Zootopia ou Cartilha Sobre Preconceito e Diversidade Para Crianças e Adultos

André Figueiredo
O Sétimo Blog
Published in
8 min readMay 2, 2017
Disney.

Zootopia, filme lançado pelos estúdios Walt Disney em 2016, certamente foi recebido pelo público como quem não queria nada (exceto pelos fãs que há muito esperavam pelo filme) e surpreendeu. Essa surpresa resultou em críticas extremamente positivas sobre o filme, quebrou recordes de bilheteria (entre eles, o de segundo filme original mais visto da história) e fez do filme o mais premiado no Annie Awards (premiação específica para animações) e o Oscar 2017 de melhor animação.

O filme se passa em Zootopia, uma cidade desenvolvida para todos os mamíferos viverem em harmonia dentro de um mundo em que os humanos nunca existiram. Todos os mamíferos são antropomórficos, possuem consciência humana e seu desenvolvimento tecnológico é equiparável ao dos humanos de hoje. A atmosfera do filme (confira mais nas imagens conceituais) deixou-o ainda mais criativo e foi um dos responsáveis pelo seu destaque diante a outros filmes com animais-que-falam-e-aprontam-altas-aventuras-na-sua-telinha. O primeiro teaser de divulgação mostra os conceitos iniciais do filme (e foi ele que, lá em 2015, me deixou animado e, ao mesmo tempo, com o pé atrás, pois fiquei com medo de ser mais um filme com animais falantes que a Disney ora acerta, ora erra).

Nota: o teaser brasileiro contém os dubladores no lugar dos personagens, colocados na imagem com uma edição gráfica bem duvidosa. Caso queira vê-lo (e chorar de amargor junto ao subtítulo “essa cidade é o bicho”), clique aqui.

Quem vê até acha que é fraca

O filme possui como personagens principais Judy e Nick, dois mamíferos que investigam o mistério responsável pelo clima de aventura que a trama possui. Judy Hopps, uma coelha do interior super persistente, vai para a cidade grande com o sonho de ser uma policial que faz o mundo melhor. Desde o momento em que, quando criança, mostrou interesse em ser polícia, Judy sofreu com piadas e discriminações (não que ela ligasse). Isso tudo pelo fato de ela ser um mamífero “presa” e pequeno, que deveria se acomodar no campo e nunca se arriscar com coisas diferentes, como aconselham seus pais. Ela pertece ao “programa de inclusão de mamíferos” citato pela vice-prefeita Bellwether, uma ovelha responsável pela ascensão de “mamíferos menores” a cargos que apenas grandes mamíferos ocupam. Judy insiste no sonho de ser uma policial e transformar o mundo, mesmo com o discurso de incredulidade dos cidadãos (inclusive de Nick, em um momento inicial à parceria) e de seu chefe que a escala como guarda de trânsito.

Charmoso e “““perigoso”””

Nick Wilde é um raposo malandro em duas instâcias: em seu ~emprego~ charlatão, lucrando o máximo em um esquema semi-legal de vender uma espécie de picolé para ratinhos (a esperteza está em conseguir e fabricar esses “picolés”), e em sua imagem perante a sociedade, pois, afinal, toda raposa está pronta para passar você para trás como em qualquer fábula de Esopo. Essa imagem de trapaceiro é usada contra ele quando, em sua infância, sofreu um senhor ataque de bullying ao entrar para os escoteiros, seu maior sonho naquela idade. Na reunião da iniciação, as outras crianças o prenderam, pois, para eles, uma raposa safada não merece estar no grupo. Além disso, foi amordaçado como um animal selvagem por ele ser do grupo de mamíferos “predadores”. A partir de então, Nick se contenta com sua imagem de traiçoeira e vive como tal.

Passa filme passa cena, Judy recebe a responsabilidade de descobrir o paradeiro do Sr. Lontroso, um dos mamíferos predadores que estavam desaparecidos e, juntamente de Nick, a dupla resolve o caso inicial do filme mas este não é o mais importante porque tem muito mais areia debaixo desse tapete de peles (rs).

Caso não queira spoilers do filme e só queira ler análises sobre ele após tê-lo visto, recomento que pare por aqui, assista ao trailer a seguir (com a cena mais engraçada da animação que você respeita), vá assistir ao filme maravilhoso (pronto, cumpri a minha função de resenhista já aqui no início do texto) e volte depois (volta sim, viu?!).

Judy e Nick, após resolverem o caso de desaparecimento dos mamíferos, descobrem o terrível fato de que mamíferos predadores estão voltando à ancestralidade, atacando outros animais como se fosse selvagens. No discurso em que Judy fala sobre as descobertas, ela aponta que o motivo seria a propensão biológica, genética até, que predadores possuem de serem selvagens. Afirma que “um coelinho [e as outras presas] não voltaria a um estado selvagem”, diferente de predadores. Com esse discurso na esfera pública da cidade, ela, sem intensão, cria um contexto segregacionista em Zootopia. O preconceito mascarado que a maioria da população de presas tinha para com a minoria predadora passa a se concretizar de forma mais clara em atitutes motivadas principalemente pelo medo. Temos cenas de presas se afastando de predadores intencionalmente em bancos do transporte público, de discussões públicas que levam ao “volta para a selva, predadora!” e a de Garra Mansa, um jaguar que não faz mal a ninguém, perdendo o emprego de recepcionista da delegacia, pois essa não passaria uma imagem confiável com um predador na recepção.

