As origem católicas do feminismo radical

Leona Wolf
Transgredindo o Cistema
12 min readApr 27, 2020

Leona Lopes Dos Santos Publicado em: 27/04/2020 às 14:40

Em 1979 Janice Reymond escreveu The Transsexual Empire: The Making of the She-Male, nele o “transexualismo” aparece como uma arma patriarcal que “reforça os esteripotipos de gênero”, fruto de “mitos patriarcais” e ancorados na “maternidade masculina” e na “mulher feita à imagem do homem”. O “transexualismo” acabaria por colonizar uma identificação feminina, seria um “estupro” no qual o corpo da mulher seria transformado em um artefato para depois ser apropriado pelos homens. (REYMOND, 1994). O eixo da “mulher feita à imagem do homem” aparece como um problema em Reymond dentro dos aspectos do feminismo da diferença de sua orientadora, a teóloga feminista Mary Daly. A base transfóbica teórica do “feminismo radical”, como o “feminismo cultural” hoje é conhecido, encontra suas raízes nas produções teológicas de Daly em uníssono com o desenvolvimento da “teologia do corpo” , de karol wojtyla e Joseph Ratzinger, que fundamentarão trabalhos futuros como os de Michel Schooyans, Jutta Burggraf, Óscar Alzamora Revoredo, Dale O’Leary base de um movimento anti-feminista e anti-LGBT que se coloca contrário à “doutrinação” ou “ideologia” de gênero.

As origem do feminismo radical

Mary Daly

A ideia de radicalidade no feminismol nasce uma ruptura com tendências liberais no interior do movimento de libertação das mulheres nos EUA (KURIN, 2019), apresentando pela incorporação ao movimento de tendências marxistas ligadas a new left [1] , como um “projeto radical” que visava tomar a raiz da opressão das mulheres (FIRESTONE; KOEDT, 1970), a mesma raiz aparece ligada ao patriarcado, como sistema de organização social que direciona o domínio da vida pública e privada pelos homens, que por meio de instituições como a família e a paternidade perpetuam a dominação sobre as mulheres, por um regime social de imposição de papéis sociais aos distintos sexos (MILLET, 1970). É o feminismo radical, que mobilizando conhecimentos do marxismo, psicanálise e do anticolonialismo, incorpora criticamente o termo “gênero” ao feminismo, além da forma normatizadora como desenvolvida por Stoller, aparecendo agora como um dispositivo cultural que coloniza as mulheres e meio de reprodução pelo qual o patriarcado se perpetua (KURIN,2019). No entanto além de tensões de cunho de não abranger a experiência das mulheres negras, que passam a se somar na medida em que o movimento de libertação das mulheres cresce, iniciam-se tensões entre tendências autodeclaradas “mais feministas” que crescem se opondo a uma subordinação do feminismo à esquerda (GARCIA, 2010, KURIN, 2019) e defendem uma política separatista com os homens (se opondo às tendências socialistas que defendem no momento uma articulação antipatriarcal e anticapitalista e com as mulheres negras que vêm nos homens negros aliados na luta antirracista). Esses grupos autodenomidados “mais feministas” que passam a se designar como “feministas radicais” em oposição às “feministas socialistas” (GARCIA, 2010, KURIN, 2019).

E no interior do feminismo radical, após essa ruptura, que se desenvolve uma linha chamada “feminismo radical cultural” ou “feminismo cultural”, na criação de instituições feministas alternativas e predicando uma transformação cultural voltada à não-violência, não competição e cooperação, traços entendidos como próprios de uma “cultura de mulheres” em relação a uma “cultura de homens”. No entanto enquanto as feministas socialistas, as primeiras feministas radicais e mesmo as feministas liberais se opunham ao sistema de gênero predicando a superação das desigualdades construídas, a diferença aparece às feministas culturais como seu fundamento em uma celebração da feminilidade e em uma essencialização da diferença sexual (OLIVEIRA, 2017; KURIN, 2019).

