Série Modernidade | A crise da política de massa

A representação democrática chega a um ponto onde a mudança, seja qual for, se torna inevitável.

Luca Cechinel
O Veterano
19 min readJul 7, 2021

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Manifestação de apoiadores do Front Popular Francês na Praça da Bastilha, Paris. 14 de Julho de 1936. Foto por Marcel Cerf. Imagem disponível em Bibliothèques Patrimoniales.

“O Partido Socialista Trabalhista da Alemanha exige como base do estado:

1. Sufrágio universal, igual e direto, com voto secreto e obrigatório de todos os cidadãos em todas as eleições estaduais ou comunitárias.”

Programa Gotha (1875), Artigo II, Inciso I.

A meu ver, uma das muitas revoluções vividas pela humanidade durante o século XIX foi a introdução da representatividade democrática aos espaços de poder, que substituiu as instituições absolutistas que anteriormente os ocupavam. Consequentemente, a massificação do acesso ao poder teria sido a grande inovação política do século XX. Apesar disso, duas décadas desde o início do atual século, nos deparamos com uma conjuntura internacional menos promissora, uma vez que o relacionamento entre o cidadão e as instituições políticas tem piorado de maneira alarmante. O cientista politico polonês Adam Przeworski apresenta, no seu livro Crises da Democracia, um quadro perturbador sobre essa nova conjuntura, relatando como as pessoas sistematicamente perdem a confiança nos partidos políticos, nos governos, nos jornais e no sistema democrático como um todo, reencontrando a confiança perdida nas fileiras da antipolítica [1].

Tal comportamento seria mais compreensível caso estivéssemos analisando países que são, de fato, autoritários. Como descrito pelo sociólogo americano Larry Diamond, o furor de democratização que sucedeu o fim da guerra fria não se sustentou após o término dos anos 1990, e pelo menos 27 países sofreram alguma forma de ruptura autoritária [2]. Não é difícil imaginar que a exclusão das instituições democráticas e a privação de participação no processo decisório devam ser fatores que poderiam incentivar o comportamento supracitado. Todavia, o que Przeworski apresenta é justamente o contrário, pois os dados trazidos por ele são majoritariamente oriundos de países considerados como democracias estabelecidas, como os integrantes da OCDE [3]. Concluímos então que essa insatisfação tem outra fonte.

É possível que existam vários motivos por trás da atual situação, mas um deles é certo: os nossos sistemas de política de massa aparentam ter perdido apelo com a população. Mas o que entendemos como política ou democracia de massa?

Esta consiste na condição de que a população (vulgo as “massas”) possa participar da vida pública como eleitores e representantes, geralmente representada por grandes partidos políticos que fomentam relações próximas com suas bases — os chamados “partidos de massa” [4]. Estes, pelo menos oficialmente, configuram em termos estruturais, organizacionais e eleitorais a maioria dos principais partidos políticos nas democracias consolidadas. Portanto, quando analisamos o status da política de massa em certos países, olhamos também, inevitavelmente, para o desempenho dos seus partidos.

Aprofundar-me-ei nos dados posteriormente, mas por enquanto cabe ressaltar que estes não deixam dúvidas de que o nosso atual sistema partidário de massas está em crise. Como podemos compreender esse fenômeno? Para isso, precisamos entender teoricamente as origens da política de massa, seu desenvolvimento histórico recente e como esta se relaciona com a situação crítica dos sistemas democráticos contemporâneos.

A Política de Massa: Uma Abordagem Teórica.

“The House of Commons at Westminster” (1808), por Thomas Rowlandson et al.. O parlamento inglês tonou-se o lugar onde alguns dos primeiros partidos de quadros se formaram a partir do final do século XVIII. Imagem disponível em Wikimedia Commons.

