Chegada à Rosa na madrugada — Cena 4.2

Dia 28 de Outubro de 1969 — Capítulo 4 de A Rosa do Povo.

Câmara Obscura RPG
O Povo da Rosa
17 min readAug 6, 2021

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Importante: Os assuntos aqui abordados são referentes à campanha A Rosa do Povo, particularmente os capítulos 3 e 4. A leitura e recomendada após assistir as sessões, pois podem haver spoilers e referências diretas aos acontecimentos das mesmas.

A viagem de volta é tranquila. A cidade de São Paulo dorme em meio ao peso da principal sentinela da ditadura, o medo. O Chevette caramelo passa pelas ruas desertas do Bráz e chega à nova sede do jornal. Tudo está absolutamente escuro, já que as luzes públicas no local não perecem ter atenção alguma da prefeitura.

O portão do galpão é aberto e a mesma escuridão do lado de fora se extende para dentro. Aparentemente, só os três estão ali.

Vladimir ainda dentro do carro tira as botas e as amarra na alça da mochila. Os calçados são a única peça de roupa que ainda carregam alguma semelhança com as usadas nos últimos anos. Pisa descalço no chão de concreto do galpão vazio, o frio sob seus pés é um alivio. Se dirige até o quadro que ontem pendurou em um dos muitos pregos abandonados pelas paredes da nova casa da Rosa. Fala aos seus camaradas, mas sem tirar os olhos do sofrimento expresso na pintura.

— Foram só vocês dois na visita do MASP?

— Não camarada Vlad, eu não estava, no dia do MAPS fui com Gigi procurar fornecedores, se não me engano foi o menino das máquinas e o fotógrafo.

Geraldo sai do carro olhando o galpão com um misto de satisfação e preocupação.

Silvino, cansado da viagem e de toda a tensão dos dois últimos dias, estaciona o carro, dá uma boa talagada na garrafa de cachaça que fica sobre sua parte da mesa e em algo que lembra um cumprimento de boa noite, se deita com o rosto enfiado na almofada do sofá velho no canto do galpão e começa a roncar quase instantaneamente.

— Além do Silvino. — Disse Geraldo, vendo o companheiro praticamente desmaiar de cansaço.

Vlad se senta no chão, colocando a mochila atrás de si como apoio. Parece abandonar a rigidez militar da sua postura, olha para o quadro como um menino que vê palavras mas ainda não as sabe ler.

— E esses dois camaradas, confia neles?

— Eu só conheço o menino das máquinas, um camarada comprometido. O fotógrafo não conheço, mas Gigi gosta dele, nem sei como ele é pra dizer a verdade.

Geraldo começa a fazer café, um café forte e intenso, enquanto observa Vlad de longe, pensando na pergunta enquanto o cheiro de café fresco e quente invade o local. Vlad, inspirando profundamente o aroma, escorrega um pouco mais na mochila, quase deitando no chão.

— Lá, de quente, eles só bebem chá. De forte só vodka. Eu olhava todo samovar pensando em uma cafeteira. Até certo ponto nem álcool eu podia beber. Só quando fui mais para Mongólia que afrouxaram um pouco.

— E conseguiram algo de bom com fornecedores? Além do banco vamos ter que colocar ordem nisso aqui. Se quiser te ajudo a carregar os maquinários para dentro. — Rindo um pouco debochado, pensando no quão longe da Pravda estão.

— Não tivemos muita sorte, Gigi ficou de ver com outros contatos… Então o camarada esteve nas estepes dos khans? Eu adoraria ouvir sobre suas viagens. Mas agora venha, que café bom é café quente.

Geraldo observa o camarada de longe com olhos curiosos. Enquanto pega dois copos americanos e o açúcar e Vlad levanta, ajeitando as roupas no corpo, pegando o copo de café e se sentando ao lado de Geraldo.

