A Ascensão e Queda da Cidade Murada de Kowloon

Sobre Hong Kong

João T. Carvana de Hollanda
O Veterano
4 min readJun 2, 2021

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Hoje, em um parque com o seu nome, um olhar descuidado pela área não leva a imaginar que, cerca de 30 anos atrás, ali se encontrava o lugar mais densamente povoado da terra. Intrinsecamente conectado com a história recente de Hong Kong, a Cidade Murada de Kowloon esteve no cerne da relação entre China e Reino Unido do fim do século XIX até a transferência do território ultramarino para a China continental em 1997.

Vista aérea da Cidade Murada, Ian Lambot.

Inserida no contexto dos chamados Tratados Desiguais, acordos forçados pelas potências industriais aos países do extremo oriente, em 1898 a Segunda Convenção de Pequim manteve a Cidade Murada, até então um posto militar chinês, como um enclave envolto pelos novos territórios adquiridos pela coroa britânica em Hong Kong. Ao longo da conturbada primeira metade do século XX, passando pelo fim da dinastia Qing, a guerra Sino-Japonesa e a posterior guerra civil, assuntos mais detalhadamente abordados na Série Pacífico, o local perdeu sua presença militar e passou a servir de abrigo para refugiados e imigrantes.

Com o fim da guerra civil, a situação jurídica da Cidade Murada se acinzenta ao máximo. Passam a existir duas Chinas e ambas questionam a legitimidade do Tratado Desigual, sendo que este estabelece a jurisdição do local a favor dos chineses. Do outro lado da fronteira, enquanto os britânicos têm, de facto, o controle, não o têm de jure. Este imbróglio legal garantiu uma relativa independência à Cidade Murada, o que fomentou a ocupação por aqueles que procuravam escapar do alcance governamental de ambos os lados.

Mais pessoas se traduziram em mais andares, já que a extinta muralha delimitava 2,7 hectares como a área da Cidade Murada, até que, devido à proximidade ao Aeroporto de Kai Tak, a altura dos prédios também chegou a um limite de aproximadamente 14 andares. Sua população foi crescendo às dezenas de milhares, mas realmente precisar o tamanho da ocupação no terreno se provou difícil e, por isso, os dados contém um certo grau de incerteza. Dos anos 1970 aos 1980, triplicou o número daqueles que chamavam a Cidade Murada de lar, culminando entre 33 e 50 mil moradores antes de sua demolição no início dos anos 1990. Este número se traduz, calculando com base na maior figura, em uma densidade populacional de 1 milhão e 920 mil habitantes por quilômetro quadrado.

Mesmo que administrativamente distante, a Cidade Murada era uma parte integral de Hong Kong. Ver a relação dos dois como uma de dependência unilateral não faz jus à participação de todos os seus restaurantes, lojas, manufaturas e, é claro, seus moradores na vida e sistema de Hong Kong. Não havia mais uma divisa, uma muralha, impedindo, por exemplo, uns de trabalharem de um lado e outros de frequentarem os vários dentistas não licenciados do outro.

Fachada da Cidade Murada em 1991, Roger Price.

Embora houvesse planos visando dar outros usos ao terreno, tanto da República da China, quanto do governo colonial, a situação jurídica mais que complicada e a população crescente os retardaram por décadas. Aqueles que, não surpreendentemente, mais tinham influência sobre a Cidade Murada eram os britânicos, sendo eles também os com mais ambições para o lugar. Em termos gerais, três alternativas foram consideradas ao longo do século: um parque, uma área mista residencial/comercial e um projeto de habitação social. A primeira ideia deve soar familiar ao leitor atento, proposta tanto nos anos 1930 quanto nos 1980, sendo a que realmente se concretizou. Vale ressaltar que parte do terceiro plano, denominado Nunnery Scheme, foi concretizado. Prédios de moradia social foram construídos no entorno da Cidade Murada na esperança de que o projeto atraísse os moradores para fora da muralha. O resultado não foi o almejado, mostrando a resiliência à mudança e a conexão das pessoas com o local, sua residência, mesmo com todos os seus inegáveis problemas (goteiras em vielas onde não se vê o céu até a venda de drogas pelo crime organizado).

O fim desta história acompanha o da ocupação britânica, que leva junto consigo o maior símbolo e influência daquilo que hoje, cada vez mais, resta só na ficção científica — a imagem da Hong Kong superpovoada e suja. Trazendo o fim do um século e meio de domínio da coroa sobre a cidade, e procurando renovar essa imagem, o ajuste desse problema de jurisdição era oportuno. Com o aval da China comunista, o Reino Unido anunciou, em 1987, o destino da Cidade Murada. Após um processo de realocação e compensação que durou até 1992, a demolição e subsequente construção do parque acabaram em 1995.

Seja por enxergar na Cidade a nostalgia pela Hong Kong de outrora, ou pela contemporânea romantização da condição de vida lá enfrentada, ou até pelo desgosto por uma questão problemática da cidade que se foi tarde, é inegável o impacto que esses míseros 2,7 hectares tiveram na cultura e história do século passado. Em 1992 seus últimos habitantes deram, alguns a contragosto, um definitivo adeus a seu lar, hoje ainda vivo na memória deles e, mesmo que não fielmente, na memória cultural construída pelas diversas obras onde se sente sua influência.

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