Concept art from Zootopia.

Todas essas cenas relacionam-se a atitudes racistas que nossa sociedade ainda possui. Quantos não são os casos de negros que perdem o emprego por serem o que são ou nem chegam a ter a oportunidade de preencher a vaga por não se adequarem à imagem que a empresa quer manter; de negros que sofrem ofensa por causa de sua coloração (como se isso fosse ofensa), ou são chamados de “macacos”, pois qual seria outro lugar de pretos se não na selva? O filme traduz a nossa realidade para ficção “de crianças” assutadoramente utilizando os mesmos acontecimentos que existem no nosso cotidiano.

Sob outro ponto de vista, a responsável pelas afirmações de “predestinação genética” é a Judy que, sem perceber, ofende seu então formado amigo Nick, predador. Aqui quero chamar atenção para o nosso cotidiano. Nós, enquanto amigas de outras pessoas pertencentes a grupos minoritários, que, por não prestarmos atenção ou por não pertencermos ao mesmo grupo e não sabermos o que pode ser ofensivo, ofendemos e agimos com preconceitos em pequenas atitudes. E, assim como Judy, devemos reconhecer que erramos e voltar ao trabalho em equipe.

Imagina essa dupla que mal se formou e já consideramos pacas se separando?

Ao final do filme sabemos que essa segregação foi esquematizada pela (vice-)prefeita ovelha Bellwether. Sua intenção era criar um cenário social propício para sua ~dominação mundial~ seguida pelas presas e mamíferos menores que eram oprimidos e por isso ~deveriam oprimir de volta como vingança~. Confesso que a revelação dela como vilã e não somente o prefeito (Leão)Leonardo (que sabia do paradeiro dos animais desaparecidos) me foi um belo plot-twist, apesar da minha querida amiga que estava assistindo ao filme comigo no cinema ter gritado um “EU JÁ SABIA!”. Porém, analisando a origem da produção do filme (Frozen e Big Hero 6) já era de se esperar uma reviravolta desse tipo.

Uma cena interessante que merece ser comentada se encontra no início do filme, assim que Judy chega à delegacia para seu primeiro dia de trabalho. Ela chega à recepção e encontra Garra Mansa. Garra fica animado com a presença da coelha e solta um “você é a coelha mais fofa que eu já vi”. Judy, um pouco incomodada, responde: “talvez você não saiba, mas um coelho pode chamar outro coelho de fofo, já outros animais fazendo isso é meio…”, sendo interrompida pelo colega que se desculpa constrangido: “o gordinho aqui discriminando você”. Se essa cena não for uma referência direta à n-word, referente à comunidade afroestadunidense, eu não sei o que é. Da mesma forma que o adjetivo fofo pode ser usado apenas por um , apenas um negro pode se dirigir a outro usando essa expresão.

Por volta dos anos 80 o termo passou a ser bastante usado na cena do hip hop, principalmente no rap, até chegarmos aos dias de hoje em que muitos negros, principalmente os mais jovens, o usam com outros sentidos em situações privadas, entre familiares ou amigos muito íntimos. Apesar disso, a palavra continua tendo conotação extremamente racista quando usada por brancos.

A cena também relembra os contextos de uso da palavra “viado” em português. Chamar alguém de “bicha” ou “viado” é indiscutivelmente homofóbico, porém essa expressão é usada por LGBTQ’s e entre LGBTQ’s, da mesma forma que “fofo” seria utilizado entre os coelhos. (Sobre esse assunto: ME CHAMAM DE VIADO, vídeo da Lorelay Fox)

Enfim, a imagem de diversidade animal e de possibilidade de convívio harmônico entre as espécies é importantíssima para o cenário atual da nossa civilização (apesar do próprio nome “Zootopia” carregar a cadeia fônica de “utopia” em si). Saber que crianças (e adultos) estão crescendo (literalmente e metaforicamente) assistindo a esse filme é o mesmo que um carinho em cada cavidade do meu coração.

Para finalizar, gostaria de terminar com a maior ironia dentro de um filme da Disney que a própria Disney já fez se referindo a ela mesma. Apesar de não ser uma pessoa pessimista, preciso concordar com a afirmação do superior de Judy quando este chama a sua atenção:

“A vida não é igual a um desenho animado onde você canta uma música e os seus lindos sonhos magicamente vêem à tona”

Continuando a frase, nem sempre os filmes cantam uma música e retratam mágicos sonhos. Às vezes eles são como a vida. E sobre isso falaremos mais n’ O Sétimo Blog.

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