O falsificador — Cena 4.4

Dia 28 de Outubro de 1969 — Capítulo 4 de A Rosa do Povo.

Câmara Obscura RPG
O Povo da Rosa
9 min readAug 6, 2021

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Importante: Os assuntos aqui abordados são referentes à campanha A Rosa do Povo, particularmente os capítulos 3 e 4 e também aos textos anteriores de O Povo da Rosa. A leitura e recomendada após assistir as sessões e ler as cenas anteriores, pois podem haver spoilers e referências diretas aos acontecimentos das mesmas.

Silvino estava em meio ao silêncio e isso lhe chamou a atenção por alguns instantes. Nos últimos meses têm estado constantemente cercado de pessoas e esse antigo companheiro já não o visitava há algum tempo. Mesmo os roncos baixos de Antônio, esparramado no sofá, não atrapalhavam. Estava sozinho e tinha um trabalho a fazer.

Reuniu todos os pedaços de papel que fariam sentido, não completamente diferentes, mas nenhum igual a outro, juntou as quatro máquinas de escrever com os registros mais diferentes e pegou a caixa de tintas, não eram muitas, mas teriam que dar. Pinceis, estiletes, lixas, dobradores, vincadores, furadores, mata borrão, adesivo, cola, rolo de prensa, um jogo de tipos móveis que por sorte tinha conseguido salvar do incêndio… tudo separado.

Agora, era só começar a obra!

Silvino observa atentamente o conteúdo que tem em mãos. Fica claro o que precisa ser feito para tornar esses recortes de informação em um documento crível por quem quer que o analise.

Para isso, ele vai se valer de habilidades que não se orgulha de ter.

Em meio a goles de sua cachaça e cantorias de boleros, Silvino espera a saída de alguns de seus camaradas, ou o sono desatento dos outros. “Agora realmente começa meu trabalho”, pensa afirmativamente.

Silvino já expressou a seus companheiros ser um sobrevivente, só nunca disse que tipo de coisas teve de fazer para se manter vivo. A memória de alguns anos atrás o toma de assalto. Um nordestino, tentando a sorte em São Paulo, “é onde rola a bufunfa, meu chapa”, costumava ouvir de seus conterrâneos e, num misto de incredulidade e falta de opções, foi em busca de sua sorte, mas por um bom tempo, o que ele teve foi apenas a falta dela.

Não se abateu com o primeiro não, nem com o segundo ou o terceiro, mas os seguintes fora cada vez mais minando suas esperanças. Foram muitos nãos. Com o pouco de dinheiro que tinha, a cada dia mais escasso, até seu bem estar ia se comprometendo aos poucos. Nos poucos lugares que aceitavam desempregados para dormir, pousadas maltrapilhas onde não existia conforto, apenas a desolação de estar entre outros como ele.

Logo o pouco dinheiro acabou, e as ruas foram seu único lugar de acolhimento, situação que perdurou por vários meses. Até um ponto de virada, que mudou sua forma de ver o mundo que o rodeava.

Em dado dia, uma pessoa, um trabalhador comum, deixou cair perto dele um crachá, onde podia se ler o nome de um Jornal local, que ficava perto dali — o Folha da Tarde — e logo abaixo escrito zelador. Havia outra foto ali, mas pensou ele, se ele conseguisse tirar com cuidado e colocar uma sua, também dando uma forma de colocar seu próprio nome ali, aquilo poderia funcionar.

No desespero que só a fome pode trazer, seguiu firme e seu plano. Juntou tudo que podia de suas esmolas, sem que o matasse de vez de fome, e foi aos poucos comprando o que precisava aqui e ali. Usou de todo seu conhecimento enquanto estudou na UFPB para elaborar um documento que parecesse crível, mesmo que de longe. “Foda-se se é uma falsificação, foda-se o que esse bando de esnobe pensa. Eu vou sobreviver, e vou conseguir realizar meus sonhos!”.