Karol Wojtyla

É nesse contexto que cresce a influência de uma “teologia feminista”, relacionada a mulheres ligadas à Igreja Católica, que vêem a Igreja como eixo cultual de constituição de uma cultura feminista, ou visam ajustar a perspectiva feminista com aspectos da teologia católica. Esse ponto é importante porque é no começo dos anos 60 que se inicia toda uma revisão teológica no interior da igreja católica em reação à revolução sexual e às movimentações da segunda onda do feminismo. Um dos primeiros textos que influencia a construção da “teologia do corpo” é “amor e responsabilidade” publicado pelo monsenhor Karol Wojtyła, futuro Papa João Paulo I, ainda em 1960. “Amor e responsabilidade” foi escrito enquanto Wojtyla era professor da Universidade Católica de Lublin, diante dos riscos de uma “juventude transviada” pelas alterações culturais do pós-guerra, Wojtyla se reune com cerca de 200 jovens estudantes, denominados a “Rodzinka” (pequena família), com o objetivo de fixar os padrões da moralidade sexual católica em bases sólidas, de forma que as “verdades morais” apareçam como “elementares e incontestáveis” e como valores ou bens mais fundamentais (JOÃO PAULO II, 1993). Como texto fundante e falando sobre amor, justiça, castidade, sexologia e ética, “Amor e Responsabilidade” relacionou o relacionamento conjugal heterossexual como a representação da maior imagem de Deus que é o amor, meio pelo qual o corpo aparece como único meio capaz de tornar visível o invisível, o espiritual e o divino, expresso na entrega através do próprio corpo de uns para os outros, em que as relações sexuais entre homem e mulher aparecem como símbolo de total doação que promove, fortalece e enriquece o relacionamento entre os cônjuges no presente e no futuro. A centralidade do casamento monogâmico heterossexual aparece portanto em Wojtyla (JOÃO PAULO II, 1995; JOÃO PAULO II, CAFFARRA 1986) como a expressão direta de Deus e o sexo reprodutivo é sacralizado em tempos de recuperação do pós-guerra, leis de proibição de relacionamentos homossexuais, expansão dos subúrbios e redução do número de filhos por casal.

Em 1968 em meio à elevação de demandas do movimento de libertação das mulheres Giovanni Montini, o Papa Paulo VI, publica a encíclica “Humanae Vitae” (a vida humana) (COHEN, 1979), no Regulamento de Nascimento em que reafirma as posições católicas contrárias ao aborto, definindo a função procriativa do sexo e se opõe a qualquer método artificial de controle da natalidade humana. A desvinculação da mulher de seu papel reprodutivo abriria, segundo o papa, caminho para a infidelidade conjugal e a degradação moral, levaria à perda da dignidade feminina e à redução da mulher a “mero objeto de prazer”. Diante do aborto e dos métodos anticoncepcionais Giovanni Montini reivindica a organização de movimentos “pró-vida”, para atuar diante do poder público com o objetivo de impedir a regulamentação destas medidas. As argumentações utilizadas na última parte da encíclica é fortemente influenciada por “amor e responsabilidade”, sendo Wojtyla nomeado membro da comissão de Montini, não assumindo apenas por problemas com o governo comunista polonês. A questão que se impõe é que as perspectivas defendidas por Karol Wojtyla no conjunto de 129 catecismos que formam a “teologia do corpo”, já se encontravam presentes e se tornavam relevantes no interior da igreja católica, diante da revolução sexual e do movimento de libertação das mulheres — e posteriormente diante do movimento de libertação gay — a partir do começo dos anos 60’ e adquirem centralidade a partir de 1975 ser considerado pela ONU como “ano internacional das mulheres” — traçando o período entre 1975–1985 como a década das mulheres, em que avançam conquistas feministas como o voto, o divórcio e demandas pelo direito ao aborto — e a partir de 1978 com a ascensão de Wojtyla ao papado como Papa João Paulo II.

A “teologia do corpo” é publicada gradualmente entre 1979 (início do pontificado de Karol Wojtyla) e 1984 (ano final da década das mulheres da ONU), nela é aplicada um método de redução — em que a partir de induções se busca uma fundamentação da explicação, ou se vai do fenômeno à fundação — e a busca de uma essência humana ou “experiência essencialmente humana”, em uma antropologia que busca os aspectos essenciais e permanentes do homem. Esse essencialismo católico, partindo da “solidão”, da “nudez original”, da diferenciação com os animais e da “criação da mulher”, traça o homem como um ser dividido entre o masculino e feminino, que aparecem como aspectos complementares e relacionados ao corpo, nele os aspectos diferenciais de gênero são fundamentados na composição corporal e naturalizados. O “amor materno” aparece relacionado à disposições naturais relacionadas à anatomia feminina, da qual derivaria uma “psicologia feminina”, a mulher aparece, ajustando a Igreja as mudanças às mudanças derivadas das lutas feministas, aparece não mais como subordinada, mas complementar ao homem, igual em dignidade mas diferente em “predisposições naturais” (JUNQUEIRA, 2017).

