A crise do Capitólio

O retrato do desprezo pela prudência e pelas instituições políticas.

Gustavo de Santana
O Veterano
4 min readJan 27, 2021

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Fonte: Unsplash. Link: https://unsplash.com/photos/9pkMcZpsezI

Assim como a usurpação é o exercício do poder que outra pessoa tem direito, a tirania também é o exercício do poder sobre o direito legítimo de outra pessoa. — John Locke [1].

No dia 18 de setembro de 1793, em um grande área que anos depois se transformaria na cidade hoje conhecida como Washington D.C., foi estabelecida uma pedra fundamental pelo então presidente dos Estados Unidos, George Washington, durante uma cerimônia que dava início à construção do Capitólio. O centro legislativo norte-americano, que é casa do Senado (Upper House) e da Câmara dos Representantes (Lower House), também é o símbolo máximo da democracia estadunidense, além de ser um dos símbolos democráticos mais conhecidos do mundo. Entretanto, isso não o livrou de sofrer diversos atentados desde que foi construído até os dias de hoje, sendo o último deles, ocorrido no dia 6 de janeiro de 2021, um dos mais significativos.

Como sustenta o Barão de Montesquieu em “O Espírito das Leis”, o povo, em uma democracia, é o monarca em alguns aspectos e o súdito em outros [2]. Quanto ao seu próprio sufrágio, isto é, a sua capacidade de escolher mediante o voto, ele tem o poder de decidir os rumos a serem trilhados pela nação. Entretanto, como em um Estado Democrático de Direito o que vale é a posição majoritária entre a população — desde que sejam respeitados, por essa maior parte, os direitos e as garantias fundamentais -, esses mesmos indivíduos devem se submeter, como súditos que também são, à vontade da maioria.

No entanto, no início da tarde da quarta-feira do último dia 6, algo diferente disso foi visto no momento em que diversos invasores tomaram de assalto o prédio legislativo norte-americano, cujo controle só foi totalmente recuperado pelas forças policiais no início da madrugada. A intenção dos desordeiros era evidente. Movidos pelas constantes acusações sem provas do então presidente Donald Trump de que as eleições haviam sido fraudadas, eles, unidos a um forte desprezo pelas instituições políticas, pela vontade da maioria e pela prudência, objetivavam impedir que o agora presidente democraticamente eleito Joe Biden fosse empossado pelas casas legislativas.

As instituições políticas do país em questão, como são as regras que tratam do sistema eleitoral, são centenárias, fortes e oferecem resistência à “libido dominandi” que, bem detalhada em “Cidade de Deus” por Santo Agostinho, pode ser uma característica comum a qualquer líder populista. Além disso, os órgãos legislativos, como o Senado e a Câmara dos Representantes, e os órgãos judiciários, como a Suprema Corte dos Estados Unidos, são indispensáveis para o pleno funcionamento da democracia norte-americana, uma vez que, nas palavras do filósofo iluminista francês Montesquieu, “só o poder limita o poder”.

O desprezo por essas instituições, pela vontade da maioria e pela prudência são sentimentos que devem preocupar a todos nós e que foram fundamentais para que as pessoas que compunham o grupo de invasores fizessem o que fizeram. As normas jurídicas que regem o processo eleitoral americano e a autoridade conferida ao Congresso dos Estados Unidos foram ignoradas pelos desordeiros que, ao invés de agirem do modo previsto no ordenamento jurídico do país em questão para provarem os seus pontos, decidiram agir de forma autoritária e criminosa. Agir com tal imprudência é aceitar abrir mão da própria liberdade, pois a liberdade política é o direito de fazer tudo aquilo que a lei nos permite fazer. Assim, se um conjunto de pessoas se vê no direito de subjugar as instituições políticas para fazer valer as suas vontades, outro grupo com intenções e ideais contrários aos do primeiro poderá fazer o mesmo no futuro, cerceando as liberdades daqueles que assim o fizeram anteriormente.

Desse modo, o anseio autoritário e desenfreado de impor a sua própria vontade certamente resultará, se bem sucedido, na destruição do Estado Democrático de Direito, uma vez que a democracia é um regime de instituições, dependendo destas para que qualquer tipo de autoritarismo seja combatido. Apesar de um tanto óbvio, isso não parece preocupá-los, uma vez que prudência e a ponderação não são características comuns aos grupos autoritários. Dessa forma, fica evidente que o político e filósofo inglês Edmund Burke acertou ao afirmar que “a raiva e o frenesi destroem mais em meia hora do que a prudência, a deliberação e a previdência conseguem construir em cem anos”.

Como forma de combater essa situação perigosa, é de grande importância que seja repetido com frequência e ao maior número de pessoas possível que a forma mais eficiente e que menos gera danos por meio da qual um indivíduo pode fazer valer a sua própria vontade não é através de seus anseios golpistas ou de comportamentos que, autoritários como são, não coexistem com a prudência e com as instituições políticas democráticas vigentes. Pelo contrário, estas devem ser valorizadas como instâncias de combate ao autoritarismo, garantidoras da liberdade política da população.

Assim sendo, mesmo que desprezada por alguns que se julgam superiores a outros, a melhor maneira de fazer valer a sua vontade é anterior ao processo decisório, ocorrendo por meio da política por excelência. É através do exercício argumentativo que se chega ao convencimento, e é ele que transforma a vontade de um na vontade da maioria. O autoritarismo é destruidor, é desastroso. As ágoras [3], junto aos valores intrínsecos a elas, nunca deveriam ter deixado de ser importantes pontos de referência para nós.

Notas de Rodapé:

[1] LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Edipro, 2014, p. 151.

[2] MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, Baron de la. O Espírito das Leis. Editora Saraiva, 2004, p. 88.

[3] As ágoras eram espaços públicos onde aconteciam reuniões nas quais os cidadãos discutiam assuntos relacionados à vida na cidade. Elas foram fundamentais para o desenvolvimento da democracia.

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