Os moradores de Socorro

Reflexos do cotidiano.

Vânia Soares
RESENHAS
3 min readDec 30, 2018

--

Foto: Vânia Soares

Naquele povoado, as coisas acontecem e não acontecem, assim, ao mesmo tempo. Há pequenas bolhas de vidro dentro de uma universal, só é possível ouvi-las e enxergá-las, sem interferir no seu curso. Assistimos às gaivotas ensaiarem uma ciranda, em volta de uma cortina azul suave. Elas se unem, aproximando asas com asas, e giram em perfeito tautocronismo. Após, desprendem-se e mergulham no cerúleo profundo. Voltam à superfície, dois segundos depois, e repetem a coreografia.

Os galos vigiam e anunciam a chegada do sol, não por ansiarem a sua vinda, mas porque o tem como inimigo. Os encantos do astro deixaram os machos dos galinheiros temerosos por um possível golpe. Acreditam que, a qualquer momento, o vilão irá açambarcar o posto de comando e terminará de seduzir as penosas. Por isso, por volta das 4h50, gritam, assustados, com as primeiras faíscas do fogo. Das 5h30 até às 6h20, desembestam a berrar para o fulgor do visitante, desafiando-o a entrar numa luta corporal.

Os papudos não deixaram de competir entre eles, mas perceberam que, nas primeiras horas do dia, o adversário é outro: maior e mais vermelho que qualquer crista e barbela. As ameaças não assustam o gigante. O sol nasce e espalha sua luz até para quem não o tem como amigo. Os galos se tornam mais vistosos, suas penas ficam coloridas e enérgicas com o brilho do astro. Apesar de ajudá-los a enaltecer a beleza, perto do anoitecer, os briguentos se unem a latir, expulsando a luz e festejando mais uma guerra vencida.

As galinhas dos Wolfsburg não se incomodam com o sol, aliás, o aprecia, porque é ele quem as fazem enxergar. Mas odeiam Tom, um Dachshund de quatro meses, que viu nas penosas um entretenimento. Há algum tempo, elas pulam a cerca para ciscarem na nossa bolha. Temos deixado milho próximo aos arames. Quando vêm, Tom as coloca para correr e se diverte ao vê-las trepadas nas árvores. Os Wolfsburg nunca se fazem presentes, apenas sabemos que tomam banho por causa das roupas penduradas no varal.

Onde também não há muito vestígio de vida é no terreno a nossa frente. Está à venda há quase dois anos. São cerca de três mil metros quadrados de terra seca, barrenta, com pouco verde. Dizem que pertencia a uma família japonesa. Após a separação, um dos donos vendeu a égua, que vivia isolada na chácara, e queimou uma parte das terras. Por ódio? Vingança? Para apagar lembranças? Não sabemos. Mas aquele lado é triste, infértil e sem ar.

À noite, muitas estrelas são plantadas no céu, enquanto a lua nasce com a mesma força do brilho do sol. Os bichos noturnos aparecem para respirar e são os únicos falantes na escuridão. Os galos se ajeitam nos poleiros e programam o despertador. Repousam estufados, preparando-se para o próximo prélio.

--

--

Vânia Soares
RESENHAS

Jornalista| Enquanto as palavras existirem, enquanto os olhos enxergarem, eu serei verbo e imagem.