A subida da serra do mar — Cena 4.1

Dia 28 de Outubro de 1969 — Capítulo 4 de A Rosa do Povo.

Câmara Obscura RPG
O Povo da Rosa
11 min readAug 4, 2021

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Importante: Os assuntos aqui abordados são referentes à campanha A Rosa do Povo, particularmente os capítulos 3 e 4. A leitura e recomendada após assistir as sessões, pois podem haver spoilers e referências diretas aos acontecimentos das mesmas.

Enquanto subiam a Serra do Mar, deixando Santos para trás e voltando para São Paulo com o carro de Vilminha. Silvino ao volante, Vladimir ao seu lado e Geraldo no banco de trás do Chevette Caramelo.

Vladimir entra no passageiro, coloca a mochila para de baixo do banco. Desde antes da saída do Camarão Formoso parece inquieto, porem pensativo.

— Acho que podemos aproveitar a subida para me situarem melhor dentro da conjuntura do que ta pegando com vocês na Rosa.

Geraldo pega seus óculos da bolsa e vai colocando, não que ele precise mais dos mesmos, mas velhos hábitos, suspira fundo e mentalmente agradece a dona Irene, zeladora da Hebraica.

— O que você sabe? De quando você foi para a união soviética camarada Vlad?

A viagem ao porto de Santos, agora uma experiência a cada minuto mais distante, deixou uma impressão na mente de Silvino… a de que ele e seus companheiros, por maiores que sejam suas convicções, ainda não sabem qual a melhor maneira de desempenhar a ‘boa luta’ em nome da revolução. A certeza que fica, é de é necessário FOCO,e fazer o Rosa circular seja o foco que ele precisa. Se com um divulgar de informações conseguidas na viagem ele vislumbra uma cadeia de acontecimentos, o que aconteceria com tudo aquilo que o Rosa pudesse desbravar?

— Ah Geraldo, eu fui para lá tem tempo, Castelo Branco tinha acabado de dissolver os partidos… Ninguém sabia que em tão pouco tempo a porra ia piorar tanto, mas sabiam que ia precisar de gente treinada. Eu era moleque mas nem tanto, já tava na idade que ia aguentar passar pelo inverno inteiro. Voltei agora a pouco, to ainda dormindo mal pra caralho… Assim que cheguei o Didio ja me falou que a casa da caindo, que ta todo mundo correndo para o interior e que vcs tão fodidos de grana, ai falou do Beto e já saquei que vocês são mais dos livros. De resto to bem por fora.

Geraldo da um sorriso de leve, lembrando dos distantes anos de docência.

— Então, vc já ouviu falar do Marighella? A coisa deu uma desandada depois que o Marighella tomou a rádio nacional, debaixo do nariz do Fleury. Tivemos o Lamarca tambem, capitão do exército que veio pro nosso lado.

— O que acontece é que os frades, um pessoal da teologia marxista, começaram a ajudar a une. Organizaram um puta encontro em Ibiuna, veio liderança do Brasil todo. Eles ajudaram muita gente a sumir, também.

— Lembro de ter visto na televisão que eles eram subversivos. Eu sei que o pessoal da ALN considera eles. — O rosa e um sonho Vlad, um jornal de vanguarda, igual os jornais que Lenin circulou em São Petersburgo.

Geraldo ajeita seus óculos, da uma pigarreada.

— Imagina camarada, levar a voz do marxismo para cada irmão e irmã. Camponês, operário, doméstica. Cada irmão que hoje se encontra preso nas garras do capital imperialista.

Vlad passa a mão no rosto pressionando as têmporas.

— Sei que pra você um jornal pode ser uma babaquice pequeno burguesa, mas tem anos que a Folha e o Estadão publicam receita de bolo. A censura tá cada dia pior… porra Vlad, pegaram o Vlado. Mataram ele dentro do DOPS, e disseram que ele se suicidou, suicidio não é algo que judeus tem por hábito. Por sorte o Rabino Sobell peitou o Fleury.