Uma das primeiras obras que abordaram o assunto da política de massas foi o “Manifesto do Partido Comunista”, de Karl Marx e Friedrich Engels. Publicado em 1848, o trabalho foi um dos primeiros que abertamente advogou pelo estabelecimento do proletariado como classe dominante. A diferença, contudo, é que Marx, Engels e seus companheiros na Liga dos Comunistas [5] consideravam a revolução armada como o único meio pelo qual tal mudança poderia ser alcançada, vendo a “conquista do poder” pelos trabalhadores e o estabelecimento de uma “ditadura do proletariado” como a inevitável consequência dessa via insurrecional [6]. Essa proposta, tal qual elaborada por Marx e Engels, tornou-se gradualmente hegemônica entre o movimento socialista internacional, e não é por acaso que muitos dos primeiros partidos de massa, como o Partido Socialista Trabalhista da Alemanha (futuro Partido Social Democrata Alemão), seguiam tal orientação no início. A maioria deles viriam a abandonar tais doutrinas nas primeiras décadas do século XX, optando pelo reformismo moderado em detrimento do socialismo revolucionário, mas tal influência nos anos formativos da atividade partidária de massas é inegável.

Em 1919, Max Weber, sociólogo e economista alemão, proferiu a importante palestra intitulada “A Política como Vocação”. Nela, Weber relata a formação das agremiações partidárias em relação aos diferentes setores sociais, descrevendo como, nos primórdios da política representativa (especialmente no caso inglês), os primeiros partidos eram constituídos ou pela aristocracia ou pelos “notáveis”, cujos membros eram associados às ascendentes profissões burguesas. Nesse estágio, os partidos não eram associações formalmente estruturadas, pois apenas representavam a união de interesses de diferentes grupos nos parlamentos e que, fora destes, apenas existiam nos períodos eleitorais. Em contraste, Weber descreve as organizações partidárias modernas — aquelas que se formaram após a expansão do sufrágio — como “os filhos da democracia, da franquia de massa, da necessidade de cortejar e organizar as massas”. Estas são organizações dirigidas por políticos profissionais que fomentam uma vida partidária ativa entre seus filiados. Para Weber, os integrantes dos novos partidos de massa, denominados coletivamente como a “máquina”, têm a capacidade de pressionar seus representantes parlamentares por meio de uma alta organização interna. Weber acreditava que a popularização de tais “máquinas” políticas de massa levaria à também popularização do que ele denominava como a “democracia plebiscitária” [7].

Em 1930, o filósofo espanhol José Ortega y Gasset ofereceu uma visão crítica acerca da massificação da política no seu livro “A Rebelião das Massas”. Em termos de visão, Ortega se aproxima a pensadores como Robert Michels, Gaetano Mosca e Vilfredo Pareto, articuladores da chamada “Escola Italiana do Elitismo”, que no início do século XX teorizaram que a democracia de massas não era apenas impossível na prática, como também que um governo da minoria seria sempre superior àquele oriundo da maioria. Gasset, entretanto, não partilhava dos posicionamentos políticos autoritários de muitos dos pensadores das elites [8]. Central à sua tese estava o conceito de “homem-massa”, seu idealtypus das massas populares, que havia sido criado pela democracia e pelo sufrágio universal e que havia gradualmente estabelecido uma “dominação política” sobre os sistemas representativos. Essa massa, que não teria uma origem socioeconômica definida, exerceria poder por meio de uma “hiperdemocracia”, que não seria capaz de governar com a mesma habilidade das minorias. Para o autor, as minorias seriam mais aptas à governança devido às suas qualificações especializadas [9].

