TÊNIS, minha raquete de

Felipe Drummond
O Ser Nostálgico
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7 min readDec 16, 2018

Eu nunca fui bom em esportes. Quando criança, parecia que eu tinha um “perna de pau” estampado na testa ou, como melhor se dizia na gíria de meninos de 7 anos da época em que o outro gênero só pensava em Chiquititas, eu era um “pereba”.

Lembro do dia em que foi feita uma seleção da minha turma para o “torneio” do recreio de futsal. Obviamente, eu não fui escolhido. E me frustrei muito, porque, de alguma forma estranha, eu esperava ser escolhido! Desde aquele dia, aprendi a sábia lição de me frustrar apenas por fracassar naquilo que eu faço de bom ou naquilo que me proponho a fazer bem feito. No resto, sou literalmente hors concours. Tremenda lição que o esporte me ensinou.

Não obstante a perebice que assolava meu péssimo futebol, eu insistia em jogar. Do dia da não convocação para a “seleção” da turma em diante, jogava de brincadeira: de alguma forma, era um jeito de interagir com os outros meninos e ser menos pária. Fiz amigos no futsal. Mas confesso que preferia quando o pessoal brincava de polícia e ladrão na saída do colégio. Não era esporte, mas envolvia correr e de alguma forma vencer. Paredão também era bom. Atividades mistas em geral, acho que eu preferia. Nunca fui competitivo, mas, frustrada a seara esporte, eu — em atitude mental compensatória — acho que me sentia campeão em outras coisas: eu ganhava olimpíadas imaginárias de conhecimentos e outras nerdices. Meu sonho era ir para o Show do Milhão.

Eis que veio o passeio da 4ª série para o Villa Forte, simpático hotel-fazenda em Engenheiro Passos, Resende/RJ. Pertinho da curva onde Juscelino Kubitschek se acidentou fatalmente em 1976. Muita coisa aconteceu e tenho lembranças vívidas do sopro de autonomia que parecia ir para o primeiro passeio envolvendo “dormir” e se organizar em quartos com amigos, sem os pais. Alguns pais foram, mas não os meus, provavelmente de antemão cientes de que eu até hoje os estaria culpando de tamanho mico. Naquela época, quase ninguém tinha celular e lá o celular sequer pegava. Uau.

Não há qualquer desventura amorosa a se contar do Villa Forte, eu era um tremendo bobão — apaixonado pela melhor amiga, o que antes me fazia sentir estranho, embora hoje veja que era a coisa mais usual do mundo nessa idade. Tão usual quanto a correspectiva não-correspondência. A única desventura é que padecemos da óbvia criancice de quando se apaga a luz e se fica sem os adultos: tivemos muito medo de dormir com histórias de fantasmas e vultos. Sempre detestei tudo isso e, como diz minha mãe, sou muito “impressionável” por essas coisas. É a segunda memória mais marcante do Villa Forte. Passemos à primeira.

Agora podemos falar do tênis.

No espaço do Villa Forte, havia umas quadras de tênis e a querida professora Eloá levou umas raquetes para que praticássemos. Fui dos que demonstrei interesse em aprender. Um garoto meio alternativo, eu já me sentia. Olhando em retrospectiva, acho que gostei do fato de ser um esporte sem contato, sem chance de trombar com ninguém, levar carrinho ou suportar outras formas de agressividade. Era uma criança não agressiva, quase frágil e vocês podem imaginar como o futebol não era para mim.

Joguei um pouquinho de tênis e me apaixonei. Voltei para o Rio implorando para minha mãe me matricular numa escolinha. Ela deferiu o pedido. Compramos uma raquete, eu diria infantil. Fiz umas aulas particulares com um argentino simpático no Iate Clube, numa tal de “quadra polivalente”. Aula particular era algo muito solitário e logo fui para a escolinha da AABB-Rio. Acho que poucas lembranças dessa época da minha vida são tão doces quanto a escolinha da AABB.

Praticava tênis o dia inteiro. Do final de 2000 ao início de 2002, eu era incessante no tênis. Acho que pensava em tênis o dia inteiro. Até jogava jogo de tênis no computador, embora nessa época já tivesse começado com o e-sport que até hoje me acompanha: Counter-Strike (merecerá um texto à parte)

Era uma tremenda alegria jogar tênis. Pela primeira vez, eu sentia que gostava genuinamente de um esporte e nele progredia. Sabia que nunca ia ser um bom jogador, nem me interessava jogar competitivamente, mas que alento era não ser o tal do pereba.

Longe de ser minha redenção em atividade física, digo tranquilamente que foi a época da minha vida em que mais fiz exercício. Finalmente, tinha ali um esporte de que gostava. Gostava de acordar cedo para ir jogar e tinha naquela uma hora da escolinha um momento sem igual. Lembro de sair suado, arfando e feliz: a tal da endorfina.

Nas férias de verão de 2001 para 2002, pedi a minha mãe para fazer escolinha 4 vezes na semana. Só a sexta-feira era livre. Não fui no Rock In Rio 3, só lembro de ver na TV os peitos da Cássia Eller, mas joguei muito tênis naqueles quatro meses de férias, que começaram com a estreia de Harry Potter e a Pedra Filosofal nos cinemas.

