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Crianças em Casa? Cuidado com o Homeschooling.

Qual Deve ser a Prioridade Para Pais e Professores Durante a Pandemia de Coronavírus

Published in
7 min readApr 13, 2020

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Que o sofrimento existe e termina são fatos óbvios, mas a ideia de que podemos escolher ser felizes em meio ao sofrimento é bem menos evidente.

-Susan Kaiser Greenland

Um modelo híbrido

Homeschooling significa, literalmente, “escolarização em casa”.

É comum nos Estados Unidos, quando a família assume a responsabilidade de educar a criança ao invés de enviá-la para a escola.

As famílias adotam um material didático específico, livros e apostilas que reproduzem o modus operandi das instituições de ensino tradicionais.

Características desse modus operandi são, por exemplo, o conhecimento dividido em matérias estanques, avaliações padronizadas e currículo centralizado (que não leva em conta diferenças individuais, sociais e culturais).

A característica mais marcante dessa estratégia de educação, porém, a escolarização — seja em casa, seja na escola, é o foco na memorização de conteúdos. A escola tradicional e o homeschooling são conteudistas.

Em meio à pandemia do novo coronavírus, muitas famílias se viram lançadas de repente em uma forma de homeschooling à distância, por meio de aulas online e plataformas digitais.

Um modelo híbrido de homeschooling, portanto. Que acontece em casa, mas conserva em parte os papéis da escola e dos professores. E normalmente tem a mãe na função de tutora.

O problema mais evidente dessa modalidade de escolarização nas circunstâncias atuais, ao contrário do homeschooling eletivo, é que ninguém escolheu nem teve tempo de se preparar para isso.

Nem a escola, nem os professores. Nem os pais, nem as crianças.

A resposta ao problema partiu de um lugar de pressa, da ânsia de manter as coisas funcionando não de um lugar de silêncio introspectivo, sensibilidade e cuidado.

Se a pandemia em si já cobra de nós a tarefa avassaladora de nos reorganizarmos em meio ao caos, essa forma apressada de lidar com o problema piora as coisas.

Gera uma sobrecarga de tensão desnecessária e dolorosa, para todos os envolvidos.

Me solidarizo com os professores. Tenho experiência tanto como educador de sala de aula, quanto com cursos online.

Sei que estão trabalhado o dobro ou o triplo, sem experiência prévia ou estrutura adequada. E com uma dose de cobrança exacerbada.

A eles e elas, meu reconhecimento e gratidão.

Neste texto, porém, escolho focar nas crianças e nos pais.

Nas crianças, porque são o elo mais frágil do sistema. E nos pais (sobretudo as mães) porque são sua principal — senão sua única fonte de cuidado no isolamento.

Antes da gente se descabelar para cumprir o calendário escolar, o que nas atuais circunstâncias me parece desumano, creio que precisamos parar, respirar e olhar para a criança.

Como a criança vive o que está acontecendo? A pandemia, a suspensão do cotidiano, o isolamento social?

Nossa posição como adultos

De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, as crianças e adolescentes são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

O que isso significa?

À parte as implicações jurídicas da definição do ECA, quero examinar os aspectos psicológicos e existenciais da condição peculiar das crianças e adolescentes.

Ao contrário de nós, adultos, a criança está em processo de constituição das estruturas internas que lhe permitem compreender o mundo, lidar com sentimentos e impulsos perturbadores, se inserir na cultura e atuar com autonomia entre outros seres humanos.

A criança precisa de ajuda, em vários níveis.

Por um longo período, é a mãe que vai atuar como ambiente facilitador para que a criança possa desdobrar a partir de si seu potencial inato para o crescimento e a realização.

O desenvolvimento saudável, porém, só terá lugar na medida em que o ambiente seja sensível às necessidade infantis. Necessidades cronicamente negligenciadas levam ao adoecimento da criança em sua possibilidade de Ser.

Reconhecer as necessidades existenciais da criança coloca a nós, adultos, em uma posição ética de acolhimento e cuidado.

É nossa responsabilidade acolher as novas gerações e sustentar um campo afetivo a partir do qual o humano possa emergir.

Contatos virtuais

Esse novo modelo de homeschooling, ainda que provisório, é pior que a escola tradicional sobretudo no que diz respeito à dimensão humana da corporeidade — a sede dos afetos, dos impulsos, da sensorialidade e do gesto criativo.

Se a escola submete os corpos à imobilidade das carteiras escolares e ao enrijecimento dos tempos e espaços da criança, o novo homeschooling ainda o faz imobilizando a criança diante de telas, de bits e bytes. O contato humano autêntico é suprimido em nome da virtualização das relações.

Trata-se da colonização do corpo e do imaginário pelo simulacro digital.

Um desafio à comunidade

A resposta precoce à crise por meio do homeschooling virtual contribui para a negação da realidade e das necessidades humanas também em outro sentido. É a aposta em um senso artificial de normalidade, quando um olhar atento revela que as coisas jamais serão como antes.

Com o avanço exponencial dos casos de infecção e de mortes, este é um momento sobretudo de luto e de reorganização interna, em que precisamos apoiar uns aos outros na dura tarefa de atravessar os rigores da quarentena elaborando sentimentos debilitantes de angústia, de incerteza, de fragilidade e desespero.