— É um outro mundo, tanto pela terra quanto pelo povo, ver os homens que vivem nas costas de alces ainda me faz pensar se não estava delirando pelo frio.

Geraldo fica olhando na direção de Vlad, vendo o camarada tomar seu café sem açúcar, aproveitando o sabor de estar de volta à própria pátria.

— Deve ser uma imagem linda camarada, aurora boreal você chegou a ver? Eu viajei pouco. Quando meu avô morreu fomos enterra-lo em Mont Parnasse e visitar uns parentes no vale do Loire. Um dia eu gostaria de ver essa nossa América Latina, igual Che.

Vladimir apoia as costas na cadeira, olha para o alto buscando as memorias em sua própria mente) Na Sibéria, sinceramente acho que estava tão preocupado em não congelar os pés que não aproveitei o bastante.

— Eu não consigo nem fazer ideia do frio.

Enquanto conversam Geraldo vai até seu pedaço na bancada de usam de mesa, pega alguns papéis do gaveteiro e volta até Vladimir.

— Camarada, aqui está no que estávamos trabalhando, principalmente Veludo, antes de sumir. Esses homens são o comando de caça aos comunistas. Esses dois da direita se tem por codinome “Manho” e “Cinta”. O alto e careca é chamado de “Chefe”. Pelo pouco que sabemos a maioria não e militar, são policiais, agem por fora, bancados por empresários. No centro segurando a escopeta e o líder deles, codinome “Borba”

Vladimir volta de imediato do devaneio de seu tempo no gelo, assumindo rapidamente sua postura de oficial.

— Quanto contato direto tiveram com eles?

— No dia que fomos tentar ver o que houve com Veludo eu segui Malho e Cinta. Consegui pegar um pouco da conversa deles.

— Acha que te viram? Vladimir o olha preocupado.

— dificilmente camarada. — diz Geraldo,tentando tranquilizar Vladimir — tenho ouvidos bons e fiquei tempo suficiente pra ouvir o que precisava e continuar Meu rumo.

Vladimir ri discretamente e se levanta apoiando a mão no ombro de Geraldo.

— Ahhh professor, realmente, cada vez mais vejo futuro para nossa Pravda. O comitê central se fez de professores que eram bravos. — Faz uma breve pausa — ou loucos como você. Assim que possível temos que sair da muvuca da capital para te treinar um pouco, vai ser bom para a causa.

— Falando em treino, não sai da minha cabeça os camaradas Cubanos que sumiram, estamos precisando de mais gente preparada. Sabe como chegar no Didio? Precisamos de um contexto melhor que de porra ta acontecendo. Como eu disse, Essa historia dos freis, dos cubanos, não me sai da cabeça.

Vladimir passa a mão na têmpora esquerda, o assunto o parece afligir um pouco. Geraldo repara a inquietação do camarada e lhe olha de forma professoral e terna.

— Me diga Vlad, o que o aflige nas duas histórias? Compartilhe Meu caro, você não está mais em um armazém perdido e sujo em Murmansk, está em um armazém perdido e sujo em São Paulo. — Diz Geraldo, abrindo um sorriso acolhedor para o camarada.

— Cyka blyat! Vlad responde entre risos. — Até me passou o calor.

Vladimir pausa, olha ao chão sob seus pés, e volta a olhar seus camarada nos olhos. Em tom serio retorna a conversa.

— Não podemos dispensar uma movimentação internacional de Cuba, esses caras tomaram um pais inteiro com só um punhado de AK e meia dúzia de camponês de pé descalço no meio do mato. Ainda peitaram os Grigo. Precisamos deles.

O Barulho da porta de ferro interrompe a conversa dos dois camaradas.

Antônio não tinha dormido direito e o dia prometia ser o cão, principalmente depois da última semana. Resolveu descer mais cedo para a Rosa e ver como as coisas estavam andando, ter notícias, ver como seus companheiros estavam ou se precisavam de algo. Havia escutado as notícias sobre os freis e estava preocupado.