Por fim, temos “Os Partidos Políticos”, de 1951, escrito pelo politólogo francês Maurice Duverger. Uma das principais contribuições da obra foi a distinção feita entre os partidos de “quadros” e os de “massas”, em uma visão que se assemelha à análise feita por Weber. Os partidos de quadros seriam aqueles cujo financiamento é originário de um restrito grupo de simpatizantes, esses geralmente sendo indivíduos economicamente abastados e influentes em suas comunidades locais. Os partidos de massas, em contrapartida, seriam aquelas organizações estruturadas a partir do financiamento coletivo e regular por parte dos filiados. Além disso, os partidos de quadros eram pouco organizados, enquanto os de massa constituem hierarquias, comitês e estruturas internas rígidas e bem-definidas. Essas tipologias são representações da “infraestrutura social e política” do momento histórico específico: os partidos de quadro representavam um estágio no qual o direito ao voto era limitado e censitário, enquanto os de massa se popularizaram após a difusão do sufrágio universal. Curiosamente, Duverger relata que o processo de transição de um modelo para o outro não foi ameno. Houve, por exemplo, agremiações de quadros que buscaram — com êxito discutível — incorporar elementos de massa a suas organizações, como o caso do Partido Liberal inglês, enquanto alguns partidos de massa se assemelhavam estruturalmente aos partidos de quadros logo após suas formações, como os primeiros grupos socialistas Franceses [10].

O Desenvolvimento Histórico da Política de Massa: Ascensão e Declínio.

“Trabalhadores na frente do magistrado” (1848–1850), por Johann Peter Hasenclever. A pintura demonstra a entrega de uma petição por um grupo de trabalhadores ao conselho municipal de Düsseldorf durante as revoluções de 1848. Imagem disponível em Wikimedia Commons.

Resta entender o desenvolvimento histórico da política de massas e como ele de fato ocorreu ao longo dos últimos 200 anos. Podemos traçar as origens desse fenômeno à chamada “primeira onda da democratização”, período identificado pelo politólogo Samuel Huntington como o primeiro no qual ocorreu um significativo progresso em termos de direitos eleitorais. Iniciando-se em 1828, com a abolição de restrições censitárias em alguns estados dos Estados Unidos — o que pela primeira vez garantiu o direito ao voto para mais de 50% dos homens naquele país -, essa “onda” geraria aproximadamente um século de expansão constante do sufrágio na América do Norte, Europa e certos países da América Latina e Ásia [11]. Inicialmente abordando apenas homens brancos desprovidos de propriedade e renda, as legislações gradualmente se expandiram em termos de escopo e incluíram diferentes grupos raciais, culturais e de gênero.

O modo como essas mudanças nas regras eleitorais foram implementadas varia fortemente entre países. No caso Britânico, foi a partir de um longo processo iniciado pelo primeiro Reform Act, de 1832, e concluído pelo Representation of the People Act, de 1918 (esse que garantiu, entre outras mudanças, o voto feminino) [12], através de uma série de leis debatidas, votadas e implementadas pelo parlamento. No caso Francês, o sufrágio universal foi implementado após a revolução de 1848 pela nova constituição republicana, sendo posteriormente revogado e depois re-implementado em um processo que acompanhou as mudanças de regime que o país enfrentou ao longo do século XIX [13]. Na Argentina, muitas décadas de conflitos políticos culminaram na aprovação da Ley Sáenz Peña, nomeada em homenagem ao presidente reformista Roque Sáenz Peña, que a promulgou em 1912. A lei, que garantia o direito ao voto universal [14] e secreto para todos os cidadãos argentinos, resultou na eleição do candidato oposicionista Hipólito Yrigoyen, da União Cívica Radical, à presidência da república quatro anos depois [15].

Além do quadro legal-constitucional, observamos ao longo das décadas a ascensão dos partidos de massa, a qual tem relação direta com a conjuntura socioeconômica do período. Com a migração rural para as cidades, propiciada pelas novas demandas de mão-de-obra, foram formados grandes centros industriais em lugares como Birmingham, Lyon e no vale do rio Ruhr. Buscando a representação política e os direitos sociais que ainda lhes eram majoritariamente vedados, os operários formaram os primeiros partidos populares de origem extra-parlamentar. Além de suas influências diretamente classistas, muitos desses partidos derivam seu sucesso inicial de associações sindicais e civis , como o caso do Partido Trabalhista inglês (Labour Party), cuja formação foi oriunda tanto de sindicatos como o Trades Union Congress quanto de grupos intelectuais como a Fabian Society [16]. Em alguns países, os partidos de massa foram reprimidos pelo aparato estatal, como no caso das chamadas “Leis Antisocialistas” [17], implementadas pelo Chanceler Otto von Bismarck no Império Alemão, onde as atividades do Partido Social Democrata foram severamente restringidas por mais que o partido em si permanecesse legal [18]. Porém as leis falharam em conter o crescimento do partido que, às vésperas da Primeira Guerra Mundial, tinha mais de 1 milhão de filiados, constituindo o maior partido socialista no continente europeu [19].

