Ainda sem nome.

Matheus Mendonça
O silêncio deve ser um deus antigo.
4 min readNov 21, 2018

Aí está uma palavra que soa bem, cheia de promessas e certezas, dizes metamorfose e segues adiante, parece que não vês que as palavras são rótulos que se pegam às cousas, não são as cousas, nunca saberá como são as cousas, nem sequer que nomes são na realidade os seus, porque os nomes que lhes deste não são mais que isso, os nomes que lhes deste.”

— José Saramago, em As intermitências da morte.

Doeu-me acordar, malvorei-me. Nesse custo, entendi: acordar não é a simples passagem do sono para a vigília.

— Mia Couto, em Mulher de mim.

Fotografia autoral de alguma sensação sem nome.

Evitando cortinas, amanheceu, junto com o sol. Espreguiçou-se em ruídos mudos na cama. Sentou-se logo à mesa a frente, seu desjejum era ele mesmo que servia, sem serventia, pois comer não ia, mas sim por para fora os sonhos que tanto lhe satisfaziam, lhe enchiam o bucho. A luz da estrela distante banhava o local, clareava a mesa de madeira negra; mestiçagem apaziguadora. E como lhe aprazia a textura. Passava-lhe a mão seca, ainda fria do sono da noite, na falta um ser ainda vivo para a esquentar em afagos. Escrevia para desalimentar-se e começar o dia, que, aliás, só tinha sua atenção depois do almoço — este gostava de demorar-se na passagem do sono para a vigília. Acordava a manhã toda, mergulhado em letras tão profundas que fumegavam ao sair. E cada página que virava rangia como uma porta que custa a ser aberta e que a tempos ninguém abrira. Com a mão farta de ideias — ocupadas — ainda sem lugar neste mundo, esforçava-se para girar a maçaneta arredondada das letras. Difícil. Gostaria de escrever no jardim, tanto quanto dizer que somente não o faz por que chove, mas a verdade é que sua morada não possui jardim. Morava em um apartamento, em lugar calmo, longe do centro. E se as praças são vírgulas, uma pausa no caminhar, pensava, os jardins são dois pontos: convidam o adentrar. Era isso que queria fazer de suas palavras em formação de ditos literários.

Quando já acordado, cochilando em poemas na rede, chegava em casa a companheira. Acompanhada de sua filha ainda imersa em fluídos maternais. Ainda nenhum nome lhe constava e já consideráveis semanas de gestação contava. Era difícil escolher. Difícil. Não queria um dos tantos nomes listados, queira um que não fosse escolhido. Queria um nome que acontecesse. Igual as palavras que lhe nutriam pela manhã: simplesmente apareciam no papel em vazio, sem que comandasse sua mão direita, dando lugar aos preenchimentos imperfeitos de seus interiores. O nome viria em aparição inevitável, pois já sentida estava a paternidade do casal, melhor dizendo, maternidade, pois aquele pai seria tanto mãe quanto de sua companheira era esposa. Os pais estão em extinção, pensava.

Almoçavam e faziam-se companhia na solidão conjunta, dando ouvidos aos desejos do corpo, os dois descansavam, em quenturas enroscadas e espertas, no couro, de mesmo modo silente, porém frio, do sofá. Esta tarde havia compromissos, a sua temida e desejada jornada diária para auferir renda; não queria ir. Estas coisas tão nomeadas que perdem significados e jamais se saberá seus verdadeiros nomes não lhe agradavam. Queria ficar com suas inominadas companheiras advindas de dentro de si, quais certo estava que nenhuma das duas tinha feito sozinho. Principalmente a formação de palavras no papel. E o que a falta de nome diz sobre um corpo, interrogação, será que tanto quanto um nome exposto no próprio corpo. Sou ladrão ou a mulher do médico são tão nomes quando estes, próprios, que se põe em filhos. Dizem mais coisas do que se os próprios nomes de batismo fossem postos para fora. Porém, dizem mais sobre quem ou quais circunstâncias os batizaram. Não, pensava, preferia descobrir os nomes; descobrir-se em nomes diversos, ao ter que dizer qualquer um deles e seguir a diante.

Chegara no café onde marcara com alguns cargos de um periódico mensal. Café era outra palavra, que utilizada para nominar a bebida, servia de quebra para explicar um momento, expressar um lugar. Mas será que o que tomava era igual ao da semana passada, a mesma coisa em fluidos, se interrogava. Chovia, chuva, claro. Será mesmo, se interrogava. Lembrou-se que era domingo. Na verdade, seu compromisso era somente na segunda. Terminou de tomar algo que lhe botaram à mesa e saiu, duvidando da sensação dos pingos gelados que lhe batiam a pele e se era mesmo quente o que havia lhe descido a garganta.

O dia cai-se a porta. O corpo opaco, mas ainda aceso, custa a se fechar. Está em casa. E lhe parece inacreditável que a interação, em dança quase imperceptível de sutileza, entre a luz que emana do sol e a casa, seus móveis e plantas, seja ainda mais espetacular do que pela manhã. Despedida arrastada, dolorosa: as sombras e o amarelo.

Ainda em êxtase com o espetáculo, ficou paralisado de amor — seu corpo seguia no desobediente passo natural — quando percebeu que não sabia o nome do que estava sentindo. Não sabia o nome no calmo toque rústico do pano da rede e nem sabia como se chamava o que fazia em seu gato. Não sabia mais o nome de sua companheira. Companheira? Sentia tudo aquilo em estado de paralisia tamanha que mal podia sentir o tempo riscar-lhe o corpo. Somente podia tatear o agora. E como isso maravilhoso para ele. Dormiu ainda antes de escurecer.

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