Entrou pela porta lateral do galpão de cigarro apagado entre os lábios. Do outro lado do galpão, viu Geraldo e outro homem à sua frente, claramente simpático, mas até então desconhecido. Cheiro de Café pensou. Quem sabe depois de um gole de café, as coisas poderiam desanuviar. Geraldo sabia fazer um ótimo café.

Se aproximou cumprimentando-os numa posição mais altiva do que aquela que havia entrado. Geraldo abre um sorriso e vai até o companheiro para abraçá-lo.

— Bom dia companheiro Geraldo. E, bom dia companheiro…?

— Boa noite companheiro, café? Geraldo pergunta enquanto o abraça.

Antônio abraça Geraldo com sorriso. Seu café? Quero sempre.

— Sim meu café, os camaradas aqui não sabem fazer café. Geraldo sorri — Deixa eu lhe apresentar o camarada Vlad. Vlad, Antônio. Antônio, Vlad.

Vladimir ao ver o recém chegado, apruma sua postura. Pensa em assumir um semblante mais sisudo, mas ri ao notar que a ausência de sapatos não combinaria muito nessa abordagem.

— Prazer camarada, sou Vladimir, acabei de voltar do Inverno, tô aqui a pedido de Gigi para ajudar com os problemas que tão rolando.

Antônio dá a mão para Vladimir, agora o olhando nos olhos.

— Prazer, Vladimir, sou o Antônio… Inverno?

Vlad, ainda olhando aos olhos de Antônio, ri amigavelmente, se é da pergunta ou de si próprio não fica claro.

— Lá para o leste camarada, frio danado. Espero que vocês nunca passem por isso.

Vladimir olha de Geraldo para os documentos e faz breve contato visual com sua própria mochila no chão do galpão. Antionio também olha para os papéis, que carregam a lembrança do dia confuso em que conheceu Gigi, de um tiro na cabeça de um X9 e que ajudou a botar fogo na antiga redação.

— Antônio, estava mostrando ao Vlad..imir os papéis que recuperamos da sede antiga, o trampo que o Veludo tava fazendo, olha só isso. — Geraldo aponta para as fotos e dossiês.

Nas mãos de Geraldo uma pasta de arquivo velho, mostra uma foto posada de sete homens com um grande rio às costas, um barco ao lado, caixas frias, varas e alguns peixes pendurados. Uma cena que mostrava uma pescaria que seria ordinária, não fossem os seus participantes o que o documento à qual a foto está presa chama de Comando de Caça à Comunistas.

O papel não tem autoria ou datação. Escrito apenas, com setas desenhadas em vermelho e apontando para cada um dos integrantes da foto, está o seguinte texto:

Comando de Caça à Comunistas

Nome: desconhecido
Codinome: Borba
branco, cabelo escuro, baixinho, boa pinta, com bigodinho

Nome: desconhecido
Codinome: Manho
preto de pele clara, estatura mediana, cabelo baixo, parrudo

Nome: desconhecido
Codinome: Cinta
pardo claro, alto, magro/atlético, branco dos olhos amarelado

Nome: desconhecido
Codinome: Chefe
branco, mais velho, careca, rosto comido de acne antiga

Nome: desconhecido
Codinome: Vela
branco, baixo, magro, com cicatriz na parte de trás da cabeça

Nome: desconhecido
Codinome: Lambari
preto claro, alto, forte mais pra gordo, levemente fanho

Nome: desconhecido
Codinome: Fumaça
branco, estatura mediana, marcas de queimadura nos braços)

Geraldo olha de relance para Vlad, estudando o “super espião”, olha para Antônio, que olha atônito para a fotografia e dá um suspiro, tentando sem sucesso aliviar a peso que de repente sentiu em suas costas.

— Então camaradas, eu acho que podemos partir daqui, tentar descobrir mais sobre esses malditos e quem dá dinheiro pra eles. O que você acha, Vladimir?

