Uma Experiência de Desescolarização

André Camargo
O Que Aprendi
Published in
7 min readJun 24, 2015

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Banguelinha sorridente, feliz de identificar o nome do avião lá fora

Na última semana de maio, embarcamos rumo a Salvador. Primeira viagem de avião do Tato e da Manu. No total, seriam cerca de vinte dias fora. Estávamos, todos, super agitados e ansiosos.

O estado emocional do nosso grupinho rendeu momentos críticos, cujo ponto alto foi um pití estridente da Manu em pleno Terminal 2. Ela tem esse talento nato de dar voz — e que voz! — às inquietações familiares.

A gente já vinha há uns dias botando pilha neles, contando que íamos viajar de avião, entrar no bichão, subir, subir e voar por cima das nuvens até a Bahia. Eles nunca tinham visto uma aeronave de perto, só passando lá longe, pequenininha, no céu.

Antes de embarcar, levei os dois até um janelão do aeroporto para visualizar, ainda em solo, o tamanho real de um avião. Em meio à coreografia improvisada dos ônibus de passageiros, caminhões de combustível e tratores de bagagem, cujos tamanhos eles já conheciam, o avião se revelava em toda sua grandeza. Otavio ficou boquiaberto.

Garanti um lugar na janelinha para cada um — Tato de um lado e Manu do outro. Eu fiquei na poltrona ao lado dele e a mamãe, do lado dela. Ele adorou conseguir reconhecer, pela janelinha, as três letras grandes na lateral do avião estacionado adiante, que era da mesma companhia que o nosso: T-A-M… Tam!

Meu filhote, que tem 6 anos, está dando os primeiros passos no processo de alfabetização dele, que é assim, automotivado, isto é, conduzido por ele mesmo, de dentro para fora. Um processo constante de tatear o mundo das letras — em seus contextos de uso reais — e descobrir por si mesmo, eventualmente com a nossa colaboração, aquilo que tem sentido e relevância para ele naquele momento. Ele começa a ler o mundo.

Em função da rota do avião, o visual do nosso lado estava deslumbrante, mais bonito que o delas. Entrevimos o sol se pondo como um gigante de luz escondido embaixo de uma cama de nuvens, com raios amarelo-alaranjados ofuscantes irradiando para cima até nós por entre as brechas de céu.

Apesar de alheias ao espetáculo do astro rei, a mamãe e a Manu ficaram com a bela imagem das nuvens embaixo de nós, formando um oceano de algodão.

Estava tudo lindo, enquanto durou.

Cinco minutos, foi mais ou menos o tempo de interesse da Manu. Ela logo entabulou uma conversa animada com a passageira da poltrona de trás e esqueceu de avião, janelinha, oceano de algodão e todo o resto.

O encantamento do Tato resistiu um pouco mais. Até que descobriu que tinha um painelzinho digital na lateral do braço da poltrona dele, o que constituía um convite irresistível, como pena de passarinho na ponta do nariz, a suas tendências obsessivas. Aí ficou um tempo apertando os botões e explorando aqueles números, subindo e descendo 8-7-6-5… 6-7-8.

“Papai, o que é isso?” “São estações de rádio, Tato.” “Mas eu não estou ouvindo nada.” “É, eu sei. É que não tem fones de ouvido.” “Hmm.” — ele, desconfiado.

Depois foi a vez da mesinha de bordo, aquela que fica nas costas da poltrona da frente. Olhou aquilo curioso e ficou tentando entender o que era. Soltei a trava para ele, que respondeu com um suspiro, admirado. Abria e fechava a mesinha. Descobriu que, aberta, tinha duas fases: para a frente e para trás. Levantava, encaixava, girava a trava e olhava. Esperava um pouco, abria, e… tudo de novo. Impaciente, pedi para ele parar; quando servissem o lanche, a gente ia abrir de novo.

Parou, mas descobriu que a janelinha a sua esquerda tinha uma cobertura de plástico, aquela que a gente abaixa para diminuir a luminosidade, em geral quando quer dormir. Fechava, abria, parava no meio. Um pouco fechada, um pouco aberta. Desce mais um pouquinho. Sobe quase tudo.

Só que o visual lá fora estava estonteante, como nunca tinha visto antes, e eu não conseguia mais olhar porque o moleque resolveu que ficar deslizando para cima e para baixo um pedaço de plástico duro era obviamente mais emocionante que contemplar o pôr do sol por entre as nuvens, a 11.000 metros de altitude.