Havia riscos, mas ele não ligava. Seguiu com a execução de seu plano, que por algum tempo funcionou. Tomando cuidado para não dar na cara e se utilizando de sua lábia, Silvino conseguiu recursos e, mesmo que não sendo muito, dava para se manter. Quando o fato enfim veio a tona, ele já era conhecido por ser uma pessoa letrada, que já até ajudara jornalistas a editar suas matérias, o que, pelos pedidos dos próprios jornalistas, lhe rendeu a permanência naquele lugar, a contragosto do patrão. Depois de algum tempo, até seus companheiros o incentivavam para que ele seguisse na carreira por méritos próprios, o que era sempre prontamente negado por seu patrão. Silvino saiu dali para outros Jornais e apesar de sua experiência, não conseguiu ter a chance de desempenhar o bom Jornalismo, como ele mesmo pensava.

Ao menos até conhecer o Veludo…

“Chega Silvino, lembrança não enche barriga…muito menos começa uma revolução!”. Ele dá mais uma virada de seu copo de cachaça, foca no material a sua frente, e começa o trabalho.

Olhando tudo aquilo, pensa: “Acho que o que precisamos aqui é um pouco da boa e velha teatralidade”. Lhe vem a ideia de organizar tudo como a colagem de mensagens trocadas entre autoridades e receptadores no porto, uns codinomes para nossos personagens, mas trocando informações reais da maneira mais ‘na moita’ possível.

Ele faz recortes das mensagens trocadas, de maneira mais verossímil para a realidade do porto. O tempo em que passou de observação lá ajuda um pouco a questão de como eles poderiam se comunicar entre si.

"Agora, a cereja do bolo". Pensa enquanto anexa as informações das operações e do navio recém liberado, cuja valiosa carga já tinha interceptação programada.

"Bom, agora é fazer as informações rodarem. Hora de fazer alguns contatos."

Antônio dormia profundamente no sofá. Havia deixado seus companheiros conversando para tentar relaxar um pouco. As preocupações ainda lhe cercavam, mas, por algum motivo, aquela agitação da Rosa lhe aquecia a alma. Estava rodeado de pessoas fortes, que fariam de tudo pra resistir e lutar.

Aquele aconchego lhe fez cair em sono profundo e dormir tudo que não dormira na noite. Abandonara as maquinações do grupo pra entregar-se a um cansaço oculto. Por um momento sonhou com sua terra, que parecia abrigar o sol na poeira do gado, nos troncos retorcidos e na vegetação baixa do cerrado. Por um momento se viu cavalgando novamente com seu pai atrás de um bezerro desgarrado, entre tantos, ouvindo sobre os segredos da terra e do mercado de engorda.

Por um momento odiou estar ali.

Havia sido enviado para SP para ser doutor, para voltar sabido e dentro dos padrões. As lembranças da sua terra e do destino lhe feria e lhe irritava. Amava sua mãe e seus irmãos. Mas odiava o caminho que haviam traçado para ele. Antônio acordou transtornado, de cara amarrada. Aquele sonho, ou o pesadelo, carregado de amargura, o forçou a abandonar a sensação que lhe acometera antes de dormir. Sentou-se tentando entender o que estava acontecendo e viu Silvino, que trabalhava concentrado em sua mesa. O copo de café estava no chão, já frio e sem graça. Não havia mais ninguém. "Vlad e Geraldo devem ter saído", pensou.

Levantou e foi até a garrafa de café abastecer o copo com um fio morno e se aproximou sorvendo do café numa golada para ver o que Silvino estava fazendo.

— Companheiro Silvino, onde estão os demais? O que seria isso, companheiro?

Silvino percebe que talvez não tenha se contido em algumas etapas mais barulhentas de sua tarefa. — Espero não ter te acordado, camarada Antônio, como estás?

— Que nada. Eu que acordei de alegre. — Antônio Coloca a mão no ombro de Silvino e para por um momento olhando o galpão enquanto tenta espantar o sono, passando o dedo no olho — Estou bem, companheiro. Meio atordoado… Eu acho que desmaiei ali no sofá. Vou me mudar pra cá. Parece que consigo dormir muito melhor aqui. — ele sorri com a própria ideia — Mas me diga, Silvino. Estou por fora do que está acontecendo. O que é essa carta, ou obra de arte?

— Isso, meu amigo, é uma ‘carta-bomba’, metaforicamente falando é claro. O importante, é que vai explodir no colo dos milicos! Colocá-los correndo atrás do próprio rabo pra variar.

