Cachaça e outras coisinhas… A crônica do que já fomos

Edgar Dourado
O sexo e a cidade
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3 min readOct 5, 2023

Eu sempre fui uma pessoa com mania de percepção. O que seria isso? Bom, como uma criança amendrotada e reprimida e como um adulto impulsivo e com ânsias; durante muito tempo meu único conforto era o mundo que eu criava em mim mesmo. Eu brincava sozinho no quintal de casa imaginando cenários e realidades próprias; eu lia muitos livros e muitos quadrinhos viajando no lúdico daquilo; e entre intervalos por leituras e brincadeiras, eu assistia muita televisão e gastava os trocados que meus pais me davam em filmes na locadora.

Cresci e me criei saindo do mundo de mim, para o mundo que eu contemplava. A novela cotidiana do dia a dia, oscilando entre marasmo e extâse.

Foi algum momento entre 2016 e 2017, durante o curso de criação de roteiros que meu professor me disse “ A vida é uma grande série acontecendo em tempo real; pare para escutar o outro ao seu lado, de forma discreta, quase invasiva. Aquele outro lhe dará material de escrita”.
Carrego muito material de terceiros em mim; acostumado com as imposições cênicas do dia a dia e alhiado a esse conselho; virei um cronista da vida alheia. Lia e escutava conversas em ônibus, aeroportos, na rua e em todo lugar. Tudo e todos eram meu material de pesquisa; e como foram úteis para uma pessoa que cresceu em seu próprio mundinho.

Toda essa contextualização aqui foi para me justificar. Hoje na academia enquanto alternava entre uma série de exercícios e outra, escutava a conversa paralela de dois amigos. “Nosso grupo de amigos está segregado”.

O motivo da segregação é aquela máxima da vida adulta: as amizades mudam, namoros entram, trabalhos chegam. Na casa dos 20 e algos, tudo consegue ser mais disforme. Uns casam, outros viram pais, alguns estudam, outros trabalham, alguns se suicidaram e outros ainda moram com os pais. Segregações sociais, capitalistas e emocionais.

Recapitulando; nessa troca afetuosa de fofocas um amigo aponta para o outro e diz “O senhor também está se excluindo de certos núcleos” o qual meu gymbro prontamente responde “esse núcleo em específico só serve para cachaça e outras coisinhas”. Rompi montantes ai.

Cachaça e outras coisinhas. Cachaça e outras coisinhas.

Confesso que fiquei martelando essa frase em minha cabeça e até brinquei que seria o subtitulo da minha biografia.
Por favor, caso algum de vocês que me lê tenha um tempo de prescrição nessa terra maior que o meu, quero ter na epígrafe “ Viveu pela cachaça e outras coisinhas”.

É até triste pensar que após eu tomar antidepressivo, eu nunca mais pude desfrutar de uma boa cachacinha, citando Alanis Morrisette “What a Jagged Little Pill”. Mais triste é pensar que vivi tão imerso e coerente em minha própria cabeça, que nunca me deixei levar por psicotrópicos ( juro, mãe).
Claro que como todo bom adolescente e jovem adulto, já experimentei aquela erva que deixou o Jorge Ben e tudo o mais, apesar de que conto nos dedos as quantidades de uso. Enfim, sempre prezei por ter controle de minhas próprias ações; sinapses para que te quero.

( não acrescenta nada à história, mas outro dia eu me permiti fumar maconha com um gostoso e depois fomos jogar, chapados, sinuca com apenas as bolas brancas; foi um dos momentos mais românticos da minha vida)

Enfim; entre cachaças e outras coisinhas que experimentamos pela vida, acompanhados e desacompanhados; eu penso em tudo que já vivemos e deixamos para o além. As experiências de vida que foram destiladas, armazenadas, consumidas e regurgitadas pelo tempo. Foi entre cachaças e outras coisinhas que vivi experiências idiossincráticas e sintomáticas.

Foi pela cachaça e outras coisinhas que eu comecei a prestar atenção nos dois amigos que presenciam gradualmente sua amizade se esvaindo com o tempo.

Diferente do efeito da ressaca que dura só um dia, esse sentimento do que já fomos perdura por toda uma vida. Talvez não seja constante e presente de forma integral, mas aquela dorzinha chata se instaura por vezes; talvez com consciência, talvez pelo simples fato de sua existência ser única mesmo que talvez, não tão significativa.

Esse é um texto para todas as pessoas que eu amo, ou que já amei.

Esse é o manifesto de uma simbologia que desce pela garganta de forma amorfa e adstrigente. Para todas as amizades de longo e curto prazo; para todas as simbologias que nos encaixemos; para todos os adeus que nunca foram dados; para todas as histórias seriadas que aconteceram em terceiros e eu nunca consegui presenciar o final; para todas as amizades feitas em aeroportos. Para tudo o que fui, fomos e seremos.

Entre cachaças e outras coisinhas, vamos construindo, celebrando e enterrando histórias.

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Edgar Dourado
O sexo e a cidade

Designer, Ator, cronista do caos e Carrie Bradshaw Tupiniquim. Escrevo sobre o que der na telha. Instagram: edgar_dourado