A ocupação do espaço público veio gradualmente. Por mais que tenha sido uma experiência curta, a primeira foi na Austrália, quando o Partido Trabalhista australiano brevemente administrou o governo estadual de Queensland em 1899 [20]. A partir da virada do século, os partidos de massa, tanto os reformistas quanto os revolucionários, tornaram-se participantes ativos da conjuntura política, com a Primeira Guerra tornando-se a grande catalisadora por trás da expansão de ambos. Das trincheiras desta, por exemplo, surgiram tanto a União Soviética, formada por Lênin e pelos Bolcheviques após a Revolução de 1917, quanto a República de Weimar, que foi primeiramente governada pelos Social Democratas alemães — que há pouco haviam abandonado o marxismo. A primeira foi uma república socialista, a segunda foi uma democracia liberal, ambas experiências de governo de massa, mas que não poderiam ser mais distintas uma da outra [21].

Nas demais democracias liberais, os partidos de massa se tornaram agentes competitivos no cenário eleitoral e conquistaram importantes vitórias, como as eleições dos chamados “Fronts Populares” [22] na França e na Espanha (ambas em 1936) e a acachapante vitória eleitoral do Partido Trabalhista inglês na eleição geral de 1945 [23]. Essa popularização dos partidos de massa iniciou o processo, identificado por Duverger, de “contágio pela esquerda”, no qual os antigos partidos de quadros buscaram se adaptar ao incorporar elementos de massa em suas estruturas [24]. Um exemplo desse “contágio” seria a adoção de eleições diretas entre os filiados para a escolha de candidatos e líderes, como ocorreu com o Partido Conservador inglês em 1965, que pela primeira vez na sua história elegeu o seu líder democraticamente. O ganhador do pleito foi o deputado Edward Heath, que seria posteriormente eleito Primeiro-Ministro do Reino Unido em 1970 [25]. Além disso, certos estudos mostram que partidos de massa foram capazes de influenciar a implementação de políticas públicas simplesmente pela aplicação de pressão externa, como no caso do Novo Partido Democrático do Canadá em suas experiências como oposição nos governos provinciais, algo também categorizado como forma de “contágio” [26]. Ou seja, em meados do século XX, a política de massas havia se tornado majoritariamente hegemônica, tanto em termos de modelo partidário quanto em termos de praxe política.

Contudo, algo mudou em relação à política partidária. Em 1966, o jurista alemão Otto Kirchheimer escreveu, em um capítulo do livro “Partidos Políticos e Desenvolvimento Político”, que os partidos de massa estavam transitando para um novo modelo: o modelo catch-all — ou pega-tudo. Visando à ampliação máxima de suas bases eleitorais, os grandes partidos de massa de direita e de esquerda gradualmente abandonaram suas agendas mais explicitamente ideológicas em prol de identidades “de-ideologizadas”, supostamente pragmáticas. Fora isso, essa movimentação propiciava uma nova moda de organização partidária que acabava por empoderar as lideranças enquanto reduzia demasiadamente a importância das militâncias de base. Portanto, o modelo que Kirchheimer identificava ia na contramão dos partidos de massa que vinham se desenvolvendo ao longo do último século [27].

