Visita ao mercado municipal — Cena 4.3

Dia 28 de Outubro de 1969 — Capítulo 4 de A Rosa do Povo.

Câmara Obscura RPG
O Povo da Rosa
7 min readAug 6, 2021

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Importante: Os assuntos aqui abordados são referentes à campanha A Rosa do Povo, particularmente os capítulos 3 e 4. A leitura e recomendada após assistir as sessões, pois podem haver spoilers e referências diretas aos acontecimentos das mesmas.

O carro não anda mais do que 10 minutos na São Paulo que amanhece.
A escuridão ainda toma o céu, mas uma faixa de azul ao leste indica que logo a noite sucumbirá a um novo dia.

A chegada ao mercado imprime um contraste inegável. De um galpão vazio na antiga zona industrial do centro para um caos urbano de transeuntes, caixas, caminhões, faixas de pedestre e pedintes. Da clandestinidade para o espaço público. Do revolucionário para a aparência de cidadão comum…

Geraldo vai manobrando o carro no estacionamento Três Irmãos, próximo à rua da Cantareira e vai observando aquela miríade de cores, credos e gentes.

— Então Vladmir, ha quanto tempo você não vem ao municipal? Como eram os mercados lá?

Vlad passa a mão nos cabelos, parece se esforçar para lembrar.

— Olha… Deve ter mais de 6 anos já. Quando era moleque vinha bastante aqui para ajudar minha velha nas coisas da família, mas vim cada vez menos. Acho que só da para valorizar essas coisas quando paramos de ter. — esboça um leve sorriso — Sinto falta das frutas. A galera pensa que lá tudo é muito diferente, mas na realidade as diferenças estão nos detalhes e isso que fode a gente. Imagina entrar no mercadão, tudo é quase como deveria ser mas você não poder sentir o cheiro da banca de fruta.

Tamborilando os dedos no volante e terminando de estacionar o caramelo, Geraldo dá um leve sorriso.

— Eu imagino meu amigo, uma coisa que aprendi foi que o Brasil da uma saudade imensa quando você tá longe, aquele cheiro de manga madura sabe… — após terminar de estacionar, Geraldo olha de forma decidida pro horizonte — Então tá decidido, Vladmir. Vamos comprar umas frutas, E vou preparar pra vocês algo que eu duvido você tenha comido naquelas bandas, um pudim de leite, camarada. Vamos te reintroduzir ao sabor do Brasil.

Vladimir desce do carro e alonga um pouco, ter cochilado desajeitado no fim da subida da serra deixou o pescoço pegando. Olha ao redor apreciando o local por um momento. O vai e vem de pessoas que sempre tumultua as ruas do centro, os muitos ouvidos ao redor atestam a necessidade de se ater a conversas mundanas.

— Que falta faz uma lata de leite condensado não? Você costuma fazer com ou sem furinhos? Já to animado para comer junto do teu café. Ele espera Geraldo trancar o carro para começarem a seguir em direção a entrada principal E ai, o que costuma fazer quando não estamos na firma? — Vladimir sorri, se divertindo com o eufemismo que usa a se referir ao trabalho que exerce ao lado de seu camarada.

Geraldo da uma gargalhada pelo eufemismo, e vai andando sempre atento aos movimentos do centro

— Faço sem furinhos, demora mais tempo e pede mais paciência, mas todas as coisas boas demoram tempo ou pedem paciência. Normalmente eu gosto de tomar um bom vinho, ouvir música… — Geraldo da uma olhada rápida para o recém velho camarada — Espero que tu não de risadas, mas gosto de ir ao cinema ver os filmes do Mujica, sempre gostei de cinema de terror.

Vlad sorri. — Faz tempo que não vou ao cinema também. Antes de me transferirem para sede tinha acabado de sair o Á Meia-Noite, cheguei a assisti com uma amiga.

Ao entrarem no grande prédio do mercaco, Vladimir admira o teto alto, o vitral ao fundo e percebe que até a gritaria dos donos de banca o faziam falta.

— Vinho, música. Combina contigo. Vladimir se mede com o próprio olhar e ri O quão estereotipo você vai me achar se falar que jogo bola?

Geraldo também observa os vitrais e imagina o quanto de sonhos não passaram por aqueles mesmos corredores. Ele olha de solsaio para Vladimir enquanto acende um cigarro.

— Clichê nenhum, eu era nadador, e sempre gostei de ver futebol, apesar de confessar não ter o mínimo talento com a bola nos pés.

Gerado observa uma barraca de frutas e pede algumas jabuticabas e pergunta quando o vendedor se afasta. — Já comeu jabuticaba, Vladimir?

— Não, minha velha sempre teve resistência as comidas daqui.

Vladimir olha as frutas e sente alivio ao ver a variedade. Os figos inevitavelmente os lembram de sua mãe. Roubar um rufioli antes da cantina abrir sempre valia as chineladas.

— Qual teu time? — Pergunta para Geraldo.

