–278)

Através da análise dos resultados da majors americanas no período de 1988 a 1999, Pokorny demonstrou que a performance das companhias varia marcadamente de ano para ano, como seria de se esperar em um mercado tão volátil, e que o lucro depende de uma carteira diversificada de investimentos. Os bons resultados são determinados diretamente pela performance dos filmes de grande orçamento, mas, ao mesmo tempo, o estúdio precisa dos filmes de médio e baixo orçamento para assegurar sua lucratividade. É claro que o tamanho faz diferença — a dispersão do risco só pode acontecer no contexto de uma carteira relativamente grande. Não é surpresa, portanto, que Hollywood seja dominada por um pequeno número de grandes distribuidores que, por sua vez, são parte de grandes conglomerados integrados — os riscos envolvidos na produção de filmes unitários seria insustentável de outro modo (Pokorny, 2005).

De qualquer forma, o alto risco é a principal característica do negócio cinematográfico. Nos próximos artigos, vamos ver as estratégias que o cinema americano utilizou ao longo de sua história para enfrentar o imprevisível.

Referências

DE VANY, A. Hollywood Economics: How Extreme Uncertainty Shapes the Film Industry. Routledge, 2004.

VFIX365.US. Drawing A Normal Distribution Or T In Word Document Curve. Disponível em: http://vfix365.us/normal-distribution-curve.html/drawing-a-normal-distribution-or-t-in-word-document-curve. Acesso em: 23 de julho de 2018

VOGEL, H. L. Entertainment Industry Economics: A Guide for Financial Analysis. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.

ANDERSON, C. The Long Tail : Why the Future of Business is Selling Less of More. New York: Hyperion, 2006.

ELBERSE, ANITA. Blockbusters : Hit-Making, Risk-Taking, and the Big Business of Entertainment. New York: Henry Holt and Co., 2013.

POKORNY, M.; SEDGWICK, J. Profitability trends in Hollywood, 1929 to 1999: somebody must know something1. The Economic History Review, 2010. 63(1).

POKORNY, M. Hollywood and the Risk Environment of Movie Production in the 1990s. In: POKORNY, M.; SEDGWICK, J. An Economic History of Film. London; New York: Routledge, 2005.

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Roberto Moreira
O negócio do audiovisual

Diretor, roteirista e professor livre-docente da USP. Foi presidente do Siaesp, membro do Conselho Superior de Cinema e do Comitê Gestor do FSA.