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Vânia Soares
RESENHAS
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2 min readApr 18, 2020
Foto: Vânia Soares

Mural de fotos organizado por algoritmo, a testemunha de vidas isoladas. Vícios sendo postados para a exibição da alegria. Rostos ardentes de felicidade. Olhares brilhosos saltando de uma paisagem deslumbrante: montanhas ao fundo e cachoeiras atraentes pedindo para serem tocadas.

Casais estão expostos ao delírio. Imagens que parecem uma perfeita união, no íntimo, mostram rotinas acomodadas de discussões. Ela se tornou mãe e cuida das alianças como se fossem suas crias, vedando os olhos e recusando as falhas. Ele, tímido e carrasco, apenas resmunga e se afasta. Aos domingos, colocam as alianças, são elogiados e comungam, sem confessar os pecados. Na semana eles choram e bebem para se esquecerem.

Carlos e Bebel estampam a traição, convivendo com a cara dos amantes sem ciúmes e sem desconfiança. Logo, acomodaram-se tão cedo nas viagens longas e solitárias. Dormem no mesmo quarto, mas em camas separadas. Não, não tiveram filhos, apenas promessas.

Agora, as alianças estão sobre a mesa, em nome de um relacionamento por um fio. As brigas sempre oscilaram como os faróis do carro, já as mensagens de namoro se transformaram em mentiras e provocaram um brinde de lágrimas. Carlos e Bebel fizeram do casamento virgens com medo no leito de um assassino.

Está tudo preto e branco. Mãos sobre a mesa, olhares saltitantes e corações acelerados. Uma mistura de ansiedade e medo, esperando um do outro a primeira palavra: a palavra que ouviriam, mas não desejam escutar e, ao mesmo tempo, uma vontade de acabar com aquela situação de “casamento de fachada”, que não reconheciam existir. Esse era o medo de ambos, em consumar a separação; fazer dela de fato uma separação.

Carlos e Bebel estavam enxergando a emancipação: a boa liberdade de sorrir, apaziguando a tortura de discussões. Deixando de vez as alianças na primeira gaveta da mesa de cabeceira, não sendo mais obrigados a colocá-las. Sendo ele livre para uma nova mulher; e ela, para um novo homem.

Porém, temem a liberdade assim como um animal deixado em cativeiro por anos teme a vida na floresta. Não que a prisão seja boa, mas um receio de não saber mais o que é ser livre. Como se tivessem sido castrados e agora obrigados à procriação, sem armas de defesa, num impasse de insegurança, dependência e um pouco de paz.

Ela segura as mãos de Carlos, do mesmo modo que uma mãe toma as mãos de um bebê, e diz:

– Vá, dê o primeiro passo.

Ele, certo de seus pés fortes, solta suas mãos e caminha porta afora, sem olhar para trás, rastreando outra vida: de homem renovado sem dívidas.

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Vânia Soares
RESENHAS

Jornalista| Enquanto as palavras existirem, enquanto os olhos enxergarem, eu serei verbo e imagem.