Quando escreveu sobre os partidos catch-all, Kirchheimer olhava principalmente para a Europa Ocidental e seus partidos social-democratas e democrata-cristãos, mas acredito que a política nos oferece exemplos semelhantes em todo o mundo, ao que podemos concluir que tal tendência não foi uma exclusiva à Europa, mas sim uma de natureza global. Na África do Sul, por exemplo, o Congresso Nacional Africano, antigo partido de Nelson Mandela, é tido por muitos como um exemplo de partido pega-tudo, após décadas de distanciamento do socialismo. No México, o Partido Revolucionário Institucional, que governou o país por 71 anos (de 1929 a 2000), é tido como um outro exemplo, buscando cada vez mais uma via centrista e tecnocrata. No Brasil, o exemplo mais conhecido seria o do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB, atualmente MDB), descrito como um “partido-ônibus”, devido ao seu perfil heterogêneo, pelo então senador Fernando Henrique Cardoso. Porém, arrisco dizer que, em certos aspectos, o Partido dos Trabalhadores (PT) — enquanto no poder — se assemelhou a um partido pega-tudo devido à influência do seu campo majoritário, por mais que ainda permanecesse conectado às suas bases de apoio originais e atrelado a sua velha imagem de um forte partido de massas.

Panorama da atual crise política.

Comício do Front Nacional (atualmente conhecido como Reagrupamento Nacional) um partido pertencente ao campo da direita populista na França. Sua candidata, Marine Le Pen, chegou ao segundo turno da eleição presidencial de 2017, conquistando 33.9% dos votos. Foto disponível em Wikimedia Commons.

Ao meu ver, seria equivocado dizer que existe apenas um motivo por trás das reviravoltas que vivemos nos últimos anos, pois a atual conjuntura é certamente produto de uma série de diferentes mudanças engendradas ao longo do tempo. Acredito, contudo, que essa mudança na natureza dos partidos proposta por Kirchheimer nos oferece uma explicação plausível do porquê de nosso sistema político poder estar adentrando uma nova crise, mesmo naqueles países que permanecem (institucionalmente e constitucionalmente) democráticos. Para isso, analisemos rapidamente alguns dados:

Redução da Identificação e Filiação Partidária.

Nos estudos de Dalton e Wattenberg, o número de pessoas que não se identificavam com partidos políticos saltou de 30%, em 1976, para mais de 40%, no início dos anos 1990. Essa tendência é ainda mais nítida nos países que dispõem de dados mais extensos [28]. O estudo de Biezen, Mair e Poguntke não apenas demonstrou que os sistemas partidários de vários países Europeus perderam filiados entre 1980 e 2009 [29], como também concluiu que os partidos europeus aparentavam haver “[abandonado] todas as pretensões de serem organizações de massa” [30]. Além disso, um estudo produzido em 2010 utilizando dados do ISSP Citizenship Study demonstrou que, dentre 25 países de diferentes continentes, o número de filiados a partidos havia caído em 19 deles entre os períodos 1989–1999 e 1999–2004 [31].

Mudança (%) na filiação partidária em 25 países entre os períodos 1989–1999 e 1999–2004. Gráfico produzido por Paul Whiteley [32].

Redução de confiança no sistema democrático e nas instituições.

Przeworski, analisando uma pesquisa-síntese sobre apoio à democracia na União Europeia, relata que o apoio teria caído em 20 dos 26 países (Grécia e Espanha foram os mais afetados), com a média de apoio geral decaindo por 7.6%. Pesquisas semelhantes conduzidas nos Estados Unidos mostram que outras instituições (como jornais, bancos e até o sistema de saúde) também sofrem com uma elevada desconfiança [33]. Um estudo feito por Roberto Foa e Yascha Mounk em 2016 demonstrou que o apreço pela democracia entre cidadãos de algumas democracias consolidadas e economicamente desenvolvidas vem caindo de forma generacional, com os mais jovens considerando a democracia como algo desnecessário ou até mesmo ruim para a governança do estado [34].

Porcentagem que considera viver em um país democrático como algo “essencial”, por décadas de nascença, na Europa e nos EUA. Gráfico produzido por Roberto Foa e Yascha Mounk [35].

Desgaste dos partidos tradicionais e ascensão de candidaturas populistas.

