A ‘crise de masculinidade’ na China

Jovens chineses “excessivamente femininos”?

Gabriel Thomas
O Veterano
5 min readMar 10, 2021

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Por MChe Lee, Unsplash

Na última semana de janeiro, o Ministério da Educação da China emitiu um comunicado no qual afirmava que os jovens chineses estariam se tornando “excessivamente femininos”. Para impedir a persistência desse cenário, o ministro apresentou a ‘Proposta de Prevenção da Feminização de Homens e Adolescentes’. De acordo com tal projeto, as escolas deveriam reformular o ensino de educação física e contratar ex-atletas como instrutores, de modo a desenvolver a “masculinidade” dos alunos. Assim, cabe analisar o que levou à proposição de uma política que surpreende pelo seu grau de reacionarismo ao defender abertamente o enraizamento de estereótipos de gênero naqueles que naturalmente desfrutariam de maior progresso social: os mais jovens.

Menino veste azul e menina veste rosa

A consolidação da cultura pop asiática — sobretudo a japonesa e a sul-coreana — está intimamente associada às alegações de “feminização” dos adolescentes chineses. Com a ascensão do K-Pop e do J-Pop, as celebridades do dia se tornaram homens que cuidam da aparência, que usam maquiagem e que cantam sobre seus sentimentos — características tradicionalmente tidas como “pouco masculinas”. Assim, a própria indústria local sentiu o impacto dessa influência: de 2011 a 2016, houve um aumento de 44% nas vendas de cosméticos voltados aos homens. Julia Illera, da Euromonitor International, afirma ainda que boa parte desse crescimento foi levado a cabo por jovens que buscam uma aparência com maior ambiguidade de gênero, de tal modo a emular os artistas favoritos. Nesse sentido, ganha força o movimento em favor da expressão individual em um país extremamente marcado por tradicionalismos.

Não foi passivamente que os membros da cúpula do governo assistiram a essa situação. Em editorial publicado em setembro de 2018, a Xinhua — agência de notícias estatal — criticou a representação de homens na mídia chinesa, alegando que a estética “afeminada” seria prejudicial aos jovens do país e à imagem da nação. Fato é que, nas últimas décadas, a China cresceu econômica e geopoliticamente utilizando uma imagem masculinizante — representada, por exemplo, pelo próprio presidente Xi Jinping — , de maneira a remeter às noções de força e poder presentes no estereótipo de masculinidade. Si Zefu, membro do principal órgão consultivo chinês, afirmou que muitos homens estariam se tornando “fracos, tímidos e autodestrutivos” — a antítese do padrão hipermasculinizado que o governo deseja. Assim, a popularidade das “pequenas carnes frescas” (小鲜肉) — nome dado pela Xinhua às referidas celebridades — e a menor relevância da imagem do herói militar patriota seriam prejudiciais ao país na medida em que, na visão governista, não refletiriam a ambição nacional de tornar-se líder global.

Um dos aspectos que chamam atenção no imaginário de uma política como essa é a sua fundamentação profundamente sexista. Tal como nos países ocidentais, a História da China foi construída sobre a subordinação das mulheres aos homens. O próprio confucionismo, sistema filosófico que figura como um dos pilares da moral chinesa, prega uma hierarquia familiar baseada nessa submissão. Ademais, a Política do Filho Único de 1979 foi responsável por ressaltar as disparidades de gênero no país. Ao limitar muitos casais a uma única criança, e diante de uma cultura em que o homem é considerado mais valioso do que a mulher, criou-se um incentivo ao infanticídio e ao abandono de meninas. O resultado disso foi uma proporção de gênero distorcida na China, onde há aproximadamente 30,5 milhões de homens a mais do que mulheres. Em 2019, para o grupo de jovens entre 10 e 19 anos, havia 120 homens para cada 100 mulheres. Com o fim dessa política desde 2015, o governo chinês se mostra interessado em promover um incentivo à natalidade. Acontece que tal estímulo está sendo associado à defesa dos papéis tradicionais de gênero por parte do governo, levando a uma nova ascensão da discriminação de gênero no país. Si Zefu considera como uma das causas para a tal “feminização” dos jovens o fato de que estes seriam educados por mulheres tanto em casa quanto nas escolas. Ora, se ele entende que os meninos estão se tornando “fracos, tímidos e autodestrutivos” e que a causa para tanto seria uma educação concebida por mulheres, são evidente o sexismo e a misoginia no seu entendimento de que essas seriam características intrinsecamente femininas.

Seja homem!

Afinal, o que é a “masculinidade” defendida na ‘Proposta de Prevenção da Feminização de Homens e Adolescentes’? A cientista social Raewin Connell desenvolveu uma teoria de gênero segundo a qual o governo chinês estaria pregando a chamada ‘masculinidade hegemônica’. De modo geral, esse conceito faz referência ao cenário no qual legitima-se uma posição social de dominação do homem e uma de submissão da mulher e dos homens marginalizados por terem características percebidas pela sociedade como “femininas”. No documentário ‘The Mask You Live In’ — cujo nome ironicamente assumiu um duplo sentido durante a pandemia da Covid-19 –, a Dra. Caroline Heldman afirma que essa masculinidade seria reativa, funcionando como uma rejeição de tudo aquilo que é socialmente considerado ‘feminino’. Não há espaço para emoções, empatia e delicadeza no indivíduo que desde cedo foi ensinado que ser homem significa uma constante necessidade de exibir poder, força bruta e violência. É aqui que os esportes assumem uma atuação potencialmente perversa. Sistematicamente associados à valorização do poder, da dominação e das necessidades de vencer e de não mostrar fraqueza, o esporte competitivo possibilita a formação desse jovem marcado pela ‘masculinidade hegemônica’. Não à toa, a proposta do governo chinês prevê justamente a prática esportiva como forma de desenvolver a “masculinidade” dos alunos.

Foram inúmeras as críticas que a ‘Proposta de Prevenção da Feminização de Homens e Adolescentes’ recebeu da população chinesa. “Do que os homens têm medo? De serem iguais às mulheres?” disparou um usuário da rede social Sina Weibo. No fundo, resta saber até quando os meninos serão negados ao direito de um espectro completo de expressão humana, como coloca a escritora Peggy Orenstein.

Confira abaixo o trailer do documentário ‘The Mask You Live In’. Assista na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=nNX6-a9ai4k.

Referências:

ALLEN, Kerry. ‘China promotes education drive to make boys more ‘manly’’, BBC News, 04/02/2021. Disponível em https://www.bbc.com/news/world-asia-china-55926248. Acesso em 05/03/2021.

KILLBRIDE, Jack; XIAO, Bang. ‘China’s ‘sissy pants phenomenon’: Beijing fears negative impact of ‘sickly culture’ on teenagers’, ABC News, 14/09/2018. Disponível em https://www.abc.net.au/news/2018-09-15/male-beauty-in-china-does-not-fit-with-push-for-global-influence/10221984. Acesso em 03/03/2021.

JIE, Shan; YAMENG, Lu. ‘Proposal on strengthening education aimed at making boys more ‘masculine’ triggers debate’, Global Times, 31/01/2021. Disponível em https://www.globaltimes.cn/page/202101/1214536.shtml. Acesso em 05/03/2021.

CAMERON, Lisa; DAN-DAN, Zhang; MENG, Xin. . ‘China’s One-Child Policy: Effects on the Sex Ratio and Crime’, Institute for Family Studies, 19/12/2018. Disponível em https://ifstudies.org/blog/chinas-one-child-policy-effects-on-the-sex-ratio-and-crime. Acesso em 04/03/2021

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