O Tato não tem TOC, mas sempre foi obsessivinho. A gente percebeu esse traço de personalidade dele antes mesmo de aprender a falar. Um dia, viajamos para a casa dos meus tios, em Mongaguá, e ele descobriu a porta do box do banheiro. Era só largar o moleque no chão, em qualquer ponto da casa, que ele engatinhava resoluto — tuc, tuc, tuc — até lá e… abre, fecha, abre, fecha, abre, fecha, abre, fecha.

Pouco tempo depois, atordoados com o barulho repetitivo, decidimos trancar o banheiro, obviamente com o obstinado bebê do lado de fora. Aí ele saiu engatinhando, meio a contragosto, e descobriu a porta do gabinete embaixo da pia da cozinha.

Abre, fecha, abre, fecha, abre, fecha.

Já voltamos da Bahia. Agora olho em retrospecto aquela situação do avião. Fiquei irritado com o comportamento deles e resolvi examinar um pouco mais.

Eu até hoje, depois de muitas viagens, me espanto quando um avião levanta voo. É inacreditável, contra-intuitivo, extraordinário, assustador, tudo isso ao mesmo tempo.

Outra coisa que me encanta é também uma de minhas principais funções como pai: receber meus filhos e apresentar a eles a vida e o mundo. Realizar com as crianças essa travessia, até que possam voar, é a um tempo uma honra e uma bênção. É também, para mim, o melhor sentido possível para a palavra Educação.

Então, no dia da ida a Salvador, estava super feliz de oferecer ao Tato e à Manu e de poder viver com eles sua primeira viagem de avião. Achei que ficariam maravilhados, colados no vidro da janelinha daqui até lá. Mas não foi assim. Eles logo se ocuparam de trivialidades, enquanto eu ficava que nem bobo o tempo todo tentando chamar a atenção deles.

“Olha que lindo, as nuvens do céu parecem um mar!” “Olha lá, dá para ver o sol refletido na água, lá embaixo!” “Que legal, já dá para enxergar as luzinhas das cidades se acendendo!” “Ih, olha lá, a ponta da asa tá se mexendo!… Olha lá, Tato, olha lá!”

Fiquei decepcionado. Queria que eles aproveitassem ao máximo a experiência e eles não estavam nem aí.

Mas, claro, uma vozinha dentro de mim sabia bem a origem do problema: minha criança ferida.

Estava repetindo com o Tato e a Manu o que a escola faz com as crianças. O que a escola fez comigo e também com você.

Criei expectativas e as depositei sobre eles. Decidi que meus filhos deveriam se interessar pelo que me interessava. Fiquei tentando direcionar o olhar deles para o que eu achava bonito, com base em meu próprio “currículo”.

Fora isso, desconsiderei que, com quatro e seis anos, as crianças ainda conhecem o mundo mais pelas mãos que pelo intelecto — e portanto não têm como conceber quão extraordinário é olhar o céu e o nosso planeta dessa perspectiva inusitada, suspensos no ar em uma máquina de duzentas toneladas. Intrigante e maravilhoso é tudo que está bem diante do nariz.

Em suma, a ansiedade me tornou cego à presença simples, descomplicada, da criança, com a qual a maior parte de nós perdeu contato há tanto tempo.

Falhei com eles?

Não, de jeito nenhum!

Fracasso é quando atropelamos a experiência autêntica de uma criança e não nos damos conta do que aconteceu, do que está em jogo, e passa batido.

Acredito que é fundamental para o adulto que acompanha a criança cultivar uma atitude de inteireza, silêncio interno e até de devoção à vida que emerge espontaneamente diante de seus olhos. Uma criança manifestando a sua verdade.

Manu em Piracanga, com uma criança que conheceu lá

Precisamos romper o hábito de interferir e de direcionar o tempo todo para que a criança possa constituir-se a partir de si mesma. Cultivar a motivação de enxergar e acolher — e então rejeitar qualquer tipo de sentimento de culpa.

Quando vivemos o caminho da co-existência com o coração, o que quer que aconteça é, sempre, o melhor que poderia ter acontecido.

É maravilhoso ter a liberdade de passar vinte dias viajando com meus filhos no meio do semestre, mergulhados na vida e no mundo, porque nossas escolhas não estão amarradas pela agenda escolar.

Mas desescolarização é obviamente algo mais do que isso.

É recordar-se de que não apenas as crianças, mas sobretudo nós, os pais e educadores, temos muito o que (des)aprender. Também dependemos da coragem de cometer erros e tropeços, com dignidade, em nossa jornada de transformação.

Desse ponto de vista, não há professores e alunos — somos todos iguais: seres humanos com medo de sofrer, aprendendo a transformar o desamparo em paz, consolo, realização e alegria.

Dentro ou fora da escola.

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