Um estudo feito por Emanuele e Chiaramonte em 2016 demonstrou que, desde 1946, os sistemas partidários de vários países Europeus têm mudado significativamente devido à conquista de espaço por novas agremiações — algo que, em tese, não é ruim, mas que claramente indica que os partidos tradicionais estão perdendo espaço para novos movimentos na conjuntura política. Além disso, os autores comentam que existe o risco dessa constante mudança do quadro partidário impedir a institucionalização das agremiações, algo ocorrido em certos países da América Latina [36]. Przeworski, por sua vez, associa o declínio dos partidos tradicionais diretamente à ascenção do populismo de direita, identificando um novo cenário marcado pela radicalização programática dos partidos antisistema e por um crescente absenteísmo do eleitorado com perfil mais centrista. O resultado dessa combinação, além de outros fatores, é que o populismo tem crescido em popularidade, garantindo o custo afundado de “votar no menos pior”. Os casos de eleições bem-sucedidas para populistas recentemente são múltiplos, como a vitória do partido Lei e Justiça (PiS) na Polônia, a ascensão de Narendra Modi na Índia a partir de 2014 e, é claro, a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018 [37].

Qual o futuro da política de massa?

Panfletos e “santinhos” cobrem as ruas de Taguatinga, no Distrito Federal, no dia do primeiro turno das Eleições Gerais brasileiras de 2018. Foto por Edilson Rodrigues. Imagem disponível em Flickr.

Quando falamos de crise da política de massa, acredito que estamos também falando de outra coisa: uma crise de representação. Os dados mostram que mesmo aqueles que vivem em democracias consolidadas — que têm direito ao voto, à liberdade de expressão, à participação política e que tem acesso a sistemas robustos de seguridade social — ainda encontram-se insatisfeitos com suas condições. Em certos casos, esses indivíduos estão insatisfeitos a tal ponto que estão dispostos a votarem e elegerem candidatos que abertamente advogam pela revogação de pelo menos algum dos aspectos supracitados, considerando a política tradicional como demasiadamente imobilizada e/ou corrupta para agir em relação às questões que ele considera como importante. Esse perfil de eleitor está se tornando cada vez mais comum, e o fato dos partidos políticos estarem simultaneamente perdendo a sua conexão com o eleitorado e as suas distinções programáticas entre si, certamente não ajuda a fortalecer a imagem de um sistema político aberto, transparente e inclusivo.

Dito isso, o que podemos dizer sobre a atual crise? A meu ver, existem duas conclusões possíveis, duas interpretações distintas, que podem ser feitas a partir do que foi apresentado. Porém, elas são naturalmente excludentes:

  1. A atual crise da política de massas é algo muito preocupante, e os efeitos que ela causou no nosso sistema político foram muito negativos e demasiadamente custosos para a estabilidade institucional-democrática. Portanto, deveria ser a missão dos partidos políticos, das instituições e da sociedade civil buscar a reversão desse quadro por meio de uma espécie de “renovação” da democracia de massas, reincorporando aspectos perdidos da nossa cultura política e os adaptando a nossa vivência moderna, interconectada e globalizada. Essa visão é a que eu chamaria de “reformista”.
  2. Independentemente dos pensamentos individuais sobre o atual cenário político (se um concorda ou discorda dos atuais rumos), os desenvolvimentos políticos contemporâneos seriam irreversíveis, e as velhas estruturas de política de massa não poderiam ser recriadas ou reavivadas uma vez que as condições socioeconômicas que as propiciaram muitas décadas atrás não existem mais. Portanto, a situação que enfrentamos agora seria o potencial início de uma nova conjuntura política internacional e de um novo relacionamento entre os partidos políticos, o Estado e o eleitor. Essa visão é a que eu chamaria de “formalista”.

Pessoalmente, não saberia dizer a qual explicação eu me filiaria. Em termos de resposta, tenho certeza de que só teremos uma resposta concreta sobre o assunto depois de já passado nosso tempo. Contudo, uma coisa é certa: a compreensão do nosso atual campo político e, mais especificamente, do nosso relacionamento com o sistema político de massas nos ajuda a entender o relacionamento do homem moderno com as escolhas que ele faz e a vida que ele leva. Além das câmaras legislativas, a forma na qual nos vemos, fazemos e interpretamos a política fala muito sobre nós mesmos também. Independente de seu futuro, a política de massas foi e é um retrato de uma modernidade em progresso e em constante mudança, uma fonte viva do desenvolvimento sócio político das sociedades humanas.