Percebendo o olhar de Vladimir, Geraldo fala para o vendedor. — Coloca meia dúzia de figo aí meu consagrado. — Ele torna o olhar Vlad — Pra desgosto da minha família e, ultimamente, minha tristeza, sou corintiano. — Abre um leve sorriso — E você ?

Vladimir passa a mão no rosto apertando os lábios levemente e respira fundo. Ele ri discreto pensando nas peças que o destino prega.

— Como todo bom carcamano sou periquito. Sonho do meu velho é que eu jogasse no time. Quando Julinho voltou da Itália ele não parava de me encher com esse papo: “Imagina o orgulho que ia dar para nosso povo” Fala imitando o sotaque carregado do pai, que não vê a muito tempo. Então apoia a mão no ombro do camarada como quem mostra solidariedade Mas sinto que podemos nos recuperar dessa diferença entre nósdiferente do teu time no último Campeonato Paulista. — Diz ele após uma breve pausa enquanto abre um largo sorriso.

Geraldo dá um sorriso como há um bom tempo não dava, lembrando até de outra época. — Minha família e toda palestrina, eu que acabei desgarrando do grupo. Ele dá um tapa na mão de Vlad como se fossem dois amigos de longa data se sacenando depois de um dia de trabalho. Dá uma piscadela para ele e diz Se até franceses e alemães podem se dar bem, por que não um palestrino e um popular? E não me faças chorar ao lembrar da seca corintiana.

— Ahhh, mudou de lado então só pra deixa o teu velho desgostoso, tô entendendo agora. Vlad ri alto como não se permitia há algum tempo. Por mais que tenha feito camaradas na URSS, nada se compara a um bom e velho papo de conterrâneos, afinal, nós sabemos pelo que sofremos e pelo quê vibramos. Ele pega as sacolas do vendedor — Como ta nossa lista? falta alguma banca?

— Acho que temos tudo, frango, carne, cachaça, legumes, verduras, ovos, o leite e o leite condensado você já tinha pego nao? Outra coisa camarada, você é melhor assim, menos sisudo. Sem aquele ar de que tomou um soco no estômago — Geraldo fala com um sorriso e um leve tapinha no ombro do camarada. — Vamos encontrar os outros?

Vlad engole seco olhando para os lados. Rápido, como um piscar de olho, a sombra que parece envelhece-lo alguns anos passa por sua feição. São nas pequenas coisas que vemos as diferenças de ter sido treinado, algo que pode parecer corriqueiro para seu camarada parece um abismo em seus ouvidos.

Rolagem de Sorte solicitada pelo mestre a Diogo, jogador de Geraldo, pela chance da fala "Camarada" surtir algum efeito negativo no meio das pessoas.
Dado: 1D100
Sorte atual do personagem: 50
Modificador de situação: +30
Sucesso:
80 ou menos
Resultado da rolagem: 13 (diminui sorte em 5)
Resultado final: Sucesso

— Aqui por essas bandas usamos “amigo”. Vlad fala de modo discreto aproveitando a proximidade de Geraldo.

— Vamos, vamos, vai ser um almoço e tanto! — Continua Vlad, com normalidade, falando à Geraldo como quem fala de uma data especial.

Geraldo rapidamente se adapta ao discurso.

— Vambora que a dona Irene vai ficar uma arara se atrasar as coisas! Vai dizer que vai demorar ainda mais pra sair a galinhada! E eu não quero a velha me azucrinando as ideias ouviu ? Espero que Laercio leve a cerveja gelada…

Geraldo aproveita para se aproximad de Vlad e dizer, bem baixo:

— Obrigado.

— Imagina, agradece por nada não! Eu que agradeço ter me convidado para o almoço que tua velha ta fazendo para o pessoal da contabilidade. É melhor irmos mesmo, já demos sorte de ter todos os ingredientes que Irene pediu.

As palavras deles parecem se perder meio o burburinhos de anúncios de promoções. Ao redor uma senhora discute o preço do bacalhau com o peixeiro, um casal ao fundo parece discutir a relação e todo o resto parece normal. A coisa mais suspeitaque Vlad vê, parece ser aquele moleque tentando roubar um saco de Dadinhos da banca de doce.

Para sorte deles, os ouvidos do mercado estavam fechados para o deslize de seu camarada.

— Vamos, vamos. Demos sorte de não ficar rodando aqui. — Diz Geraldo, já indo na direção do estacionamento onde tinham deixado caramelo. Após pagar o estacionamento e uma checada rápida nos arredores, ele oferece um cigarro a Vlad, enquanto acende um para si.

Vlad olha para os lados para ter certeza que não há ninguém por perto. Só então ele aceita o cigarro e, com um sorriso maroto no rosto, diz:

— Sbasiba, tovarishch.

Vladimir e Geraldo em Outubro de 1969

Jogadores:

Vladimir — interpretado por Lys Limon
Geraldo — interpretado por Diogo Mariano

A Rosa do Povo é um jogo de RPG que se passa em torno da redação de um jornal revolucionário, A Rosa do Povo, durante os Anos de Chumbo da ditadura brasileira e é exclusivo para os apoiadores da Câmara Obscura RPG.

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