Liberté (2019): A Fantasia do Impossível
Em ‘O Filósofo Celerado’, ensaio que aborda a escrita do Marquês de Sade e a experiência Sadista a que esta aponta, Pierre Klossowski escreve:
“No contexto daquilo que na época se chama «libertinagem», nada é menos livre que o gesto do perverso. Pois que, se se entende por libertinagem a pura e simples propensão para a orgia, por destituída de escrúpulos que seja, o desejo do perverso jamais se satisfaz a não ser pelo gosto escrupuloso de um pormenor, pela procura escrupulosa de um pormenor, por um gesto que tende escrupolosamente para esse pormenor, e cuja preocupação escapa àqueles que se entregam ao desencadeamento de apetites frustes.”
Na antestreia do filme Liberté (que só chegou hoje às salas de cinema portuguesas, apesar de ter sido no passado ano que estreou em Cannes), Albert Serra contou que o título do filme não passa de uma mera provocação. Parafraseando o que o realizador disse na Cinemateca Portuguesa: “Se não fizeres isto [o que é mostrado ao longo do filme], então não és livre!”. Apesar de ser possível levar esta afirmação para outros caminhos e considerações (especialmente no contexto específico em que foi dita, em que o catalão recontava uma situação em que respondeu a uma senhora que, em tom rude, o questionou sobre o título “Liberdade”), ela prefigura também - e especialmente se recuperar-mos as palavras de Klossowski - uma das questões mais pertinentes que Liberté coloca:
Até que ponto o libertino, preso na sua fragilidade e pela sua obsessão, pode ser livre?
Se há algo que se retém da experiência de voyeurismo em que somos, como público, forçados a participar (participação essa fundamental para Serra), é que o libertino, pela sua perversidade, está longe de ser livre. Os gestos e pormenores “ideais” que aqueles homens e mulheres tanto procuram apenas podem ser exprimidos por palavras, as suas imagens apenas passíveis de serem formadas na mente do espectador. É por isso que os momentos mais grotescos, mais explícitos de Liberté acontecem sem nunca serem filmados - imaginamos, tal como o perverso, o gesto do desmembramento, o gesto da bestialidade, mas estes nunca se efectuam perante os nossos os olhos.
Regressando a Klossowski:
“Este primado do imaginário reside na representação do prazer, de onde se vê o impulso desdobrar-se na projecção da sua própria imagem: pela extensão do prazer a órgãos excluídos da função de propagação, portanto, pela inacção dos órgãos funcionais para fins de prazer inútil”
No debate que teve lugar após a exibição da sua longa-metragem, Albert Serra disse que um dos maiores temas do filme era o da frustração sexual. Ora, é então da mencionada imaginação de prazeres estranhos que tais sentimentos se fazem revelar. O libertino é perverso na medida que, no seu abandono da moral e das normas, repete incansavelmente tudo aquilo que lhe permita aproximar-se do prazer que este idealiza, não importando o quão brutais, repreensíveis ou em vão tais actos sejam.
É esta procura e repetição que observamos naquela noite que tem lugar numa floresta de eucaliptos. A carne em sangue não é razão para parar, mas para pedir mais; o pénis flácido insiste em continuar mesmo perante a sua própria impotência.
Talvez seja por isso que os corpos daqueles libertinos tenham tanto de animal. Tal como estes, movimentam-se e tocam-se por algo simples:
Querem sobreviver.