Notas de rodapé:

[1] PRZEWORSKI, Adam. Crises da Democracia. Tradução de Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2019.

[2] DIAMOND, Larry. Democracy in Decline: How Washington Can Reverse the Tide. Foreign Affairs, Nova York, vol. 94, n. 04, p. 151–159, Julio/Agosto. 2016. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/43946941 . Acesso em: 24 Mai. 2021.

[3] PRZEWORSKI, Adam. (Ibid).

[4] DUVERGER, Maurice. Os Partidos Políticos. Tradução de Cristiano Monteiro Oiticica. Brasília: Editora Universidade de Brasília. 1980.

[5] Também conhecida como “Bund der Kommunisten”, foi o nome dado a organização liderada por Karl Marx e Friedrich Engels entre 1847 e 1852. Considerada a primeira agremiação política marxista na história.

[6] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Sergio Tellaroli. São Paulo: Penguin-Companhia. 2012.

[7] WEBER, Max. Politics as a Vocation. In: GERTH, H. H.; MILLS, C. Wright. From Max Weber: Essays in Sociology. Oxford: Oxford University Press. 1958.

[8] MALDONADO-DENIS, Manuel. Ortega y Gasset and the Theory of the Masses. The Western Political Quarterly, Salt Lake City, vol. 14, n. 03, p. 676–690, Setembro. 1961. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/444285 . Acesso em: 25 Mai. 2021.

[9] ORTEGA Y GASSET, José. The Revolt of the Masses. Tradução anônima. Nova York: W. W Norton & Company, Inc.. 1932.

[10] DUVERGER, Maurice. (Ibid).

[11] HUNTINGTON, Samuel P.. The Third Wave: Democratization in the Late Twentieth Century. Norman: University of Oklahoma Press. 1991.

[12] SMITH, Harold L.. The British Women’s Suffrage Campaign 1866–1928. Milton Park: Taylor & Francis Ltd. 2009.

[13] PITTALUGA, Giovanni B.; CAMA, Giampiero; SEGHEZZA, Elena. Democracy, extension of suffrage, and redistribution in nineteenth–century Europe. European Review of Economic History, Cambridge, vol. 19, n. 04, p. 317–334, Novembro. 2015. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/24806677 . Acesso em: 26 Mai. 2021.

[14] A questão do voto universal na Argentina é um tema complexo. Leis datadas desde a década de 1850 já estabeleciam a norma, mas relatos da época nos mostram que, além de fraude endêmica, as normas eleitorais não eram aplicadas pelas autoridades públicas em todas as províncias do país, algo que foi regulamentado pela lei Sáenz Peña.

[15] COLOMER, Josep, M.. Taming the Tiger: Voting Rights and Political Instability in Latin America. Latin American Politics and Society, Cambridge, vol. 46, n. 02, p. 29–58, Verão. 2004. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3177172 . Acesso em: 26 Mai. 2021.

[16] DUVERGER, Maurice. (Ibid).

[17] Nome oficial: Gesetz gegen die gemeingefährlichen Bestrebungen der Sozialdemokratie — Lei contra os esforços publicamente perigosos da social-democracia.

[18] BONNEL, Andrew G.. Socialism and Republicanism in Imperial Germany. Australian Journal of Politics and History, Richmond, vol. 42, n. 02, p. 192–202. 2008. Disponível em: https://espace.library.uq.edu.au/view/UQ:0f5da68 . Acesso em: 27 Mai. 2021.

[19] DUVERGER, Maurice. (Ibid).

[20] MURPHY, D. J.. The Dawson Government in Queensland, the First Labour Government in the World. Labour History, Liverpool, n. 20, p. 1–8. 1971. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/27508006 . Acesso em: 27 Mai. 2021.

[21] HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: O breve século XX. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras. 1994.