— Caralho, companheiro. Isso tem a ver com Santos, né?—Antônio observa bem a carta nas mãos de Silvino e por breves segundos imagina a carta explodindo na mão de um milico desavisado, manchando aqueles escritórios sisudos e cheio de arquivos de metal com pedaços de orgãos, sangue e pele, como se a carta de fato fosse uma bomba. Aquele escape imaginativo lhe coloca um sorriso no rosto. Silvino olha nos olhos de seu amigo e retribui o sorriso.

— Exato meu amigo, é justamente sobre Santos. Mais especificamente, sobre a merda que os corruptos de lá não querem que ninguém saiba, mas é uma situação que vai mudar imediatamente com a divulgação disso.

— Espero, com isso que temos em mãos, muito mais que causar o caos, mas principalmente ganhar tempo para a gente que está no front e precisa de algum respiro. — Silvino olha novamente para sua obra. “Será que foi assim que se sentiu o grande Da Vinci ao terminar sua Mona Lisa?” Pensa.

Antônio observa atento seu companheiro e com ele, admira afetuosamente a carta-bomba em forma de obra de arte. "Uma estética presa nas mãos de um artista nato", pensa consigo. Silvino sabia fazer tudo com esmero e cuidado. Suas habilidades eram sempre surpreendentes.

— Exato. Precisamos de respiro. Aqueles filhos da puta precisam dançar a nossa música. Antônio para por um momento e vê a jogada completa, e admira ainda mais seu companheiro. Se levanta, tira um cigarro e o ascende, um pouco agitado, tragando em seguida, e olhando para as mesas vazias e o galpão quieto — Você precisa que eu faça algo?

— Precisamos fazer com que essa informação chegue aos lugares certos. Conheço pessoas de outros jornais que trabalhei, que por mais que trabalhem em Jornais-Propaganda do Regime, são gente de bem tentando sobreviver numa situação de merda. Você conheceria outros?

Por um momento Antônio varre sua mente elencando contatos que possam de alguma forma ser úteis na empreitada. — Conheço algumas pessoas do meio médico e do cinema. Só não sei se seriam úteis de fato? O que acha?

Vamos esperar nossos amigos voltarem. Nossa próxima jogada deve ser uma jogada em grupo. Quero que eles vejam isso aqui também. — Silvino volta a olhar para a carta — Preciso da opinião deles sobre o foco dado ao documento.

Entendi, companheiro. — Responde Antônio, consentindo com a cabeça. Por mais que tenha ficado agitado com o plano, se segura, contendo-se num leve sorriso.

Como alguém que termina uma dura missão e não sabe bem o que fazer com o tempo livre que agora têm, Silvino olha para um violão solto num canto do armazém, e uma ideia lhe vem a mente.

Gosta de samba camarada? Em um período difícil de minha vinda pra cá, música foi umas das coisas que me nutriram. Nunca tive o tempo de aprender a tocar um violão apropriadamente, mas consigo arranhar um bocadinho. Vivemos em tempos de constante tensão, então a gente precisa agarrar com força os momentos onde podemos relaxar.

Silvino arrisca os primeiros acordes, e se deixa levar por uma canção…

“Chora, disfarça e chora
Aproveita a voz do lamento
Que já vem a aurora
A pessoa que tanto queria
Antes mesmo de raiar o dia
Deixou o ensaio por outra
Ó triste senhora…”

Adoro qualquer tipo de música. Principalmente aquelas que são tocadas ou cantadas exclusivamente com o peito.

Antônio se senta-se no sofá para ouvi-lo, sentindo cada nota e cada acorde executado. A música aos poucos o conduz para fora de si, numa espécie de hipnose. Quando percebe, esta rindo de bobo pela beleza da situação e da poesia de ter amigos em tempos difíceis.

Silvino e Antônio em Outubro de 1969

Jogadores:

Silvino — interpretado por Jáder Tófoli
Antônio — interpretado por Gustavo Prado

A Rosa do Povo é um jogo de RPG que se passa em torno da redação de um jornal revolucionário, A Rosa do Povo, durante os Anos de Chumbo da ditadura brasileira e é exclusivo para os apoiadores da Câmara Obscura RPG.

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