— Cara, mas teologia marxista ta descendo bem por aqui? que porra de conceito é esse? Dogma cristão entrou na dança por que?

Eu não sei o que aconteceu com esses frades que a Vilminha tá consertando, mas tem uns padres que tão na trincheira. E eu não sou católico, mas olha ao seu redor. O Brasil e um país católico pra caralho, se os padres trouxerem o povo, melhor que deixar o povo com os milico. No manual da revolução russa, eles toraram a igreja ortodoxa, aqui meu amigo, se você for bater de frente com Nossa Senhora, tá assinando nossa sentença de morte.

Geraldo leva o cigarro à boca e da uma tragada longa e pensativa.

— Caralho, tamo fodido mesmo, desesperado pra caralho pra ta topando esses caras na nossa. Todo mundo sabe que esses caras subsidiaram opressão burguesa pra cacete, nem precisa ser professor para ver o estrago dessa galera.

Geraldo abre um sorriso maroto
— Fodidos nos estávamos antes da nacional, meu camarada, agora estamos fodidos e mal pagos.

Vlad ri de leve, como quem quer levantar um pouco seus próprios animos.
— E bem, voltando ao seu grande sonho… quer dizer que vocês são a Pravda tupiniquim? Se é o plano vamos ter que roubar não só esse banco, vamos ter que roubar muito banco. Ai ficamos mais bem pagos pelo menos…

Vlad ri mais profundamente mexendo um pouco com os pés na mala que esta embaixo do banco enquanto Geraldo solta uma gargalhada, que o ajuda a liberar um pouco da tensão do que se passou em Santos.

— Eu acho que ainda falta para ser a Pravda, mas eu concordo, precisamos roubar muito banco, comprar armamento, comprar insumo. Eu não sou tão idealista a ponto de achar que a luta vai ser ganha com papel e tinta.

— De fato camarada, não vai, infelizmente o povo não come papel ainda. Mas se rolou em 17 rola agora também, precisamos de arma, precisamos de organização e precisamos de greve. O que fode é que não temos liderança clara aqui, parece que a merda dos milico fizeram um ótimo trabalho em embolar o meio de campo. Mas acho que se entre nós rolar uma boa dinâmica já é algo para começar…

Vlad ainda parece um pouco inquieto, mas agora parece que pode ser apenas o calor abafado da parte baixa da serra. Ele aproveita o desconforto e corta a pergunta anterior um pouco seco:

— Como chegou no Didio? Ouvi uns papos que todo mundo por aqui ta dobrando o joelho, abrindo a boca… É serio isso?

Geraldo se ajeita no banco de trás, olhando para seus camaradas nos bancos da frente e tenta encontrar os olhos de Vlad pelo retrovisor.

— Então nós não chegamos no Gigi, mas no camarada dele, o Veludo. Eles dois decidiram partir pra ação de base. Veludo me recrutou para escrever sobre Marxismo e educação de massas, recrutou o Silvino e todos os outros.

— Olha Vlad, foi feia a coisa. O Fleury não é um milico, mas um policial maluco, dizem que o cara tortura por torturar, tem metalúrgica no abc que entregou todos os sindicalizados, tem gente que saiu para prestar esclarecimento e nunca mais apareceu. O DOPS e foda. Não é brincadeira. Sumiram com o Rubens Paiva, imagina o que não fizeram com operário que só queria brigar por salário?

— Perdi duas pessoas queridas que eram da faculdade de filosofia da USP. Uma delas tava tão machucada que foi enterrada em caixão fechado, sem a família poder abrir. A Márcia pelo menos pode ser enterrada. Teve muita gente que virou cachorro.

Ao sentir a tentativa de contato visual Vlad vira o corpo para o banco de trás, olhando nos olhos de Geraldo.