[22] O “Front Popular” foi o nome dado a estratégia política que chamava pela aliança eleitoral de partidos comunistas, social-democratas e liberais/centristas antifascistas com a intenção de impedir o avanço de partidos fascistas na década de 1930.

[23] HOBSBAWM, Eric. (Ibid).

[24] AMARAL, Oswaldo E. do. O que sabemos sobre a organização dos partidos políticos: uma avaliação de 100 anos de literatura. Revista Debates, Porto Alegre, vol. 07, n. 02, p. 11–32. 2013. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/debates/article/view/38429. Acesso em: 27 Mai. 2021.

[25] DENHAM, Andrew. Conservative Leadership Selection from Heath to Cameron. The Political Quarterly, Hoboken, vol. 80, n. 03, p. 380–387, Júlio-Setembro. 2009. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1467-923X.2009.01995.x . Acesso em: 27 Mai. 2021.

[26] CHANDLER, William M.. Canadian Socialism and Policy Impact: Contagion from the Left? Canadian Journal of Political Science, Ottawa, vol. 10, n. 04, 755–780, Dezembro. 1977. Disponível em: https://www.jstor.org/stable/3230454 . Acesso em: 27 Mai. 2021.

[27] KIRCHHEIMER, Otto. The Transformation of the Western European Party Systems. In: PALOMBARA, Joseph La.; WEINER, Myron. Political Parties and Political Development. Princeton: Princeton University Press. 1966.

[28] DALTON, Russel J.; WATTENBERG, Martin P.. Parties without Partisans: Political Change in Advanced Industrial Democracies. Oxford: Oxford University Press. 2002.

[29] As exceções notáveis foram a Espanha e a Grécia, cujos partidos ganharam mais filiados durante esse período de tempo.

[30] BIEZEN, Ingrid Van; MAIR, Peter; POGUNTKE, Thomas. Going, going,… gone? The decline of party membership in contemporary Europe. European Journal of Political Research, Hoboken, vol. 51, n. 01, p. 24–56, Janeiro. 2012. Disponível em: https://ejpr.onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.1475-6765.2011.01995.x . Acesso em: 25 Mai. 2021.

[31] WHITELEY, Paul F.. Is the party over? The decline of party activism and membership across the democratic world. Party Politics, Thousand Oaks, vol. 17, n. 01, p.21–44. 2011. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1354068810365505 . Acesso em: 28 Mai. 2021.

[32] WHITELEY, Paul F.. (Ibid). Um fator que deve ser considerado sobre esse estudo é que alguns dos países que sofreram demasiadamente com perdas de filiados partidários foram justamente os países do antigo bloco socialista. Podemos supor, então, que uma parcela significativa dessas desfiliações são oriundas da dissolução dos antigos partidos comunistas que governavam esses países. Porém, a tendência do gráfico segue presente em vários outros países fora da Europa Oriental.

[33] PRZEWORSKI, Adam. (Ibid).

[34] FOA, Roberto Stefan; MOUNK, Yascha. The Danger of Deconsolidation: The Democratic Disconnect. Journal of Democracy, Baltimore, vol. 27, n. 03, p. 5–17. 2016. Disponível em: https://www.journalofdemocracy.org/articles/the-danger-of-deconsolidation-the-democratic-disconnect/ . Acesso em: 28 Mai. 2021.

[35] FOA, Roberto Stefan; MOUNK, Yascha. (Ibid).

[36] EMANUELE, Vincenzo; CHIARAMONTE, Alessandro. A growing impact of new parties: Myth or reality? Party system innovation in Western Europe after 1945. Party Politics, Thousand Oaks, vol. 25, n. 05, p. 1–13. 2016. Disponível em: https://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/1354068816678887?journalCode=ppqa . Acesso em: 28 Mai. 2021.

[37] PRZEWORSKI, Adam. (Ibid).

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Luca Cechinel
O Veterano

Estudante da graduação de ciências sociais da Fundação Getúlio Vargas. Interessado em tópicos relacionados a política, sociedade, história e cinema.