— Algum rosto lhe lembra alguém, Antonio?

Antônio pega a pasta e confere a foto olhando com cuidado os sete homens. Ele reconhece Borba imediatamente e é tragado por pensamentos sombrios e nefastos que o desligam do mundo, num torpor momentâneo. A vida é irônica e perspicaz, pensa consigo, ao olhar novamente a foto do milico… Conhecera Borba sem querer, numa tentativa patética de averiguar o informante na estação da Luz. Desde aquele dia o medo de ser levado para um porão escuro passou a assombrá-lo de forma mais real e direta. Antes também tinha medo, mas agora as coisas estavam mais palpáveis e mais presentes.

Energicamente o mundo volta, numa explosão de cores e sons. Ele observa Geraldo e Vlad, que também olham para os papéis e olha para Silvano no sofá, dormindo o sono dos justos. Sabia que tinha perdido um pouco a conversa e talvez até ignorado seus companheiros. Mas as lembranças são traiçoeiras.

Devolvendo a pasta para Geraldo, pega seu café e vai se sentar um pouco desnorteado.

— Reconheço o Borba, companheiro Geraldo. Foi pra ele que eu pedi fogo e tentei conversar na Luz. Certeza que esse filha da puta pode me reconhece se me ver.

Geraldo observa o camarada, coloca mais café no copo dele e vai até sua gaveta. Ele pega uma garrafa de cognac, um luxo de uma vida passada, coloca um trago em outro copo e o oferece a Antônio.

— Um pouco de coragem líquida as vezes vai bem companheiro. Nesse dia eu segui o Cinta e o manho, foi deles que ouvi que o Veludo estava no DOPS e que os parentes do menino não aguentaram cinco minutos.

Vladimir se aproxima de Antônio, já viu o olhar do medo em outros homens e o sabe reconhecer bem. O encara por um breve momento, como quem busca encontrá-lo dentro de si

— Vejo camarada que temos muito a conversar. Você é o tal fotógrafo?

Antônio pega o copo agradecendo e olha para Geraldo. Sua sobriedade e força. Olha também para Vladimir e, mesmo sem conhecê-lo, vie que talvez detenha igual força. Antônio sente alguma vergonha por ter sido tomado e demonstrado tanto medo. Ele levanta os olhos e olha para Vladimir.

— Obrigado companheiro! Não sou bem fotógrafo, mas entendo um pouco. Nada comparado ao moleque que Gigi recrutou esses dias, o que foi com Silvino e Cristovão no MAPS. Mas aprendi alguma coisa de fotografia.

Como que de sopetão, Silvino se contorce no sofá. Seu breve repouso interrompido por uma lembrança, uma que particularmente não gostaria de guardar. Sua recente visita ao MASP lhe deixou marcas ainda visíveis.

Reviver aquela experiência afasta qualquer possibilidade de sono. Ele cai com joelhos e mãos ao chão, e busca ar como um asmático. Lentamente se recobrando.

— Bem, então nada sei sobre você. Temos mais ainda o que… Tudo bem aí camarada?. — Vlad se sobressalta com o despertar assustado de Silvino, vai prontamente em sua direção.

— Uma memória ruim que custará a passar… — Silvino olha ao redor do ambiente, buscando o calor humano de seus camaradas. A única coisa que pode afastar o que lhe assombra.

Silvino vem tomar café homem, precisa de remédio? — diz Geraldo, servindo um novo copo.

— Desculpem-me meus amigos, logo vou me recompor… — Silvino olha de relance para o quadro, e em seguida para sua garrafa de cachaça. Ele vai até a sua mesa e verte um generoso gole. — Todos sem sono?

Antônio olha para Silvino espantado com sua prontidão e aproxima-se de seu companheiro colocando uma mão em seu ombro.