A ruptura da normalidade e a necessidade de elaboração devem ser reconhecidas e endereçadas, antes que possamos seguir em frente.

Ao mesmo tempo, em uma situação de emergência global, a instituição escolar possui uma função estratégica: a responsabilidade de se converter em referência em meio ao caos, se posicionando com clareza a respeito das diferentes narrativas e orientando não só os alunos, mas toda a comunidade escolar.

A escola, portanto, é chamada a atuar para além do foco em conteúdo.

A crise motivada pela pandemia não é um problema individual, nem familiar. É um problema comunitário. É à comunidade, portanto, que cabe a tarefa de co-criar respostas para a crise a partir de um lugar de cuidado com nossa humanidade compartilhada.

Com o suporte da comunidade engajada, ainda que conectada à distância, podemos encontrar maneiras de nos apoiar na travessia evitando quadros de depressão, crises agudas de pânico e ansiedade, sintomas psicossomáticos e desorganizações psicóticas, todos de difícil manejo em meio à pandemia.

Quadros que, no caso das crianças, podem constituir núcleos traumáticos que funcionarão como obstáculos ao desenvolvimento saudável e se estenderão muito para além da crise atual.

A oferta de um rosto humano

Em casa, já estamos sobrecarregados. Nossa prioridade como pais, neste momento, é assumirmos a vocação de egos-auxiliares de nossos filhos, acalentando-os, traduzindo a realidade de maneira empática, sem exagerá-la ou minimizá-la, aliviando as fantasias destrutivas e ajudando-os a lidar com sentimentos, pensamentos e comportamentos perturbadores.

Em outras palavras, precisamos entrar em contato com os sentimentos de angústia, raiva, incerteza e desespero que a pandemia mobiliza em cada um de nós, a fim de apoiar a criança no processo de experimentá-los por meio de um rosto, e não do isolamento em um espaço de solidão sem contorno humano.

Cabe a nós, pais, professores e comunidade, ajudar a criança na travessia de maneira que não experimente a crise global como queda no vazio.

É através de seu reflexo em outro rosto humano que a criança aprende a se reconhecer e se posicionar diante do mundo. O melhor que podemos fazer por elas, paradoxalmente, é cuidar de nós mesmos, por meio do crescimento não em intelecto e produtividade, mas em sabedoria, solidariedade e autocompaixão.

Porque é essa dimensão, do cuidado e da autocompaixão, que nos faz disponíveis.

Parte dessa tarefa exige que a gente se lembre constantemente de que, em meio a situações de exceção, não apenas as crianças, mas todos estamos aprendendo — a ser adulto, a ser pai e mãe, a ser educador e comunidade de aprendizagem. Todos estamos sujeitos a tropeços e descobertas.

O sentimento de culpa paralisa e incapacita. Vamos pegar leve.

Lado a lado

Também é possível encarar essa situação toda a partir de um outro ângulo. O momento atual representa um grande desafio, mas também uma grande oportunidade. Ou seja, podemos viver este momento não apenas como Terra Devastada, mas como Chamado a uma jornada interior.

A maior parte de nós vive a vida no piloto automático.

O vírus nos resgata do esquecimento e nos coloca diante das questões fundamentais da existência humana: nossa condição estrutural de desamparo, a interdependência, a finitude, a solidão essencial, a responsabilidade de tomar decisões, a angústia da liberdade, a busca por sentido e significado, o sofrimento incontornável, o anseio pelo sagrado e pela transcendência.

A crise global também nos coloca em comunidade com nossos antepassados. Ao contrário de nós, eles viveram tempos de grandes conflitos, de guerras, de pestes e pandemias mais graves do que esta, de privação e desespero.

O sofrimento nos reconecta com a linhagem ancestral que faz de cada um de nós quem somos.

Os tempos atuais exigem uma reinvenção tanto da Economia quanto do modelo atual de Educação, uma transformação que não seja um remendo, como o homeschooling virtual, mas algo estrutural. Um salto para um novo paradigma de socialização, em suas diferentes facetas.

Esse paradigma não pode ser encontrado; ele deverá ser criado, provavelmente ao longo de algumas gerações.

A EaD pode contribuir com conteúdo e informação, mas é incapaz de oferecer a presença sensível necessária para que a criança aprenda a se apropriar do sofrimento de estar viva, para resgatar-nos do aprisionamento em um presente infinito e transformá-lo em anseio de futuro.

A oferta de presença transformacional demanda adultos em situação de disponibilidade.

As exigências da escolarização à distância, em um contexto de crise humanitária, ao contrário, representam uma fonte de desgaste a mais, tanto para os professores quanto para as famílias.

Afinal, se estamos ocupados porque nos vemos na posição de cobrar a presença em aulas online, a realização de tarefas, a memorização de conteúdo e o desempenho em provas, resta pouca disponibilidade para aquilo que é fundamental: acolher o que se coloca diante de nós a partir de nossa humanidade compartilhada, por mais desafiador que possa parecer, e abraçar a vida em toda a sua potência, lado a lado.

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