— Veludo é o cara que sumiu? Lembro de terem falado que é contato da bucha do Libanês. Saber como e por que ele sumiu é o passo um para não sumirmos pelo mesmo motivo. Esse é o problema Geraldo, não tem mais essa de só operário, só estudante de filosofia, ser da causa é ser soldado também, soldado do proletariado. Pode ser difícil de aceitar, mas não importa se vocês se veem assim ou não, por que eles veem, e vão agir como tal. Que nos vamos morrer é uma realidade quase clara, mas morrermos para a causa viver e renascer que é onde o bicho pega.

— Eu entendo claramente Vlad, o veludo foi entregue por um menino que ele tinha em alta conta. Era o moleque que tomava conta da sede do rosa, o Gigi percebeu e deu uma prensa no moleque, ele acabou falando que chegaram nele e na família. Entregou o Veludo, ia levar papelada pros milico e tentou vender eu, Silvino e mais dois camaradas.

Geraldo retribui o olhar por cima dos óculos.

Então meu caro, nos precisamos de gente igual você, porra! Eu não sei o que rolou em Santos pra ti, não me importo a ponto de te pressionar, mas você é importante pra causa

Vlad fala em tom mais serio do que tem usado até então, porem com calma e quase aceitação em seu olhar, mas sem quebrar por momento algum o contato visual.

Provavelmente vamos morrer de formas horríveis, em porões escuros, de violência ou pneumonia com fome e dores onde nem imaginávamos que dava para sentir, com sorte conseguimos dar um jeito de morrer antes deles decidirem. Mas o único jeito de não morrermos sozinhos, de morrermos sabendo que lutamos por muitos é não dobrar a porra da perna. Eu vou lidar com vocês pensando nisso, que você entende claramente e ta disposto a passar por isso, e que está certo que isso faz parte da sua luta tanto quanto escrever jornais e ensinar ao povo… Posso contar com isso?

Geraldo sem desviar o olhar, da um leve sorriso.

— Pode contar comigo camarada, viver como meu avô viveu, não é opção para mim. Prefiro morrer lutando por algo melhor pro povo, que ficar sorrindo e acenando igual uma miss.

Vlad sorri, se ajeita novamente no banco do passageiro.

— E ai, mataram o X-9 como? Só falta ele ta dando role ainda tendo todas as informações de vocês e ter rodado com o camarada veludo.

— Tiro na testa e fogo. Mas isso custou nosso aparelho, e era um aparelho bom, custou a prensa, um monte de dossiê que Veludo e Silvino faziam.

— É, mas bem, melhor do que custar a vida de todos vocês… E de fato, acho que pelo menos apontar a arma com o lado certo você já sabe. Já vi que é outro na Rosa que tem B.O. na família, oq ue pega com o velho do teu velho?

Vlad parece surpreso e satisfeito com a resposta que recebeu. Ri mais leve, nem parece alguém que a pouco ilustrava a morte de todos aqueles que vê como iguais, busca um cigarro no bolso da mochila, faz o gesto de oferecer um a Geraldo enquanto com a outra mão ascende o seu próprio.

Geraldo aceita o cigarro e se aproxima de Vlad para acender.

— Então meu avo era Franco judeu. Foi preso em Trebinka. Veio pro Brasil porque meu pai já vivia aqui… Eu sou da primeira geração nascida aqui.

— Tem fé ainda? Ouvi dizer que os seus costumam lidar diferente com essas coisas. Imagino que ele deve ter se fodido muito por lá. Muita gente me falou como ia ser duro o frio na URSS, mas esqueceram de dizer o quão duro era o povo. Acho ficaram assim de ter que lidar com tanto rei e nazista de merda.

Vlad já parece já mais confortável dentro do carro. O cheiro de tabaco lhe dava uma sensação que vence barreiras nacionais. Geraldo percebe o relaxamento de seu companheiro. Da uma risada e um tapinha em seu ombro.