— Eu não consegui dormir direito desde ontem e resolvi vir pra cá vê-los. Silvino, eu abandonei a medicina, mas o pouco tempo que cursei deu pra aprender alguma coisa e até conseguir uns contatos. Se quiser eu posso conseguir remédios mais fortes.

— Por hora, basta um dedo de prosa com meus camaradas. O que discutiam?

Geraldo apesar de mais novo que Silvino, olha para o camarada com o mesmo afeto professsoral que dispendera à Vlad e uma imensa admiração.

— Vem cá Silvino, estava mostrando aos camaradas a papelada que recuperamos do nosso antigo aparelho. Dê uma olhada camarada.

— Já tiraram algumas conclusões do que temos aqui, o que realmente temos em mãos? — Perguntou Silvino segurando os documentos em uma mão enquanto pegava o café de Geraldo com a outra, na esperança de espantar um pouco os maus agouros.

Vlad nota o olhar de Silvino ao quadro mas opta por ignorar o Mundo do Óleo por um momento, o mundo material está parecendo um problema já bem grande por si só.

— Falávamos que precisamos entender melhor o que tá pegando. Fora isso, sabemos que Antônio pode ser reconhecido por um desses da foto. — Disse Vladimir. Geraldo complementou em seguida — sim, o líder deles, esse no centro da foto. Como disse Vladimir, sabemos Muito pouco, mas definitivamente foram eles que pegaram o Veludo.

Sem tirar os olhos dos documentos, Silvino responde. — Nossa ida a estação, apesar de todos os riscos, era necessária, porque até então não sabíamos o quanto nossa célula estava comprometida. E o fato de que o incêndio de nossa antiga sede tenha sido “editado” pela imprensa, ainda me deixa com ressalvas. Destruímos todo o arquivo? e se não, o que os milicos conseguiram se apropriar?

— Foi extremamente necessária, até mesmo para sabermos que podíamos confiar em Gigi. Replica Geraldo. — E não me preocuparia com essa última dúvida. Eu consegui queimar tudo que poderia ligar os envolvidos no Rosa, fiz questão de fazer isso.

Vladimir sorri ao ouvir do incêndio.

— Bom, esse não é mais o momento de sermos temerários. Precisamos todos ser um pouco como o camarada Vlad aqui. — Silvino olha para o companheiro com um sorriso efusivo. — e sermos homens de ação. Independente de conjunturas, temos uma meta!

— Concordo com você meu amigo, até porque estamos no fio da navalha, não adianta ter medo. — Geraldo olha nos olhos dos companheiros com calma, um a um, como se gravasse seus rostos. Por fim volta o olhar para Vladimir. Vamos precisar de armamento, munição… onde podemos conseguir camarada?

Vladimir se apruma, sente a responsabilidade que tem agora com seus camaradas, todos contando com ele.

— Sabem como chegarmos no Gigi? Tô sem o contando dele daqui ainda. Precisamos entender essa merda dos freis infelizmente… se eles tão com o movimento temos que resolver essa bagunça, eles tão com Beto e Vilminha também, precisamos de todos para levar um banco. Sem contar que Gigi deve saber dos cubanos e ter um homem de armas, ou no mínimo a pista de um.

Ele se aproxima da mesa onde Roberto deixou os balanços financeiros, dá duas batidinhas em sua capa e adiciona. — E arma custa grana, vamos dar uma engordada no problema financeiro, Beto vai espernear um pouco imagino.

Geraldo coloca a mão no ombro de Vladimir e dá dois tapinhas, com uma voz mais tranquila. — Por enquanto não podemos esperar muito de Gigi, ele tem outras questões ao que parece o beto vai ficar feliz quando ver dinheiro, parece judeu. — Ele abre um sorriso mais para si memso que para os outros e coloca mais um pouco de café no copo de Vladimir e Antônio.

— Não queremos muito, só uns contatos e saber por que fez o pobre Beto largar o trabalho às pressas para costurar frei com a Vilma. Fala Vladimir sorrindo para seu café.