Essa naturalização dos papéis sexuais e de gênero leva a negação de divergências desta ordem (como na transexualidade e na intersexualidade), o que atenta a textos que predicam uma normatização, como em Bruggraf (2004), Sommers (1994) e O’ Leary (1997) e uma oposição ferrenha às concepções de gênero, principalmente após a conferência das Mulheres de Pequim (1995) traçando uma militância contra a “agenda”, “perspectiva” ou “ideologia” de gênero, da mesma forma que a complementaridade dos sexos traça a união heterossexual e cisgênera como a única possível ou de acordo com a “natureza” e predisposições “naturais” do homem. Seu sentido se desdobra nos aspectos da teologia católica a exemplo em Beatriz Vollmer de Coles (2004) que retorna à “teologia do corpo” buscando ajustar a definição de gênero à “antropologia humana” expressa pela igreja católica e em conformidade com a doutrina da Opus Dei. Se Coles (2004) busca uma inversão semântica Wittgensteiniana, ressignificando “gênero” de maneira a buscar um “novo feminismo” ancorado na “especificidade do gênio feminino” e na relação de correspondência entre “corpo” e “espírito” como unidade ontológica, em que o gênero aparece como aspecto transcendental do corpo sexuado além das vicissitudes da realidade social, ajustando o feminismo dos anos 90’ aos aspectos da teologia católica e agindo de maneira reativa às discussões de Pequim (1995); da mesma forma que Coles, dentro de uma perspectiva teológica católica busca se posicionar criticamente às teorias feministas de gênero e ressignificando incorpora o termo no interior da doutrina católica, Mary Daly ao buscar uma crítica feminista que concilie o feminismo à teologia católica, incorpora elementos católicos à perspectiva feminista já nos anos 70, elementos que moldaram aspectos em comum entre anti-feministas e conservadores cristãos e teóricas do feminismo radical.

Da mesma maneira que para Wojtyla a capacidade de gerar traça uma “psicologia particular feminina” o mesmo elemento é incorporado em Mary Daly (1990) em que o masculino e feminino são relacionados à cisão entre natureza e cultura, na qual “ser natureza” assimilado à capacidade de conceber aparece como fundamento de relação entre a mulher e o mundo natural. Enquanto para o Papa a especificidade feminina reside na maternidade e na capacidade de amor incondicional, para a feminista teóloga católica, a concepção leva a uma energia biofílica, uma energia da vida e amor pela vida que os homens não podem vislumbrar. No entanto, preservando a essencialização de uma “experiência particular” fundamentada no corpo, enquanto para Wojtyla o masculino e o feminino existem em complementaridade, a crítica de Daly se volta contra a “imposição de uma cultura masculina” movida por uma “sexualidade” invasiva, agressiva e com potencialidades letais, que por meio do patriarcado quebra a unidade entre mulher e meio natural, desembocando na opressão contra a mulher e a utilização da mesma e do meio natural como meio para atingir determinados fins, como objeto, em que figuram a degradação ambiental, o genocídio das mulheres e a caça às bruxas. Para tanto, a fim de acentuar a diferença entre os sexos, Daly condena as uniões heterossexuais pela convivência com o masculino e a lesbianidade aparece como alternativa política.

Dentro dos aspectos de uma essencialização do feminino com base na concepção, a transexualidade — assim como para a teologia católica e sua unidade entre corpo e masculinidade ou feminilidade como aspecto transcendental — aparece como uma inviabilidade, o que ela chama de “Fenômeno Frankestein” (DALY, 1990) aparece como um recurso da “tecnologia falocrática”, um ataque cirúrgico masculino que invade o mundo feminino, que cria corpos femininos, mas não mulheres e os impõe como substitutos das mulheres. A marca do pensamento de Daly (1986) da teóloga católica que a princípio buscou conciliar uma perspectiva teológica com as posições de simone de Beauvoir (The Church and the second sex, 1968), influencia sua orientanda ex-integrante das irmãs da misericórdia, Janice Raymond, na composição de uma das perspectivas mais transfóbicas do feminismo radical em “The Transsexual Empire: The Making of She-Male” fazendo a perspectivas conservadoras católicas como as expressas por Burggraf (2004) em que a transexualidade aparece como uma “anomalia” que deveria ser “tratada” para a restauração da unidade entre corpo e expressão transcendental.

O Eixo que liga a os teóricos conservadores críticos da “ideologia de gênero” e as perspectivas feministas radicais transexcludentes, anti-porn e putofóbicas é que ambas perspectivas partem de uma mesma concepção católica teológica, que se direciona a partir dos anos 60 em reação à revolução sexual e que se constitui em base para a formação de teóricas feministas como a teóloga católica Mary Daly, a ex- Irmã da Misericórdia Janice Raymond ao mesmo tempo que as anti-feministas Hoff Sommers, Jutta Burggraf e O’Leary. Se de um lado se propõe levar adiante a emancipação feminina e do outro minar os avanços emancipatórios de gênero, as duas perspectivas possuem uma mesma base ancorada na “teologia do corpo” e sua unidade essencialista entre corpo e gênero. Enquanto para a perspectiva católica a revolução sexual retira a “dignidade feminina” reduzindo as mulheres a “objeto de satisfação sexual” masculina, esse traço não difere em essência às críticas anti-porn de Janice Raymond ou da perversão libidinal impositiva que direciona a cultura masculina em relação ao mundo natural e ao corpo feminino em Daly, reduzindo a objeto a ser explorado. Não ao acaso, as duas perspectivas acabam por desenvolver argumentos muito semelhantes em relação à transexualidade, o que não parte apenas de uma transfobia cultural, mas do “feminismo radical” ser essencialmente branco, católico e ocidental [2].