Ao final das férias, fevereiro de 2002, precisei trocar de raquete. Tentei muito lembrar o que houve com aquela velha Wilson que até então eu usava: quebrou? ficou pequena? ficou limitada? Minha memória nesse ponto falha.

Fomos à loja de tênis que havia dentro da galeria da Rua Conde Bernadotte, Leblon, próximo de onde também ficava um dos primeiros templos do CS, a Challenger, e minha mãe comprou minha nova raquete.

Uma Babolat, leve, branca e preta (as cores do Botafogo, mas isso era e continua sendo irrelevante). Linda. Escolhi pela sua boa empunhadura, no que lembrei de uma das primeiras coisas que ouvi em aula de tênis: “segure a raquete como quem a cumprimenta”. Oi, raquete.

Peguei minha nova amiga, que vinha num case azul. Levei para casa e a contemplei. Nessa época, ficava no quarto fazendo os movimentos do forehand, do backhand, etc em câmera lenta. Sacar não era possível, por causa do lustre. Se fosse colocar uma trilha sonora para essa lembrança, seria Dancing With Myself do Billy Idol, música que à época não conhecia. Eu só conhecia Beatles, bossa nova e, curiosamente, duas músicas do Muse. É, o Muse já existia e eu os conhecia.

“Dancei” bastante no quarto com a nova raquete. Como quis que aquele quarto virasse uma quadra e eu pudesse dar um porradão numa bolinha amarela. Enquanto não podia, golpeava o ar e ouvia aquele barulhinho do vento que, na minha distorção memorial, soa quase como aquela sonoplastia do sabre jedi.

Eu queria muito lembrar como foi usar a nova raquete Babolat branca e preta pela primeira vez, mas não consigo.

Se em 2002 eu tive a companhia de uma nova raquete em fevereiro, logo em abril eu fui retirado das quadras por uma chata duma doença que me deixou um tempo de cadeira de rodas, outros meses de muletas e eternamente preguiçoso e fisicamente amedrontado. O maldito do sarcoma, que eu amo e odeio, por tudo do que me privou e por tudo que tramou para hoje ser eu quem eu sou, me fez usar muito pouco a raquete Babolat naquela época.

Guardei a raquete dentro do armário, em cima dos livros, no case azul, esperando o dia em que eu voltaria a jogar. Fiquei mais de um ano em tratamento. Fiquei habilidoso no Counter-Strike. Muito habilidoso aliás. Obrigado a ficar sentado, joguei demais. Até esqueci que um dia gostei de tênis, embora o armário guardasse a minha poderosa raquete e umas três bolinhas. Olhava para elas com cuidado, mas trocara a raquete pelo mouse.

Quando voltei a andar, ensaiei voltar a jogar tênis. Fiz umas aulas, mas não conseguia performar. Desisti de insistir. Guardava a raquete para brincar de vez em quando. Nos anos seguintes, jogava às vezes com amigos. Usava a raquete, mas eu na verdade jogava frescobol com raquete e bola de tênis. Correr ficou difícil. Em seguida, foi a coluna e seus discos protrusos. “Inválido para o tênis”, declarou o ortopedista certo dia.

Resignado, mantive a raquete onde ela sempre esteve. Confesso que, de vez em quando, eu a pegava e olhava. Troquei o grip uma vez, lá por 2008/2009, porque o outro descascou completamente, em mera atitude de conservação daquele souvenir de um Felipe pré-câncer, materializado na frustração de um plano esportivo que 2002 enterrou com tantas outros planos do que seria uma adolescência normal e que, não o sendo, fico impedido de reclamar pela fortuna que é sobreviver.

Um dia, acho que em 2014, um amigo que estava aprendendo a jogar tênis perguntou se eu teria uma raquete para emprestar. Pois é, emprestei, mas o fiz com a ressalva de que era um item de suma importância afetiva para mim.

Esforcei-me muito para lembrar o que houve com a minha raquete, tão pouco usada. Há um apagão na memória recente sobre ela.

Ainda está com o amigo, com quem aliás perdi contato? Tive vergonha de perguntar se ele devolveu. Será que está na casa da minha mãe no lugar onde sempre esteve? Medo de ligar, saber que não está lá e eu ficar ansioso sobre a vergonha de perguntar se o amigo devolveu. E se ele disser que devolveu e eu não souber onde está? E se ele perdeu a raquete? E se ela quebrou e ele não quis me contar? E se ela hoje está com outra pessoa, que não sabe nada sobre meu carinho por ela?

Temo memórias corporificadas em objetos. São poderosas, mas são frágeis, por dependerem desse suporte físico. Escrevo aqui agora, de madrugada, para verter em palavras a boa memória do tênis e dissociar essa lembrança de seu gatilho corpóreo: uma raquete cujo paradeiro desconheço. Finalmente, e só por isso, posso agora dormir sem saber onde está a raquete.

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