— Enquanto isso, temos um outro objetivo, mais imediato. Silvino pensa em tudo aquilo que ele e seus companheiros conseguiram em sua breve viajem à Santos. — Preciso juntar tudo o que temos em um dossiê, que, para ter o impacto que precisamos, precisa ser ‘vazado’ o quanto antes, e pras pessoas certas.

— Você conhece essas pessoas? Ainda tem amigos nas redações? — Perguntou Geraldo.

— Amigos ou desafetos, a informação por si é uma bomba nas operações dos piratas do porto. Qualquer um dos dois vai querer. Mas essa informação precisar rodar, e rápido. — Responde Silvino.

— Concordo. — Diz Geraldo — Eu acho que temos até uma possibilidade a mais, algo que Silvino tinha falado, temos que fazer esses merdas correrem atrás do próprio rabo. Talvez o verdadeiro potencial seja, na verdade, quando isso bater nos milicos da censura e espalhar entre eles.

— Se rodar entre os milico e a imprensa, esse merda roda. Fala Vladimir — Vão ter que tirar ele de cena mesmo se não vier a tona para o povo. Mas duvido muito que ninguém queira soltar a manchete. Vão abafar o envolvimento do estado, claro. Falar do crime, de bandidagem e essas merdas que eles curtem inventar para limpar a barra deles.

— Podemos mandar como carta anônima. Acho mais seguro do que entregarmos as mãos de qualquer um. Até mesmo do Libanês. Continua Vladimir. — Temos os contatos de suborno… gente que tá sempre querendo mais. Podemos deixar com um deles, de forma anônima. Mas talvez mandar para gente envolvida conosco pode ser roubada. Tenho medo desses mão molhada aí saberem que veio daqui essa merda e quererem mais água. Acho que dos dessa lista só arriscaria o Libanês mesmo. E mesmo nesse cara já tô com os dois pés atrás. Eu mandaria para todos os jornais da capital logo, mesmo os cara querendo ficar bem com os milico ninguém vai aguentar não soltar a machete “Os Piratas do Porto de Santos”.

— Até eles cuidarem de limpar a merda, a gente pode tirar a atenção de outras coisas, ganhar tempo pra gente que precisa. Quanto mais confusão entre eles, melhor. — Diz Silvino, pensativo.

— Exatamente camarada! — Exclama Geraldo — Deixa esses malditos correrem atrás deles mesmos. Quanto mais desinformação melhor.

— Sei que vocês são os homens das letras. Mas se dão espaço a um homem de armas opinar, diria para colocar as informações em um formato que pareçam trocas de mensagem interceptadas. Dar a impressão de estar rolando uma guerra de gangues entre piratas. Sensacionalista na medida. — Vladimir sorri acanhado, sabe que está se aventurando na opinião.

Geraldo pondera um pouco e sorri. — Olha só, nosso homem do inverno que se diz afastado das letras trouxe uma excelente solução. Você é sempre essa caixa de surpresas camarada?

— Exatamente camarada! — Exclama Silvino, olhando para Vladimir.

O sorriso acanhado de Vladrmir se abre aliviado, estava realmente preocupado se sua ideia soaria estúpida aos ouvidos dos camaradas. Ele se sente mais leve por estarem rumando a boas soluções para os problemas da Rosa.

— Ah Geraldo, assim até me acanho! Mas aprendi uma coisa ou outra sobre interceptação militar, e que a mídia adora isso, é sabido.

— A pena, quando empregada do jeito certo camarada Vlad, é tão mortal quanto a espada… — Diz Silvino, triunfante.

— Camarada Lenin assina em baixo, Silvino! No final sem as palavras não temos ninguém para segurar espadas, ou fuzis, fica aberto para a escolha!

— Bem camaradas, tenho à minha frente meu campo de batalha. Hora de lutar!