NOTAS

[1] Para tanto a incorporação de termos como Classe e Materialismo x Idealismo.

[2] Cita-se as críticas de Audre Lorde (1984) a Gyn/ecology, em que os aspectos trabalhados por Mary Daly não contemplam a “história e mito” das mulheres de cor.

Referências

BURGGRAF, Jutta. ¿Qué quiere decir género?: En torno a un nuevo modo de hablar. 1.ed. San José, C.R: Ediciones PROMESA, 2004. 33 p.

COHEN, Carl. Sex, Birth Control, and Human Life. in: Ethics, vol. 79, n. 4 jul. 1979. P. 251–262. Disponível em: https://web.archive.org/web/20160304213438/http://carl-cohen.org/docs/Sex,%20Birth%20Control,%20and%20Human%20Life.pdf. Acesso em: 25 mar. 2020.

COLES, Beatriz Vollmer de. Nuevas definiciones de género. in: Consejo Pontificio para la Familia. Lexicón: Términos ambiguos y discutidos sobre la familia, vida y cuestiones éticas. Madrid: Ediciones Palabra, 2004. p. 831–845.

DALY, Mary. The Church and the Second Sex. 1st. ed. Boston: Beacon Press, 1986. 282 p.

DALY, Mary. Gyn/ecology: The metaethics of radical feminism. 1st. ed. Boston: Beacon Press, 1990. 484 p.

FIRESTONE, Shulamith; KOEDT, Anne. Notes from the second year: Women’s Liberation. Nova York: 1970. Disponível em https://repository.duke.edu/dc/wlmpc/wlmms01039. Acesso em: 13 jun. 2019.

GARCIA, Carla Cristina. Breve história do feminismo. 3. ed. São Paulo: Editora Claridade, 2011. 119 p

JOÃO PAULO II, Papa. Love and Responsibility. 1st ed. San Francisco: Igatius Press. 1993. 311 p. Disponível em: https://archive.org/details/loveresponsibili00john. Acesso em: 25 mar. 2020.

JOÃO PAULO II, Papa. Varón y mujer : teología del cuerpo. Madrid: Palabra, 1995. 166 p.

JOÃO PAULO II, Papa; CAFFARRA, Carlo. Uomo e donna lo creò. Catechesi sull’amore umano. 1986. 516 p.

JUNQUEIRA, Rogério Diniz. “Ideoloia de gênero”: a gênese de uma categoria política reacionária — ou: a promoção dos direitos humanos se tornou uma “ameaça à família natural”? In RIBEIRO, Paula Regina Costa; MAGALHÃES, Joanalira Corpes (Orgs.) Debates contemporâneos sobre Educação para a sexualidade. Rio Grande: Ed. da FURG, 2017. P. 25–52.

KURIN, Melina Sofia. O Feminismo do Século XXI: Origens e margens da “quarta onda”. 2019. 147 p. (Monografia, Especialização em Direitos Humanos, Diversidade e Violência) — Universidade Federal do ABC, 2019.

LORDE, Audre (1984). An Open Letter to Mary Daly. Berkeley: Crossing Press. pp. 66–71.

MILLET, Kate. Política Sexual. 1. ed. Lisboa:Publicações Dom Quixote, 1970.256 p.

O’LEARY, Dale. The Gender Agenda: Redefining Equality. 1st. Ed. Lafayette: Vital Issues Press, 1997.213 p.

OLIVEIRA, João Manuel de. Desobediências de gênero. 1. ed. Simões Filho: Editora Devires, 2017. 124 p.

RAYMOND, Janice. The Transesual Empire: The Making of the She-Male. New York: Teachers College Press, 1994. 220 p.

SOMMERS, Christina Hoff. Who Stole Feminism: How women have betrayed women. 1st. ed. New York: Simon & Schuster, 1994. 317 p.

Leona Lopes dos Santos (Leona Wolf) é especialista em Direitos Humanos, Diversidade e Violência pela Universidade Federal do ABC — UFABC (Lattu Sensu) e Cientista Social (Licenciatura e Bacharelado) formada pelo Centro Universitário Fundação Santo André (CUFSA). É coordenadora do coletivo LGBT Prisma — Dandara dos Santos e atua na educação pública como Professora de Educação Básica II desde 2005.

--

--