— Pra ser sincero eu não o conheci meu avô direito. Meu pai dizia que algo ficou na Europa sabe, que se conhecêssemos ele antes, seria diferente. Minha fé foi bem abalada, quando comecei a me radicalizar, fui afastado da comunidade judaica. Então hoje eu tenho fé num local melhor pro povo e a fé de que vou morrer tentando.

— E você meu camarada? Tem alguma fe ? E como foi o leste ?

Vlad ri, traga e solta a fumaça ainda entre risos ao meio do tom de deboche

— A Camarada, boa noticia então, quem diria! Somos irmãos de fé!

Cessando então o deboche, fala em tom ainda divertido porém sério.

— A fé de morrer pela causa é a única que nos vale de algo.

Ele respira fundo como quem se esforça a lembrar de algo.

— As vezes me pergunto se lembro de como eu era antes do leste… No começo foi foda… Frio pra caralho, se eu tava acordado eu tava treinando se eu não tava treinando eu tava pensando se eu ia segurar a barra mesmo. Depois do primeiro ano, la pelo segundo melhorou, me acostumei, fiz missões mais a leste ainda, tudo é outro mundo lá camarada, se conseguirmos chegar perto do que eles tão fazendo eu morro satisfeito.

Dirigindo e calado todo trajeto, Silvino, ao escutar a conversa de seus camaradas, não para de pensar na ironia de que, pela primeira vez em sua vida, pessoas tão dispares, com origens diferentes, vivências diferentes, sentem na pele o que ele e seu povo já sentiam a muito tempo… o de ser oprimido em seu próprio país. Será que agora todos entenderiam sua luta, a luta do povo nordestino, que é a luta para sobreviver? “Não acredito em utopia”, pensa, mas se é possível gente tão diferente entre si como os companheiros que o acompanham nessa viagem entenderem que estão lutando pela mesma coisa, talvez o restante do país também o possa.

Ele esboça um leve sorriso, e uma canção vem em sua mente, a qual começa a canterolar…

— Ontem eu sonhei que estava em Moscou, Dançando pagode russo na boate Cossacou…

Vlad é pego de surpresa pela quebra de silêncio do Silvino. Já tem se acostumado com o mistério que cerca seu novo camarada, mas a música o pega desprevenido. Por um momento toda a neve que costuma embaçar suas memórias se derrete com aquela melodia, lembra dos tempos de moleque…De ver no bar da periferia, os carcamanos e os retirantes tirando um som, aproveitando a única felicidade que um trabalhador fodido pode ter nesse país. Estar ao lado de alguém que vê seu sofrimento e esquecerem disso juntos, mesmo que por um breve momento.

— É camaradas, tava com saudades de vocês.

Vlad vê a falta de clareza em sua última frase, atribui aos anos sem falar a própria língua e se corrige rindo.

— Vocês no caso, o meu povo brasileiro. Lá fora é bom mas é uma merda, aqui é uma merda mas é bom! Fazer o que né, não tem para onde correr, temos que resolver essa porra toda.

Geraldo cantarola a música tentando acompanhar Silvino.

— É camaradas, aqui e onde tá o que vale a pena, a luta do povo trabalhador, a luta da mãe pela comida do filho. Que bom ter vocês do meu lado.

Geraldo desvia o olhar de Vlad e Silvino e fica por uns minutos olhando a paisagem noturna.

— Cheguei a dizer que em um passado bem distante, já pratiquei tiro esportivo?

Vladimir, Geraldo e Silvino em Outubro de 1969

Jogadores:

Vladimir — interpretado por Lys Limon
Geraldo — interpretado por Diogo Mariano
Silvino — interpretado por Jáder Tófoli

A Rosa do Povo é um jogo de RPG que se passa em torno da redação de um jornal revolucionário, A Rosa do Povo, durante os Anos de Chumbo da ditadura brasileira e é exclusivo para os apoiadores da Câmara Obscura RPG.

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