Silvino se volta para sua mesa. Seu objetivo claro. Sentindo-se agora energizado e focado, ele sabe o que precisa ser feito. A lembrança de seu pesadelo agora jaz no passado, e uma melodia vem em sua cabeça
“Alegria era o que faltava em mim. Uma esperança vaga eu já encontrei…”

Geraldo olha satisfeito para seu camarada, já absorto em suas tarefas.

— Boa luta camarada! — Ele torna a olhar pra Vlad e sorri de maneira displicente — Essa sua humildade quase me engana camarada. Bem, precisamos de algumas coisas para ter alguma normalidade aqui, que acha de comprar comida e e umas coisas pra limpar esse lugar.

A trivialidade das funções diverte Vlad.

— Vamos camarada, a muito não vejo a cara do Mercado Municipal, tenho saudades. Nem só de café vive o homem, por melhor que ele seja. — Ele ergue seu copo antes de tomar o pouco que ainda se encontra no fundo, enunciando o elogio velado.

— E limpar esse galpão parece uma boa ideia, deixar com uma cara mais habitável. Pelo menos já temos decoração. — Continua ele, debochado, fazendo menção com as sobrancelhas em direção ao quadro.

Geraldo assente com a cabeça e sorri — Precisamos realmente do Mercado municipal. As vezes as coisas triviais são as que nos mantém sãos, pode parecer bobeira, mas se você comer uma boa sopa de cebola com um belo pão, a vida parecerá melhor.

— É, eu tendo a esquecer as pequenas coisas, camarada. Acho que de algum modo é a parte que ninguém fala e que tá envolvida no treino. Acho que vai ser de fato bom tomar essa sopa.

Após uma pausa longa averiguando os pensamentos, Vladimir retorna a fala, um tom de autopiedade que não havia sido ouvido até o momento agora se esconde por entre as palavras.

— Lutamos para viver bem, seria o cúmulo vencer e por conta dos anos de batalha não saber faze-lo mais.

Geraldo olha com ternura para seu camarada, lhe estendendo um olhar de cuidado, como se por um segundo Vladmir tivesse de transformado nos seus alunos do colégio israelita ou da escola estadual Barão de Limeira.

— Por isso precisamos ter esses pequenos momentos. Por mais efêmeros que sejam, eles nos lembram que vale a pena lutar e, caso um de vocês esqueça de como viver bem — ele olha de relance pra Vladimir e todos os camaradas na Rosa — eu sempre posso ensina-los o prazer de uma boa mesa e uma boa conversa.

Saindo em busca de mantimentos para tornar o galpão vazio em uma redação, e talvez uma redação em uma casa, Vladimir e Geraldo manobram o Chevette caramelo de Vilminha pela rampa de saída enquanto veem Silvino, como um artista que se prepara para iniciar uma obra, que começa a separar pedaços de papel velho, juntar máquinas de escrever, pincéis, tinta e uma série de outros objetos que ocupam um espaço que serviria para 3 ou 4 pessoas na bancada.

Vladimir, Geraldo (acima), Silvino e Antônio (abaixo) em Outubro de 1969

Jogadores:

Vladimir — interpretado por Lys Limon
Geraldo — interpretado por Diogo Mariano
Silvino — interpretado por Jáder Tófoli
Antônio — interpretado por Gustavo Prado

A Rosa do Povo é um jogo de RPG que se passa em torno da redação de um jornal revolucionário, A Rosa do Povo, durante os Anos de Chumbo da ditadura brasileira e é exclusivo para os apoiadores da Câmara Obscura RPG.

O Povo da Rosa são os jogos de textos que acontecem em paralelo às sessões de jogo que são stremadas em nosso canal na Twitch. Todas elas podem ser encontradas em nosso YouTube, devidamente editadas para melhor experiência. Nos siga no Twitter para saber de nossa agenda de jogos e outras iniciativas.

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